Inteligência artificial

A automatização da Justiça e o Estado da Arte brasileiro e português

Países almejam implementação de funcionamentos de IA dentro de sua estrutura jurídica, ainda que com diferentes ambições

automatização da Justiça
Crédito: Unsplash
brava

Diante do impacto tecnológico de um mundo sem voltas, a interconectividade contemporânea propiciou o surgimento acelerado de implementações da Inteligência Artificial (IA) em ambientes distintos. O aumento na produtividade e um maior custo-benefício são motivos suficientes para uma maior receptividade em modelos de justiça com problemáticas visíveis na busca por uma prestação jurisdicional, e que evidenciam na tecnologia, uma operacionalidade capaz de romper com a tradicional morosidade processual.

Embora com realidades jurídicas distintas, países como Brasil e Portugal também almejam uma implementação de funcionamentos da Inteligência Artificial dentro de sua estrutura jurídica, ainda que com diferentes ambições.

Os dois países assinaram o documento Recommendation of the Council on OECD Legal Instruments Artificial Intelligence da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 22 de maio de 2019, que estipulava diretrizes de política intergovernamental sobre a IA reiterando um caráter de respeito aos direitos humanos, às leis e aos valores democráticos. Embora sem valor legal, o documento serve como parâmetro para um desenvolvimento e implementação estrutural desse nível de tecnologia.

Especificamente no Brasil, suscitam maneiras de resolver uma problemática processual. O elevado número de processos no sistema judiciário brasileiro tem influência direta na consagração da tutela jurídica, vislumbrando na IA não uma ferramenta, mas uma necessidade à celeridade processual. Não por acaso, segundo o estudo preliminar ‘’Tecnologia Aplicada a Gestão de Conflitos no Poder Judiciário’’, realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), metade dos tribunais do país já utilizam desta tecnologia, evidenciando a ampla gama de ferramentas tecnológicas adotadas, quantificando em 72 projetos com diferentes contributos e fases de implementação, dentre os quais 12 servem para sugerir minutas e decisões[1].

Tais projetos têm por objetivo uma implementação da IA na automação das atividades, utilizando-a tanto nas atividades-meio quanto nas atividades-fim nos tribunais.  Nesse prisma, o estudo mais avançado sobre o tema The Future Of AI In The Brazilian System de 2020, realizado pela Universidade de Columbia, identifica que já existem ferramentas de automação parcial da tomada de decisão no país, e que com o tempo, graus mais elevados se farão presentes no processo decisório, onde a supervisão humana e transparência precisariam ser balanceados. Contudo, reconhecer como o ser-humano está realizando essa supervisão parece ser um problema, haja vista que a tomada de decisão da máquina pode conter vieses cognitivos.

O resultado desse processo é fundamentalmente importante, por existirem implementações e graus diversos de sistemas a depender dos tribunais, fazendo-se dos resultados à tomada de decisão um fator relevante à propagação e existência da ferramenta em outras regiões do país.

Legislativamente, há o Projeto de Lei 21/2020, que visa instituir o Marco Legal da Inteligência Artificial no Brasil, ao proporcionar princípios e deveres para o uso da IA fixando diretrizes à atuação do Poder Público, da iniciativa privada e das pessoas físicas. Dentre as disposições, de caráter fundamentalmente humanista, estabelece a capacitação humana e a reestruturação do mercado de trabalho na medida que a IA é implantada, pela ‘‘adoção de sistemas de inteligência artificial na Administração Pública e na prestação de serviços públicos, visando à eficiência e à redução dos custos’’[2]. Embora pertinente, o fomento de um desenvolvimento de IA atento às suas implicações legais, sociais e éticas, parece ser de difícil operacionalidade no país em curto prazo, uma vez que o próprio processo eletrônico é reiteradamente exposto a problemas de infraestrutura.

Portugal parece ser mais conservador às implementações de sistemas de inteligência artificial no Judiciário. Há uma nítida diferença de preocupação diante desse cenário, dada a conjuntura e discussão no país. A implementação desses sistemas no Poder Judiciário, tem um forte fator negativo quanto à substituição ou extinção de magistrados ou funcionários judiciais.

