diversidade

Primeira mulher cônsul da Alemanha em SP defende cotas para ampliar igualdade

Martina Hackelberg avalia percalços para as mulheres no serviço diplomático e os bons exemplos do setor privado alemão

Martina Hackelberg
Martina Hackelberg, cônsul-geral da Alemanha em São Paulo/ Crédito: Divulgação GK SP/Marcelo Justo

Quem visita o escritório do Consulado-Geral da Alemanha em São Paulo, na avenida Faria Lima, logo se depara com uma parede onde estão pendurados os retratos de 19 homens. São os ocupantes do posto de cônsul-geral na capital paulista no pós-2ª Guerra – faltando pendurar um vigésimo, com o antecessor de Martina Hackelberg. Ela é a primeira mulher a exercer o cargo em mais de 150 anos de representação diplomática alemã na cidade.

Em meio a discussões nas empresas e no mercado financeiro de iniciativas para estimular a ocupação de espaços de poder por mais mulheres, Hackelberg defende a introdução de cotas e cita exemplos bem-sucedidos do setor privado alemão.

Nesta entrevista ao JOTA, concedida por email, Hackelberg, 47, aborda as dificuldades enfrentadas por mulheres no serviço diplomático – em São Paulo, apenas 9 das 44 representações diplomáticas são chefiadas por mulheres.

Ela também cita a importância de se abandonar velhos clichês, como direcionar mulheres para gerir a política cultural e deixar os temas econômicos nas mãos dos homens.

Em mais de 150 anos de representação diplomática alemã na cidade de São Paulo a senhora é a primeira mulher a assumir o posto de cônsul-geral. Por que isso demorou tanto?

Esse atraso não afeta apenas a gestão do Consulado-Geral em São Paulo. Muitos outros cargos de alto escalão no Ministério das Relações Exteriores até agora só foram ocupados por homens. Há muitas razões para isso: por um lado, desde a fundação da República Federal da Alemanha até os anos 2000, mais homens do que mulheres foram contratados a cada ano.

E mesmo para as mulheres que ingressaram no serviço diplomático, tem sido mais difícil fazer carreira. Uma das razões é que os homens em cargos de gestão confiavam os cargos mais importantes principalmente a outros homens. Além disso, há a questão de conciliar a carreira com a família. Nesse sentido, a situação do Ministério das Relações Exteriores corresponde à situação social das mulheres em geral. Também em muitas áreas da política e dos negócios, os homens continuam a dominar até hoje. Finalmente, há agora uma política ativa para garantir a participação igualitária das mulheres. Isso é importante, porque a igualdade também é uma questão de democracia.

O Ministério Federal das Relações Exteriores e a atual ministra, Annalena Baerbock – aliás, também a primeira ministra das Relações Exteriores da Alemanha –, buscam vigorosamente tanto a Política Externa Feminista decidida no acordo de coalizão [do atual governo alemão liderado por Olaf Scholz] quanto uma política de pessoal dentro do serviço que visa promover as mulheres.

Embaixadas importantes, como por exemplo em Washington e Pequim, agora são ocupadas por mulheres. A proporção de mulheres em cargos de gestão no ministério aumentou para 23,5%. Tendo em vista que as mulheres já atingiram a metade do pessoal, ainda há espaço para melhorias! Pode-se certamente reclamar que o desenvolvimento não está indo rápido o suficiente. Porém, o importante é que avancemos agora!

Essa questão não é exclusividade da Alemanha. Dados do Guia Diplomático 2021/2022 apontam que apenas 9 das 44 representações diplomáticas em São Paulo são chefiadas por mulheres. Que barreiras o serviço diplomático pode impor às mulheres em relação a outras funções?

No serviço diplomático, a questão de conciliar carreira e família é particularmente desafiadora. Porque, como diplomatas, nós mudamos para um país diferente a cada três ou quatro anos. Isso significa que é difícil para o cônjuge seguir uma carreira própria. Até hoje, muitos homens acham difícil praticar essa renúncia para acompanhar suas esposas pelo mundo. Há também desafios especiais para mães solteiras.

O Ministério das Relações Exteriores recentemente vem adotando abordagens inovadoras para facilitar a vida das famílias: por exemplo, agora há a opção de dois diplomatas compartilharem um cargo na forma de compartilhamento de trabalho, para que ainda haja tempo suficiente para cuidar dos filhos (dois diplomatas assumindo em conjunto um único cargo). Abordar tais questões também é importante para que as mulheres sejam encorajadas a ousar ocupar cargos de liderança.

E precisamos nos livrar de velhos clichês: por que as mulheres deveriam ser mais capazes de conduzir a política cultural e os homens mais capazes de seguir a política econômica? São Paulo é o polo industrial mais importante não só do Brasil, mas da América Latina. Tenho certeza de que nós, mulheres, podemos contribuir com o mesmo sucesso para fortalecer as relações comerciais e aprofundar as relações científicas e culturais como nossos colegas homens.

A senhora enfrentou dificuldades em sua trajetória que hoje avalia terem sido decorrência do machismo?

