Empréstimos

Como a insegurança jurídica sobre garantias encarece o crédito no Brasil

Decisões judiciais oneram e estendem prazo para execução de garantias

insegurança jurídica garantias empréstimo
Crédito: Marcos Santos/USP Imagens

Economistas argumentam que empréstimos possuem papel decisivo para fazer a economia de qualquer país crescer. De acordo com dados do Banco Mundial, no fim de 2020, o saldo de crédito para o setor privado no Brasil equivalia a 70% do Produto Interno Bruto (PIB), incluindo o crédito bancário e as operações realizadas por meio do mercado de capitais. Esse número coloca o nosso mercado de crédito num patamar intermediário, em linha com os países emergentes, mas muito distante dos países desenvolvidos.  Na média dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o clube dos países ricos em que o Brasil tenta entrar, o crédito concedido ao setor privado correspondia em média a 160% do PIB, nesse mesmo período. Temos, portanto, um longo caminho a percorrer; e hoje há um consenso em nossa sociedade de que é fundamental ampliar de forma significativa o volume das operações de crédito, bem como reduzir o seus custos para famílias e empresas, se quisermos voltar a crescer de forma sustentada. 

Este consenso, de que a ampliação e o barateamento do crédito são vitais para a prosperidade econômica, pode ser constatado no fato de que promessas com esses objetivos constarem nos programas de governo dos principais candidatos presidenciais. Mas, no Brasil, a divergência e os conflitos logo aparecem quando os credores precisam recuperar dinheiro dado a devedores inadimplentes. Aí, a recuperação de crédito frequentemente se complica em disputas excessivamente lentas na Justiça. Isso ocorre mesmo quando bens são dados em garantia aos credores, observando-se, na compreensão destes, todos os procedimentos legais e regulatórios.

O acúmulo de julgamentos favoráveis a devedores inadimplentes virou um dos principais motivos para que o crédito seja tão caro no Brasil. Com a promessa de aprimorar as regras de garantias em operações de crédito, foi recentemente aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 4188/2021 — o texto aguarda votação no Senado.

O empresário Luís Eduardo da Costa Carvalho, presidente da Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi), exemplifica como a recuperação de crédito pode virar um pesadelo jurídico mesmo quando o credor tem algum imóvel ou bem como garantia. Ele diz isso por experiência própria, porque sua empresa já foi impedida de exercer a garantia sobre um imóvel depois que a Justiça do Trabalho expediu mais de 40 ordens de penhora para esse bem, a pedido de outras vítimas de um devedor inadimplente. Essa situação é comum, destaca Carvalho, o que obriga credores a constituir advogados na Justiça para tentar impedir o repasse a terceiros de imóveis que estavam garantidos por alienação fiduciária. 

“É um processo absurdo, porque o juiz supostamente deveria saber que imóvel de alienação fiduciária não é passível de sofrer qualquer tentativa de recuperação por parte de credor trabalhista. Isso dá ao credor o ônus de anular aquela ordem de penhora. Tem que constituir advogado, fazer petição ao juiz do Trabalho, explicar o que o juiz já deveria saber, para que ele então dê baixa naquela penhora”, explica o presidente da Acrefi. 

“São essas coisas que tornam a recuperação de crédito no Brasil um problema realmente caro, complexo e demorado. A incerteza jurídica acaba precificada e impactando o bolso do tomador do crédito”, acrescenta.

A insegurança nas recuperações judiciais

A advogada Helen Naves, sócia do H. Naves Advogados e especialista em Direito Bancário, destaca que também em processos de recuperações judiciais é rotineiro que magistrados dificultem a tomada de imóveis dados como garantia por devedores inadimplentes. Ela explica que esses entendimentos contrários à execução de garantias costumam afrontar a própria norma que disciplina recuperações judiciais e falências. 

“Bens dados em garantia não deveriam entrar em recuperação judicial, porque o devedor não tem propriedade plena deles. Quem tem a propriedade é o credor, enquanto a dívida estiver em vigor”, explica a advogada referindo-se à alienação fiduciária. Se o devedor entra em recuperação judicial, o banco poderia executar o contrato e vender esse imóvel dado em garantia. Mas, o juiz da recuperação judicial algumas vezes acaba por entender que esse imóvel é essencial para a continuidade da empresa, ou que se vender o imóvel a empresa pode falir. “É uma situação ruim, porque na prática o juiz acaba desconsiderando o que está na lei, praticamente ignorando a garantia, em benefício de um devedor.”

Embora existam normas que protejam credores, a disciplina legal da execução de garantias é “muito fragmentada no Brasil, perpassando diferentes capítulos do Código Civil e uma dezena de leis especiais, cada uma com suas peculiaridades”, explica Anderson Schreiber, professor titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 

Para além dessa regulamentação ainda “fragmentada”, Schreiber avalia que a recuperação de crédito é especialmente prejudicada pela “histórica resistência do direito brasileiro a procedimentos extrajudiciais para a recuperação de garantias”. 