A hipotética perda da característica humana parece ser um empecilho notório ao estabelecimento de sistemas com graus mais avançados de operacionalidade, havendo resistência a quaisquer medidas que extrapolam ferramentas e procedimentos repetitivos. Ainda assim, a transformação digital no país vem acompanhada com valores que visam a proteção dos direitos fundamentais, uma vez que segue as guidelines estabelecidas no âmbito da União Europeia e OCDE.

No entanto, isso não quer dizer que o país não esteja seguindo os passos de uma inovação. A estratégia ‘’AI Portugal 2030’’ ocupa uma prioridade em vários campos do setor do Estado, com objetivos específicos de crescimento econômico, excelência científica e desenvolvimento humano[3]. Já no âmbito fundamentalmente jurídico, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 108/2017 aprovou um programa para renovar e aprimorar as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) do setor público, como a digitalização dos processos e a implementação do piloto de gravação e transcrição automática no sistema judiciário, com o fito de modernizar os tribunais[4].

Tendo isso em vista, Portugal não tem uma problemática vigente capaz de modificar por completo sua estrutura jurídica, pautando-se nitidamente na implementação de caráter superficial às ferramentas de auxílio. Essa perspectiva vai ao encontro dos riscos desse ambiente aos próprios julgadores, uma vez que para Joaquim Piçarra, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) português: ‘‘os juízes têm de estar muito atentos e preparados para rejeitar profundamente qualquer condicionamento ou redução da sua independência, que possa ocorrer pela via tecnológica’’[5].

Percebe-se, portanto, que diante das problemáticas conjunturais, e de realidades jurídicas díspares, o Brasil necessitaria de ferramentas mais incisivas de implementação para suprir uma necessidade de caráter fundamental, qual seja, o anseio de uma celeridade processual no país. Ainda assim, a implementação dessa tecnologia é também uma maneira de vislumbrar um Direito que muitas vezes é inviabilizado por uma morosidade jurídica. Contudo, o caráter imediatista e de curto prazo sobre o tema, pode ocasionar em implementações cuja operacionalidade viole inúmeros direitos fundamentais e que ultrapassem os níveis inicialmente desejados, minimizando uma supervisão e atividade humana dentro de uma estrutura jurídica complexa e ampla como a brasileira.

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[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Judiciário brasileiro tem ao menos 72 projetos de inteligência artificial nos tribunais. Observatório Nacional, Corona, 09.07.2020, p. 82-84. Disponível em:< https://observatorionacional.cnj.jus.br/observatorionacional/images/observatorio/coronavirus/clipping/Corona_09072020.pdf>.

[2] BRASIL. Projeto de Lei, nº 21/2020. Estabelece princípios, direitos e deveres para o uso de inteligência artificial no Brasil, e dá outras providências. Câmara dos Debutados, Gabinete do Deputado Eduardo Bismarck. Brasília. Disponível em:< https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1853928.>.

[3] PORTUGAL. AI Portugal 2030. Portuguese National Initiative On Digital Skills. Programa Nacional de Reformas. Iniciativa Nacional de Competências Digitais (INCoDe). Disponível em:<https://www.incode2030.gov.pt/sites/default/files/julho_incode_brochura.pdf.>.

[4] PORTUGAL. Resolução do Conselho de Ministros n.º 108/2017. Aprova a Estratégia TIC 2020 e o respetivo Plano de Ação. Assembléia da República. Diário da República, 1.ª série – n.º 143, 26 de julho de 2017, p. 4058. Disponível em: https://dre.pt/application/conteudo/107757007>.

[5] Público. (2018, 29 novembro). Juízes reclamam controlo sobre sistema informático dos tribunais. Disponível em:<https://www.publico.pt/2018/11/29/sociedade/noticia/juizes-querem-mandar-sistema-informatico-tribunais-1852977>.