Sinto que minha carreira não teria sido diferente se eu fosse um homem. No entanto, estou satisfeita que, após constantes mudanças, hoje haja uma maior sensibilidade nas relações de trabalho entre homens e mulheres. Felizmente, hoje há uma consciência crescente de onde está a linha entre um elogio e uma observação inadequada ou assédio. Embora muitas carreiras possam ter sido atrapalhadas por comportamentos e decisões machistas, podemos ver hoje uma política séria de reconhecer talentos independentemente do gênero.

Como a senhora avalia o debate pela inclusão das mulheres em diversos âmbitos da sociedade na Alemanha e no Brasil? O que aproxima os dois países e onde estão as diferenças?

Há uma discussão ativa sobre isso nos dois países, que ganhou força nos últimos anos, e muitos dos desafios envolvidos são semelhantes. Isso inclui a questão de como aumentar o número de mulheres eleitas na política e em cargos gerenciais nos negócios. Outro ponto é a igualdade salarial. Como pode ser que em ambos os países as mulheres ganhem cerca de 20% menos pelo mesmo trabalho?

No entanto, trata-se também de eliminar todas as formas de discriminação na sociedade, de acabar com todas as formas de violência contra mulheres e meninas e de igualdade de acesso, em particular à educação, saúde e recursos financeiros. Este último aspecto, como a discussão sobre direitos sexuais e reprodução das mulheres, me parece ter um papel ainda maior no debate brasileiro do que no meu país.

Um paralelo infeliz é que em ambos os países há grupos que se sentem ameaçados pela igualdade. Porém a igualdade de gênero é um direito humano e, como tal, também está consagrado em nossas constituições. Para que a igualdade de direitos legalmente garantida se reflita de fato em uma sociedade com igualdade de oportunidades, é necessário um esforço contínuo de todos. O estabelecimento de redes de mulheres, o intercâmbio mútuo e a promoção de projetos podem dar uma importante contribuição para isso. Foi justamente com esse objetivo que o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha fundou a iniciativa UNIDAS em 2019. Ela apoia ativistas dos direitos das mulheres em toda a América Latina. Especialmente aqui no Brasil há tantas mulheres fortes cujo comprometimento pode ser um modelo para outras.

Das 423 empresas listadas na B3, a Bolsa brasileira, cerca de 60% não têm nenhuma mulher entre seus diretores estatutários e 37% não têm nenhuma mulher em seu conselho de administração. Para tentar mudar esse cenário, a B3 propõe uma regra que exija a presença de ao menos uma mulher e um integrante de grupos minorizados nos conselhos de administração das empresas listadas. Como a senhora avalia propostas como esta?

Na Alemanha, a introdução de cotas obrigatórias para mulheres em conselhos de supervisão tem sido debatida há muito tempo. Enquanto se apostou na voluntariedade, houve pouco progresso. Na Alemanha, como em outros nove países europeus, existe desde 2016 uma cota obrigatória de gênero de 30% para os conselhos fiscais de empresas cotadas na Bolsa e com conselho fiscal paritário.

Após a sua introdução, a proporção de mulheres em cargos de gestão nas mais de 100 empresas que se enquadravam na cota fixa de gênero aumentou significativamente mais depressa e em maior número do que nas outras empresas. Subiu de 25% em 2015 para quase 36% agora. Em contraste, a proporção de mulheres nos conselhos de fiscalização sem cota fixa ainda é de apenas 19,9%. Isto mostra que os requisitos vinculativos são um instrumento eficaz. A introdução de cotas também deve ser do interesse das próprias empresas. Estudos mostram que a diversidade é um fator importante para o sucesso econômico de uma empresa, principalmente no nível gerencial.

De que forma a agenda da igualdade de gênero vai aparecer neste seu período à frente do Consulado-Geral da Alemanha em São Paulo que se inicia agora?

Defender os direitos das mulheres e a diversidade é um objetivo importante da política externa alemã e uma tarefa para todas as missões diplomáticas alemãs em todo o mundo, independentemente de serem comandadas por uma mulher ou por um homem.

Como a primeira cônsul-geral em São Paulo, esta tarefa também é um assunto muito pessoal e próximo ao meu coração. Uma das medidas concretas que planejei é fortalecer os contatos com as mulheres nos negócios, na política, na cultura, na ciência e na mídia. Gostaria de abordá-las ativamente e contribuir para fortalecer ainda mais as relações bilaterais, especialmente por meio de redes de mulheres.

Em nossos eventos, sempre garantiremos que as mulheres sejam representadas da forma mais igualitária possível, por exemplo, na participação em painéis. O tema também terá um papel importante para visitas de delegações e apoio a projetos. Por fim, também tentamos dar um bom exemplo dentro do Consulado-Geral, como na contratação de pessoal. Estou muito ansiosa para conhecer as muitas mulheres instigantes de São Paulo e conhecer suas perspectivas e iniciativas. Ficaria muito feliz se, durante meu tempo como cônsul-geral, conseguisse dar novos impulsos que tornem as relações alemã-brasileiras ainda mais fortes e próximas do que já são.