LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Governo Bolsonaro tem intenção de vedar remoção de posts por redes sociais

Mario Frias enviou ofícios sustentando que plataformas ferem liberdade de expressão e direitos autorais. Especialistas discordam

Secretario especial de Cultura, Mario Frias enviou ofícios pedido medidas contra empresas de redes sociais | Crédito: Marcos Corrêa / Presidência

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) afirmou estar trabalhando num decreto para regulamentar o Marco Civil da Internet com o objetivo de impedir que publicações de apoiadores possam ser deletadas por empresas de mídias sociais. O plano foi revelado em discurso na abertura da Semana Nacional das Comunicações, evento do governo federal, nesta quarta-feira (5/5). O JOTA apurou que, há pouco menos de um mês, o tema foi levantado formalmente no governo pelo secretário especial de Cultura, Mario Frias.

Em 15 de abril, Frias enviou ofícios aos Ministérios das Comunicações e da Ciência e Tecnologia alertando sobre a necessidade de tomar medidas contra violação à liberdade de expressão e aos direitos autorais que, na perspectiva da pasta, estariam sendo praticadas por Facebook, Instagram, Twitter e YouTube. Os ofícios usam argumentos semelhantes aos endereçados por Bolsonaro, mas se aprofundam no caminho que poderia ser seguido em um eventual decreto.

No discurso, Bolsonaro afirmou que a intenção é aprovar uma regulamentação que dê liberdade ao que é falado nas mídias sociais. “Estamos na iminência de um Decreto para regulamentar o Marco Civil da Internet, dando liberdade e punições para quem porventura não respeite isso. Estamos provando aqui agora com nosso ministro Fábio Faria, das Comunicações, o quanto nós necessitamos de liberdade”, afirmou.

Os ofícios enviados por Mario Frias são decorrentes de ação da secretaria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual, integrantes da Cultura. Em fevereiro, a pasta pediu esclarecimentos às quatro empresas sobre a exclusão de publicações por elas.

A partir das repostas de Facebook e Twitter, é defendido que o procedimento adotado se dá sem notificação dos usuários ou possibilidade de protesto. Entretanto, o Facebook, por exemplo, explicou que, se o conteúdo é removido por violação aos “padrões da comunidade”, o usuário é avisado e são explicadas opções para solicitar outra análise, a menos que haja violação repetida dos termos.

O cerne da argumentação de Frias é que o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) prevê que o uso da internet no Brasil deve observar os princípios constitucionais da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento. Além disso, aponta que seriam nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que, segundo ele, violam essas garantias.

De fato, o artigo 8º do Marco Civil estabelece: “garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet”. A legislação trata de forma mais detalhada sobre o assunto em seu artigo 19, em que afirma que a plataforma só pode ser responsabilizada civilmente por um conteúdo que infrinja danos se, após decisão judicial, não tomar precauções para tirá-lo do ar.

Assim, não há obrigação de que alguma publicação seja retirada imediatamente, mas isso também não está vedado às plataformas, seguindo seus termos de uso, que, evidentemente, devem respeitar a legislação brasileira – do contrário, podem ser considerados inválidos pelo Judiciário.

Entretanto, no documento, se afirma: “cabe a um juiz decidir sobre a ilegalidade ou não de materiais antes que eles possam ser retirados do ar. Tal norma evita que decisões do tipo, tão sensíveis à liberdade de expressão e de imprensa, possam ser tomadas com base em interesses econômicos ou ideológicos”. Além disso, a exclusão, quando não é determinada por um juiz, seria uma ofensa, na visão de Frias, ao direito de informação de terceiros e à liberdade de expressão do autor do conteúdo retirado.

Para especialistas em Direito Digital e liberdade de expressão, a interpretação do artigo 19 feita pro Frias é criativa — e não se sustenta. “Ele trata de assegurar que a responsabilização aconteça apenas após ordem judicial, mas não condiciona que a retirada esteja condicionada apenas a ela. É legitimo retirar conteúdos que violam contratos, acordados entre a empresa e os usuários. Não faz sentido que qualquer conteúdo sabidamente ilegal demande determinação judicial para sair do ar”, afirma o advogado Marco Antonio Sabino, pesquisador do Instituto de Liberdade Digital (ILD)

Nesse sentido, caso fosse vedada a derrubada de publicação por iniciativa da rede social, como argumenta o documento de Mario Frias, seria necessário aguardar a análise de um juiz para que a empresa pudesse agir. “Eles contam com a ineficiência do Judiciário, que seria incapaz de julgar o fluxo de postagens, para que se possa propagar qualquer tipo de mensagem, inclusive de ódio, o que a liberdade de expressão não assegura”, critica Sabino. Para ele, a interpretação, ao mirar em evitar censura, afastaria usuários das redes sociais, na medida em que não sejam mais vedadas publicações em desacordo com garantias e direitos assegurados.

