CONTEÚDO PATROCINADO

Justiça ignora órgão fiscalizador e paralisa obras de tirolesa no Pão de Açúcar

Há dois meses interrompido, projeto havia sido aprovado pelo Iphan e outras quatro instituições responsáveis. Entenda

Foto: Unsplash

Pesquisa Datafolha realizada do início de agosto mostrou que sete em cada dez moradores do Rio de Janeiro têm a intenção de visitar o Pão de Açúcar, e quase metade deles faria isso mais rápido se uma tirolesa fosse instalada no local. O cenário de cartão-postal é considerado patrimônio mundial e, além de receber os cariocas, ajuda a atrair 2,3 milhões de turistas estrangeiros para a cidade todos os anos. 

No entanto, a nova atração – planejada desde o fim de 2020 – corre o risco de não se concretizar depois que o Ministério Público (MPF) fez um pedido de embargo nas obras em maio deste ano, ignorando as autorizações já feitas pelo órgão responsável pelos patrimônios tombados pela União, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). 

Alegando irregularidades na perfuração da rocha que poderiam causar danos ao cenário, o pedido foi aceito pelo juiz federal Paulo André Espírito Santo Bonfadini, anulando os pareceres da autarquia e interrompendo a continuação das obras da empresa Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar (CCPA), que administra o Parque Bondinho no local. 

A empresa entrou com recurso mostrando as autorizações que obteve não só do Iphan mas também da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Simplificação (SMDEIS), da Secretaria Municipal de Ambiente e Clima (SMAC), do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (Irph) e Instituto de Geotécnica do Município do Rio de Janeiro (GEO-Rio).

Mas, em julho, o desembargador federal Luiz Paulo Silva Araújo Filho, da Sétima Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) negou o pedido e manteve a liminar.

Desde então, um novo relatório técnico foi encomendado para o GEO-Rio que, mais uma vez, atestou que as obras não representavam riscos geológicos para a estrutura natural do Complexo Pão de Açúcar. 

Na visão do professor titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Gustavo Binenbojm, o pedido do MPF e as decisões judiciais a seu favor não só são mal fundamentadas como também colocam em risco a segurança jurídica dos investimentos em turismo no Rio de Janeiro, além da própria independência do Iphan.

Consultas técnicas e autorizações

A empresa que administra o Bondinho apresentou, pela primeira vez, o projeto ao Iphan em dezembro de 2020. O plano seria instalar quatro cabos para a prática da tirolesa entre o Pão de Açúcar e o Morro da Urca. Os cabos ficariam paralelos aos bondinhos e teriam, ao todo, 770 metros de extensão. A expectativa era impulsionar mais visitas e, com isso, fomentar o turismo na cidade. 

Além disso, a ideia, segundo declarações do CEO da CCPA, Sandro Fernandes, era instalar uma atração diferente das outras tirolesas do mundo. Com velocidade reduzida, o visitante poderia contemplar, de forma direta, o cenário natural do Rio, cidade que possui título de Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desde 2012.

Também era a oportunidade, segundo conta Binenbojm, de se aproveitar das “áreas que estavam ociosas” nas instalações do bondinho.

Após aprovado um anteprojeto, o Iphan analisou os planos em março do ano passado e pediu que novas exigências técnicas fossem efetivadas antes da aprovação de um projeto executivo. As alterações foram feitas. 

Além das secretarias municipais, do Irpho e do GEO-Rio, instituições comunitárias também foram consultadas durante o processo. No Conselho do Monumento Natural dos Morros do Pão de Açúcar e da Urca (Consemona), estavam presentes o Grupo de Ação Ecológica (GAE), a Associação de Moradores da Urca (Amour), entre outras associações que, na reunião, não expressaram nenhuma oposição ao projeto.

Feitas as consultas, em setembro de 2022, as obras começaram. Em janeiro deste ano, o Iphan pediu a interrupção das obras, assim como o envio do projeto executivo e de documentação complementar para averiguar possível desconformidade entre o anteprojeto aprovado e a execução da obra. 

Segundo o Iphan, “o corte de rochas não estava descrito no anteprojeto apresentado”. As obras, então, foram imediatamente paralisadas e os documentos submetidos.

Mais uma leva de pareceres se seguiu e, mais uma vez, foram aprovadas, já que as intervenções propostas no perfil natural do monumento se concentram em área anteriormente já alterada, “visando ao aproveitamento de antigas infraestruturas”, explica Binenbojm.

Acusações do MPF

As obras foram, então, retomadas. Mas poucos meses depois, em maio, o MPF entrou com o pedido de interrupção e anulação da autorização do Iphan. 

