Liberdade de expressão

Gaviões da Fiel: juíza decide que desfile com tema religioso não gera dano moral

Entidade defende ‘blasfêmia’ ao sentimento dos cristãos. Juíza diz que não cabe ao Judiciário discutir liturgias religiosas

Gaviões da Fiel
Desfile da escola de samba Gaviões da Fiel, em 2019. Crédito: Youtube/Reprodução

A juíza Camila Rodrigues Borges de Azevedo, da 19ª Vara Cível do Foro Central Cível de São Paulo, negou uma Ação Civil Pública movida pela Liga Cristã Mundial (LCM), que pedia indenização por danos morais, no valor de cinco milhões de reais, por “blasfêmia” ao “sentimento religioso dos cristãos” em desfile da escola de samba Gaviões da Fiel, em 2019. A magistrada diz que “não é o Poder Judiciário o foro adequado para as discussões relativas às liturgias religiosas”. Leia a íntegra.

Na apresentação carnavalesca da Gaviões da Fiel, personagens que representam Jesus Cristo e Lúcifer lutam entre si, evidenciando uma disputa entre o bem e o mal. De acordo com a LCM, a cena em que o demônio dava “empurrões, debochando e dando gargalhadas” de Cristo reputa “vilipendiar e escarnecer” o sentimento dos cristãos. 

De acordo com a juíza Camila Rodrigues Borges de Azevedo, a valoração sobre o desfile da Gaviões da Fiel cabe aos críticos de arte, jurados das escolas de samba e comentaristas de televisão.

Ao Poder Judiciário, segue a juíza, cabe a proteção à religiosidade, que deve se dar de maneira objetiva e “garantir a liberdade de culto ou de banir discursos de ódio”, mas que não é o caso em questão. 

Azevedo argumenta que “o Carnaval e suas representações são, de fato, uma expressão artística e cultural, independentemente das valorações positivas ou negativas que cada um faça de acordo com suas individualidades”. Para ela, quando há um conflito entre liberdade de expressão e representação artística sobre uma religião, a “limitação é incompatível com a expressão artística e cultural”. Afinal, a essência da arte é o “questionamento” e a “subversão” e assegurar a liberdade de expressão é defender o exercício de outros direitos.

Na decisão, a juíza relembra a história de vida do escritor português José Saramago, considerado autor de obras “anticatólicas” que lhe renderam a excomunhão pela Igreja Católica de Portugal e, em razão das críticas, precisou deixar seu país. “Nem sempre a arte e seus gênios estão a serviço do que se convencionou como ‘certo’, ‘possível’, ‘aceito’ e ‘admissível’”, afirma. 

O Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) manifestou-se pela improcedência da ação e afirma: “é preciso desqualificar a autora como titular dos interesses cristãos brasileiros. Seja porque institucional e juridicamente não há o que lhe conceda tal prerrogativa, seja porque sua interpretação fundamentalista do catolicismo romano e a leitura que faz da apresentação artística é exclusivamente sua, longe estando de um consenso entre as inúmeras denominações cristãs existentes no Brasil”.

Ao negar a ação, a juíza afirma, ainda, que a “polêmica e a provocação já fazem parte do carnaval. Não é criação e nem invenção da requerida e não se lhe poder atribuir a pecha de ‘inovadora’ ao se falar de representação de símbolos religiosos de forma contrária ao estabelecido nos dogmas das religiões”. Para ela, a polêmica não deveria causar estranheza.

Fundamentação

Ao julgar improcedente o pedido da LCM, a magistrada fundamentou sua decisão em três pilares argumentativos:

“1) descabe ao Poder Judiciário apreciações qualitativas e interpretações de manifestações artísticas e culturais. Cabe, sim, a máxima proteção da liberdade de expressão, inclusive assegurando que minorias, se for o caso, possam se manifestar livremente, não se podendo sucumbir ao argumento de que o país é majoritariamente cristão;

2) como bem pontuado pelo Ministério Público ao longo de sua manifestação, “é preciso desqualificar a autora como titular dos interesses cristãos brasileiros.

Seja porque institucional e juridicamente não há o que lhe conceda tal prerrogativa, seja porque sua interpretação fundamentalista do catolicismo romano e a leitura que faz da apresentação artística é exclusivamente sua, longe estando de um consenso entre as inúmeras denominações cristãs existentes no Brasil” (fls. 203), sendo certo que a autora postula “a partir de seu singular entendimento da religião católica, não se podendo cogitar sequer que o faça em consonância com o entendimento do Vaticano ou da CNBB” (fls. 204);

3) a proteção à religiosidade deve se dar de maneira objetiva, quando se trata de garantir a liberdade de culto ou de banir discursos de ódio, isto é, manifestações que ensejem a segregação e a discriminação do indivíduo no seio da sociedade, simplesmente em razão da fé que professa. Não é o caso dos autos, em que a autora pretende a tutela da “blasfêmia”. Ora, não é o Poder Judiciário o foro adequado para as discussões relativas às liturgias religiosas”

O caso tramita sob o número 1038365-05.2020.8.26.0100.


O voto de despedida do ministro Celso de Mello no STF e a mudança de regimento interno da Corte envolvendo julgamentos da Lava Jato são os assuntos discutidos no episódio 38 do podcast Sem Precedentes. Ouça: