Desinformação

Entre fake news e fake laws

PL 2.630/2020 não cria nenhuma sanção específica ao infrator, a quem de fato propaga notícias falsas

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Crédito: Pixabay

Ninguém é verdadeiramente a favor de fake news.  Nem mesmo as pessoas que divulgam informações falsas, se fossem vítimas desse tipo de falsas alegações, seriam favoráveis à conduta.

A desinformação é um dos grandes males dos tempos atuais, especialmente diante da amplitude que tais notícias maliciosas possuem, com potencial de alcançar milhões de pessoas num curto espaço de tempo em razão da onipresença das redes sociais no cotidiano do século 21.

Mas nem por isso se pode admitir a restrição ou limitação aos direitos fundamentais à privacidade e à proteção de dados, como tenta fazer o famigerado projeto de leis das fake news.

O Projeto de Lei nº 2.630/2020, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, faz exatamente isso: no afã de combater a proliferação das fake news, esquece-se de proteger direitos vitais na sociedade da informação e garantidos pela Constituição, muito embora o texto do PL diga expressamente que os princípios previstos em outras legislações relevantes, como no Marco Civil da Internet e na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, serão respeitados.

Trata-se, na verdade, de uma fake law: diferentemente do que expressa, não respeita os princípios da LGPD, nem serve como uma ferramenta eficaz para o combate às fake news. Basta ver que a proposta de legislação não cria nenhuma sanção específica ao infrator, a quem de fato propaga notícias falsas.

Era de se esperar que um projeto de lei que se intitula como o PL das fake news fosse hábil a sancionar alguém que é entrevistado por um telejornal e declara repetidamente que não há nenhuma morte no Brasil causada pela Covid-19. Contudo, a redação atual do PL em nada ajuda numa situação dessas.

Na pressa de aprovar uma legislação de combate às fake news antes das eleições de 2020, o Congresso deixa de mirar no âmago do problema, de identificar as corporações criminosas que financiam e promovem a disseminação das fake news, para atacar primordialmente as pontas, os usuários de redes sociais e aplicativos de mensagem que eventualmente repassam as notícias.

O estágio da redação atual do PL é reflexo da conduta impositiva desse rito legislativo. Enquanto outras legislações que promoveram alterações em direitos fundamentais como a LGPD foram discutidas por anos, com ampla participação social em debates e audiências públicas, o PL das fake news segue o rumo contrário, de pouco debate e pouco aprofundamento.

O resultado é inevitável: ter-se-á, caso aprovado o PL, uma lei ruim, com diversas previsões ineficazes e inaplicáveis, quando não violadoras de outras direitos. Exemplo maior é a disposição que obriga os serviços de mensageria privada a guardarem registros de quando uma mesma mensagem é enviada por mais de 5 usuários, com indicação dos usuários que realizaram o encaminhamento, a data e horário, e a quantidade total de usuários que receberam a mensagem. Essa cadeia de encaminhamento de uma mesma mensagem tem grande potencial de invadir a privacidade dos usuários.

Diferentemente do que alegam alguns defensores dessa previsão, o fato de não se ter acesso ao conteúdo das mensagens, mas somente aos metadados (identidade de quem enviou, data e horário, e receptores da mensagem), não reduz os reflexos na privacidade.

Na verdade, em algumas situações, os metadados podem ser mais reveladores que a própria mensagem em si. Se ao sair de uma consulta com um oncologista uma pessoa manda uma mensagem para outros 5 oncologistas pedindo para marcar uma consulta, a mensagem em si (“gostaria de marcar uma consulta”) revelaria menos do que o fato de que alguém está procurando outras opiniões sobre uma possível doença, um dado sensível conforme a LGPD.

Saber com quem eu me comunico, os horários em que essas comunicações acontecem e a sua frequência tornam transparente a minha rede de contatos mais próximos, como família e amigos íntimos, informações que não necessariamente são divulgadas por mim.

Informações que, em mãos erradas, podem ser utilizadas para fins escusos, desde para a aplicação de golpes, como para a tentativa de extração de mais dados, a exemplo de senhas baseadas nas datas de aniversário de familiares.

Movimentos sociais seriam ótimos alvos para a rastreabilidade de suas mensagens, o que por si só já é preocupante e capaz de limitar a liberdade de expressão.

A hashtag #blacklivesmatter certamente foi enviada por mais de 5 usuários nos últimos dias, o que faria, nos termos do PL, com que todas as pessoas que enviaram essa mensagem fossem identificadas e rastreadas. Será que é realmente preciso enfatizar o quão problemática essa identificação pode ser?

Essa mesma previsão do PL 2.630 também é perigosa porque, para ser efetivamente implementada, demandaria a quebra da criptografia ponta a ponta fornecida pela maioria dos serviços de mensageria privada atualmente.

Afinal, a única forma de saber se uma mesma mensagem foi enviada por mais de 5 usuários (e não simplesmente encaminhada), é conhecendo o conteúdo da mensagem.

Em sistemas que adotam técnicas criptográficas como essa, nem mesmo o próprio aplicativo é capaz de conhecer o conteúdo da mensagem, a não ser que resolva colocar uma brecha na criptografia, o que resultaria em menor segurança e privacidade para todos seus usuários.

Caso o PL 2.630 não seja revisto, não será a primeira nem a última vez em que a falta de diálogo nos colocará numa situação pior do que a que já nos encontrávamos.

A máxima de que a pressa é inimiga da perfeição seria injusta, já que nenhuma legislação é perfeita. Mas, aqui, o açodamento será rival da razoabilidade e da proporcionalidade.

Se mantida a redação do PL na exata forma em que se encontra atualmente, para não se disseminar uma falsa informação seria prudente alterar sua alcunha de PL das fake news para PL do estado de vigilância.