Em suas alegações, o MPF diz que, entre setembro de 2022 e fevereiro de 2023, a CCPA, sem autorização do Iphan e da Geo-Rio, teria mutilado a rocha do morro do Pão de Açúcar com o objetivo comercial de instalar uma tirolesa.

Para o Ministério Público, esse empreendimento acarreta modificação da paisagem cultural e dano “irreversível” ao patrimônio geológico nacional. 

Em relação ao Iphan, declara ainda que a instituição “após tomar ciência das ações, ratificou, ilicitamente, a conduta do particular ao aprovar projeto executivo apresentado depois do início das obras, autorizando, com isso, o prosseguimento do dano”. 

Com a decisão a favor do embargo pela Justiça Federal, as obras foram paralisadas em 1º de junho deste ano – e continuam sem avanços com ameaça de multa em caso de retorno. 

Alerta patrimonial à Unesco

Por conta da disputa na Justiça, um “alerta patrimonial” foi emitido pelo Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos-Brasil), órgão consultivo da Unesco para a implementação do Patrimônio Mundial.

Apesar de o alerta ter resultado em um pedido de maiores esclarecimentos pela Unesco no meio de julho, Binenbojm avalia que isso não tem impactos práticos nem risco de o Rio perder seu título; eventuais alterações pontuais na estrutura também não são vedadas. 

“A emissão de um alerta patrimonial não implica qualquer decisão. Longe disso, o alerta nem configura etapa do procedimento de retirada do bem do patrimônio mundial, nem vincula o Comitê Intergovernamental da Unesco a tomar decisão em qualquer sentido”, explica ele. 

O professor de Direito explica que a exclusão de um bem da lista de patrimônios mundiais segue um itinerário longo e ponderado. É preciso que o comitê faça análises no local em questão, com a autorização do país e uma decisão final de dois terços dos membros. 

Binenbojm aponta que a Unesco conferiu o título de patrimônio mundial às paisagens cariocas em julho de 2012, “sob a modalidade de uma paisagem cultural urbana, que não é estática”.

“A Unesco não estabeleceu […] a imutabilidade de toda a paisagem carioca entre o mar e a montanha”, acrescenta. “Pelo contrário, reconheceu internacionalmente o valor atribuído à interação harmônica que existe entre os bens naturais e a intervenção humana no Rio de Janeiro, da qual a tirolesa será parte”.

Perigo à segurança jurídica

As acusações da MPF e as decisões da Justiça Federal são, para o professor de direito da UERJ, sem fundamento. Isso porque foram realizadas consultas com todos os órgãos técnicos vigentes antes da realização das obras. E, mesmo se houvesse um erro no início das obras, o Iphan poderia optar por corrigir a falha e permitir a continuidade do projeto. 

A resolução de atos e processos administrativos, levando em conta o interesse público e a segurança jurídica, “é medida lícita e muitas vezes recomendável”, relembra o professor.

“A decisão a respeito da sanatória, portanto, não é discricionária do administrador; é vinculada, devendo ocorrer nos casos em que o vício puder ser corrigido e a sua correção não representar dano à Administração Pública ou a terceiros”, pontua. 

Mais perigoso ainda, seria invalidar a decisão do Iphan – de aprovar uma obra antes ou depois de seu início – seria desqualificar e desautorizar o órgão de sua função de cuidado e atenção ao patrimônio histórico e cultural.

“O Iphan é uma autarquia federal que responde pela preservação do patrimônio cultural brasileiro segundo o artigo 46 da Lei 378/1937”, relembra Binenbojm. “É, portanto, a entidade com capacidade institucional para autorizar a implantação da tirolesa”. 

Além disso, ele tem o corpo técnico para verificar a possibilidade de danos ao patrimônio. O professor explica que a estrutura e os recursos que o Iphan possui para analisar o projeto da tirolesa “não se verificam nos órgãos de controle, e nem faria sentido que lá existissem. Afinal, a competência para tombar é exclusiva do Poder Executivo”.

Assim, passar por cima das decisões do órgão e cobrar danos morais e patrimoniais da CCPA poderia comprometer a confiança do público nas instituições estatais. “Isso implicaria violação ao princípio da segurança jurídica, especialmente em sua dimensão de proteção da confiança legítima”, diz o professor.  

Esse princípio, garantido em legislação, aponta que qualquer um, diante de uma determinada atuação do administrador público, “não pode ser surpreendido por um comportamento contraditório advindo da própria Administração”.

Nesse sentido, a empresa recebeu autorização do Iphan e de outros órgãos públicos e, por isso, tinha razões para acreditar que o projeto andaria para frente. A companhia e, claro, quase 90% da população do Rio de Janeiro que acreditava na possibilidade de a tirolesa atrair mais público para o setor turístico da cidade.

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