“A intervenção judicial ajuda, naturalmente, a evitar abusos, mas lança um custo significativo sobre o credor, ao mesmo tempo em que contribui para uma demora acentuada, que acaba sendo benéfica para devedores que querem retardar o pagamento”, afirma o professor da UERJ. 

“Não se pode tratar o abuso do credor como regra e exigir controle judicial sobre tudo por conta disso”, acrescenta. 

Dificuldade de localizar bens

Outra dificuldade enfrentada pelos credores é efetivamente localizar e apreender ativos que foram dados em garantias, especialmente no caso de veículos, máquinas e equipamentos.

No caso de automóveis, fica registrado no Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) que o veículo é vinculado a uma alienação fiduciária, mas o problema é saber onde o veículo foi parar e evitar avarias.

O sistema brasileiro ainda é muito desorganizado, lento e extremamente dependente do Judiciário. Uma das dificuldades é a falta de um sistema centralizado para busca e localização de ativos, que permita sua rápida identificação e oneração. Embora a Lei nº 14.195/21 tenha autorizado a criação do Sistema Integrado de Recuperação de Ativos (Sira), tal sistema ainda não foi regulamentado pelo Poder Executivo. Idealmente, o sistema deveria se inspirar no modelo dos Estados Unidos, onde há um registro centralizado para ônus sobre ativos em garantias de operações financeiras”, avalia o advogado Daniel Laudisio, sócio da área bancária do Cescon Barrieu. 

Insegurança jurídica “matou” o leasing no Brasil

Na crônica de perdas provocadas pela insegurança jurídica, o mercado de leasing se tornou exemplo notório de problemas gerados pelo que empresários e advogados chamam de desequilíbrios em leis e decisões judiciais. No auge desse mercado, no fim de 2009, havia cerca de R$ 110 bilhões em operações de leasing no Brasil. De lá pra cá esse tipo de operação foi muito reduzida. Em junho de 2022 a carteira de leasing em aberto tinha caído para R$ 13 bilhões, de acordo com as estatísticas da Associação Brasileira das Empresas de Leasing (ABEL). 

A execução de garantias explica parte da decadência do leasing. Isso porque, ainda que as empresas de leasing sejam as proprietárias legais de bens vendidos em leasing, essas empresas precisam abrir processos de reintegração de posse contra devedores inadimplentes. É a mesma situação de credores em operações de crédito direto ao consumidor (CDC). Ou seja, é preciso vencer um processo judicial e depois é preciso que a Justiça consiga localizar e apreender o bem. Nos Estados Unidos, onde operações de leasing representam mais da metade dos empréstimos, em caso de calote, a empresa de leasing pode simplesmente usar sua cópia de chave e retomar o veículo de um devedor inadimplente, exemplifica Osmar Roncolato Pinho, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Leasing (ABEL). 

“Discussão no Judiciário você sabe quando começa, mas não sabe quando termina. Na dúvida, gera um risco nessa carteira de crédito. Se botar o preço desse risco, deixa de ser competitivo”, acrescenta o presidente da ABEL.  

Não raro se perdiam e ainda se perdem anos para que um credor recupere um veículo dado como garantia. Nessa demora, é comum que o veículo se desvalorize não só pela passagem do tempo, mas também pelas avarias provocadas pelo devedor ou pelo abandono em um pátio de veículos apreendidos.

A derrocada do leasing foi ainda acompanhada por insegurança jurídica também na cobrança de tributos. Primeiro, empresas passaram a ser autuadas por prefeituras para que pagassem Imposto sobre Serviços (ISS) pelas receitas obtidas com leasing. Isso motivou uma gigantesca guerra judicial, em que, ao fim, a cobrança de ISS foi considerada constitucional. Mas, essa guerra não terminou. O Supremo Tribunal Federal (STF) ainda vai julgar se municípios podem fazer essa cobrança de ISS em função do domicílio do prestador de serviço ou do domicílio do tomador de serviço, e em que condições. 

Prefeituras continuam cobrando ISS em operações de leasing, o que é também mais oneroso para empresas e clientes do que a cobrança de Imposto Sobre Operações Financeiras (IOF), incidente em empréstimos do tipo Crédito Direto ao Consumidor (CDC). 

Enquanto a discussão sobre o ISS se desenrolava, apareceu outro passivo tributário. Empresas de leasing passaram a ser cobradas para pagar o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) de compradores que ficaram inadimplentes perante governos estaduais. 

“Com isso, apareceu um passivo fiscal muito grande em cima das companhias de leasing, que então praticamente deixaram de atuar no mercado de veículos. Por isso, hoje, 90% do volume de leasing está em cima das pessoas jurídicas, e em máquinas e equipamentos”, explicou Roncolato Pinho. 

Assim, o brasileiro ficou sem a opção de comprar veículos por leasing, o que permitiria manter o veículo sempre novo e com manutenção em dia, como ocorre nos Estados Unidos nesse tipo de operação.

“O mercado de leasing é um exemplo de como a insegurança jurídica pode matar uma alternativa de crédito”, conclui Roncolato Pinho, executivo do setor bancário e presidente da ABEL.

Sair da versão mobile