O senso comum de que os juros no Brasil são elevados coloca em segundo plano a verdadeira discussão: quais fatores influenciam na formação dos juros e como atuar para reduzi-los. Dados do Banco Central mostram que cerca de um terço do spread bancário tem origem na inadimplência. Esta é, com folga, a maior fatia entre os componentes que influenciam o custo de crédito para famílias e empresas no Brasil.
O spread é a diferença entre o custo de captação de recursos pelos bancos e o que é efetivamente cobrado dos clientes na ponta final. O spread, portanto, não se confunde com a margem de lucro, que é apenas uma parte deste. A taxa final paga pelos tomadores equivale à soma do spread mais o custo de captação dos bancos. Em termos práticos, quanto maior o spread, maior o juro pago em operações de crédito, como o financiamento de um carro ou de um imóvel.
Segundo informações do Banco Central, o spread médio das operações de crédito realizadas em junho de 2022 no Brasil era de 17,7 pontos porcentuais (pp). Embora ainda abaixo do observado antes da pandemia (18,5 pp em fevereiro de 2020), devemos reconhecer que se trata de um número elevado para os padrões internacionais.
Este spread, no entanto, está longe de ser justificado pelo lucro dos bancos. Em seu estudo mais recente, que abarca a média dos anos de 2018 a 2020, o Banco Central informa que 31,9% do spread corresponde aos custos ligados à inadimplência. Outros 29,6% se justificam pelas despesas administrativas, enquanto 19,6% são formados por gastos com tributos e com o Fundo Garantidor de Créditos (FGC) – o fundo formado pelos bancos para cobrir eventuais perdas com aplicações na caderneta de poupança e em CDBs, entre outras, em caso de falência da instituição financeira. A margem financeira dos bancos corresponde a 18,9% do spread, ou seja, menos de um quinto do spread bancário.
“Quando olhamos os dados de decomposição do spread bancário, vemos que o maior peso é o do nível de inadimplência”, pontua a economista Isabela Tavares, especialista no mercado de crédito da Tendências Consultoria Integrada. “O que pesa é o atraso nos pagamentos, que acabam trazendo maior risco de crédito para os bancos, pressionando o custo para o tomador final.”
Esta pressão de custos, no entanto, não se resume à discussão sobre se o brasileiro é ou não um bom pagador. A questão é estrutural.
Sócio da consultoria tributária LacLaw, o advogado Flávio Lopes de Almeida lembra que o Brasil tem uma economia mais imprevisível que a de países desenvolvidos. “Aqui, a inflação varia demais”, explica. “Em 2021, por exemplo, a inflação se descolou completamente da renda média das famílias. Muitas pessoas tiveram que deslocar a parcela do orçamento, antes voltada para pagar empréstimos, para outras despesas.” A imprevisibilidade também entra na conta do spread, cobrado pelos bancos, como custo ligado à inadimplência.
Para fazer frente a possíveis perdas com as operações de crédito, os bancos são obrigados a reservar recursos em seus balanços. Um estudo realizado em 2017 pela consultoria Accenture, a pedido da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), mostra que as instituições brasileiras possuíam níveis bem maiores de Provisão para Devedores Duvidosos (PDD), na comparação com seus pares em países emergentes e desenvolvidos. Na ocasião, os gastos com PDD dos bancos brasileiros chegavam a 4,5% do total da carteira de crédito, bem acima do observado na mediana dos países emergentes (1,9%) e desenvolvidos (0,4%). Ainda que tais números sejam influenciados pela crise econômica que o país atravessou de 2014 a 2016, mesmo atualmente, os gastos com PDD representam cerca de 2,5% da carteira de crédito entre os maiores bancos do país, patamar ainda elevado para padrões internacionais. A PDD é a manifestação contábil do custo da inadimplência sobre o spread.
Recuperação do crédito
Entre os principais fatores que explicam o peso da inadimplência no spread está a dificuldade dos bancos na execução de garantias.
Hoje, boa parte das linhas de crédito disponíveis no mercado possui bens como garantia. No financiamento imobiliário, por exemplo, a casa ou o apartamento é a garantia; no crédito para compra de veículos, o próprio carro.
O problema é que, para ter acesso ao bem, os bancos são obrigados a acionar a Justiça. “Não há previsão para que a instituição financeira consiga, rapidamente, executar a garantia”, afirma Almeida, da LacLaw. “E se o banco tem dificuldades, isso vira um custo.”