Outro argumento controverso é de que o apagamento de postagens violaria a propriedade intelectual do responsável por ele. Nessa linha, como mais um ponto em favor da restrição à retirada, se afirma também que a Lei de Direitos Autorais (9.610/1998), no artigo 105, estabelece que a autoridade judicial competente deve interromper a transmissão de obras realizadas mediante violação aos direitos detidos pelos autores.

Portanto, no entendimento da secretaria, “plataformas somente serão responsabilizados pela ofensa a direitos autorais se deixarem de adotar as devidas providências para indisponibilizar o conteúdo infringente após notificação judicial expressa”. Com isso, como não seriam penalizadas antes da ordem, elas não deveriam se antecipar a retirar conteúdo, ainda que ele viole direitos autorais de terceiros. De modo geral, as empresas impedem de forma imediata o compartilhamento de obras que contenham direitos autorais registrados.

“Dizer que a remoção violaria direito autoral ignora que ele precisa ser ponderado com outras garantias. Ele, inclusive, poderia ser retirado caso haja violação de propriedade intelectual e artística de outras pessoas. Aqui, o direito autoral é usado como veículo para garantir a liberdade de expressão despida de qualquer parâmetro”, diz Carlos Affonso, especialista em direito digital e Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS). Na prática, se houvesse a mudança de interpretação, os autores ficariam desprotegidos até que obtivessem ordem judicial para a identificação de violação, o que já acontece de forma automatizada.

Apesar das críticas em relação a um eventual fim da moderação de conteúdo pelas redes sociais, as políticas das empresas não estão livres de questionamentos. “A perspectiva de que nenhuma moderação seja permitida é extremista, mas é possível pensar em legislações mais sofisticadas para que o usuário possa questionar e em que haja transparência sobre o processo”, defende Mariana Valente, diretora do InternetLab e professora do Insper.

Nesse aspecto, faz parte tanto deixar claro quais são os termos de uso, como já acontece, mas também abrir a possibilidade de contestação e análise independente de forma ampla – e não apenas em casos de grande repercussão. Isso permitiria ao usuário se sentir seguro de que é tratado com isonomia e que publicações legítimas não saiam do ar sem resposta.

Redes sociais e eleições

Em seu discurso, Bolsonaro reconheceu o papel que as redes sociais tiveram durante as eleições dele à presidência, em 2018, e rebateu críticas que apoiadores recebem por sua atuação nesses espaços. “O meu marqueteiro é um simples vereador: Carlos Bolsonaro, do Rio de Janeiro. É o Tercio Arnaud, aqui que trabalha comigo, é o Matheus. Eles são perseguidos o tempo todo, como se tivessem criado um gabinete do ódio. Não têm do que nos acusar. É o gabinete da liberdade. É o gabinete João 8:32”, disse, em referência ao versículo bíblico que menciona “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.

O vereador carioca Carlos Bolsonaro e os assessores especiais da Presidência Tercio Arnaud e José Matheus Sales Gomes, mencionados por Bolsonaro compõem equipe que mobiliza as redes sociais em favor do governo e acabou conhecida como gabinete do ódio. Eles chegaram a ser convocados pela CPMI das Fakes News, antes de ela ser interrompida pela pandemia, e agora podem ser chamados para a CPI da Covid-19.

No que se refere à atuação das empresas de mídias sociais, Carlos Bolsonaro e o próprio presidente já tiveram postagens marcadas como falsas. Foi o que aconteceu em 2020 com o vereador, em publicação de humor no Instagram na qual checadores da entidade independente a International Fact-Checking Network marcaram como enganosa. Durante a pandemia, o presidente teve fotos em que aparecia em aglomerações excluídas pelo Twitter, Facebook e Instagram por terem violado parâmetros de informação no combate ao novo coronavírus.

O autor da argumentação pelo fim da derrubada de publicações, Mario Frias, nunca teve post vedado desde que assumiu a pasta, em junho do ano passado. Antes do cargo, costumava se manifestar em favor do governo Bolsonaro e já escreveu em favor do uso de cloroquina no tratamento da Covid-19, método reiterado como não indicado para a doença.

Se a postura se dá de forma reiterada, as redes estabelecem a possibilidade de banir o usuário. Foi o que aconteceu com o ex-presidente Donald Trump, que após série de publicações marcadas como falsas durante o governo, foi banido por diferentes mídias, entre as quais Twitter e Facebook. A decisão veio sob a acusação de que ele incitou a violência que levou à invasão do Capitólio durante a ratificação da eleição vencida por Joe Biden, em 6 de janeiro.

O banimento de Trump foi levado para revisão pelo Oversight Board, instituição independente responsável por decidir, em última instância, casos de moderação de conteúdo. Nesta quarta-feira (5/5), o conselho disponibilizou decisão confirmando o posicionamento da empresa de suspender Trump por conta da ocasião do Capitólio. O acerto da decisão foi avaliado observando se ela era compatível com as políticas de conteúdo e os valores assumidos publicamente pelo Facebook, inclusive relacionados a direitos humanos. Não se falou em liberdade de expressão.