No caso do setor imobiliário, a lei que estabeleceu a alienação fiduciária, em 1997, reforçou as garantias das instituições financeiras e abriu espaço para a expansão do crédito ao consumidor final. A partir dela, o imóvel financiado passou a ficar em propriedade fiduciária do banco, até que a dívida seja quitada. Em consequência, na situação de inadimplência, a retomada do bem é mais célere.
O efeito da redução do risco no mercado de crédito imobiliário foi perceptível. Em março de 2007 – já após a adoção da alienação fiduciária, mas ainda dentro do período de implementação da lei – o saldo total do financiamento imobiliário para pessoas físicas era de apenas R$ 36,6 bilhões, conforme os dados do Banco Central. Em função da maior segurança para as instituições, o mercado se desenvolveu nos anos seguintes. Em junho de 2022, o saldo foi de R$ 868,0 bilhões. Em duas décadas, a participação do crédito imobiliário no total das operações de financiamento para as famílias saltou de 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB) para 9,4%.
Em operações com veículos, no entanto, a legislação ainda carece de aperfeiçoamentos. Uma das soluções apresentadas é a possibilidade de recuperação extrajudicial do bem, prevista no Projeto de Lei nº 4.188, em tramitação no Congresso.
Na prática, se hoje para um banco recuperar um carro é necessário acionar a Justiça, caso o Projeto de Lei nº 4.188 seja aprovado, o processo de execução não precisará passar pelos tribunais. Assim como no caso dos imóveis, a expectativa é de que isso abra espaço para o aumento das operações de crédito.
De modo geral, o estudo da Accenture mostra que a taxa de recuperação de garantias no Brasil atualmente é de apenas 15,8% – bem abaixo dos 88,6% do Reino Unido, dos 84,5% da Coreia do Sul e dos 84,4% da Alemanha. Na prática, de cada R$ 100 de crédito em situação de inadimplência, apenas R$ 15,80 são recuperados pelos bancos.
Além de ser difícil recuperar o crédito, o processo é demorado. Os bancos brasileiros levam em média quatro anos para ter os recursos de volta, por meio da execução de garantias. Na Austrália e no Reino Unido, o prazo é de um ano. Mesmo países em desenvolvimento, como Chile (2 anos) e África do Sul (2 anos), possuem prazos menores.
O custo da Justiça também é mais alto no Brasil. As instituições financeiras pagam 12% do valor do bem no processo de recuperação do crédito. Isso inclui taxas judiciais, tributos, honorários dos administradores da insolvência, leiloeiros e advogados, entre outras despesas, dependendo do tipo de crédito. Na Coreia do Sul, o custo é de 4%; no Reino Unido, de 6%.
Assim, ao calcular a taxa de juros para o tomador final, as instituições financeiras são obrigadas a considerar o emaranhado sistema jurídico brasileiro.
Luz no fim do túnel
Especialistas do mercado de crédito e o próprio Banco Central vêm defendendo que a redução do spread no Brasil passa pela melhora do ambiente de negócios, em especial do jurídico.
Uma das iniciativas neste sentido é a do Projeto de Lei nº 4.188, tratado como o novo marco legal de garantias. Aprovado na Câmara dos Deputados, a proposta está atualmente em tramitação no Senado.
O Projeto de Lei nº 4.188 prevê uma série de aperfeiçoamentos sobre o tema, como a possibilidade de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis; a extensão da alienação fiduciária a novas operações de crédito; e a constituição de alienação fiduciária sobre bem futuro, entre outros pontos. São inovações muito importantes, que podem contribuir de forma efetiva para uma maior recuperação de garantias no mercado de crédito, aperfeiçoando o ambiente de negócios e, com isso, permitindo, no médio e no longo prazo, uma redução dos spreads bancários e das taxas de juros cobradas de empresas e famílias.
O Projeto de Lei nº 4.181 também prevê a possibilidade de criação de Instituições Gestoras de Garantias (IGGs). Essas entidades, que poderão ter bancos e fintechs como clientes, vão avaliar e gerir as garantias em operações de crédito. Além disso, ficarão responsáveis pela execução de garantias em caso de inadimplência.
Embora se trate de uma inovação interessante, o desenvolvimento das IGGs não deve ser rápido, dada a complexidade de estruturação. Assim, os benefícios devem vir mais numa perspectiva de longo prazo.