Mariana Gonzalez

Diversidade

Dos 99 aprovados no 189º Concurso de Ingresso na Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tjsp">TJSP</a>), em fevereiro, que aparecem em foto divulgada pelo próprio tribunal, há cerca de 60 homens e 40 mulheres, com idades distintas, mas pouquíssimos destoam do padrão pele clara –embora a resolução 203/2015 do Conselho Nacional de Justiça determine “reservar a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para servidores e juízes”. 
A imagem foi alvo de diversas críticas e questionamentos nas redes sociais acerca da falta de diversidade racial, mas, na realidade, representa a composição geral do magistrado brasileiro: segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), apenas 12,8% dos magistrados são negros no Brasil e a previsão é que o país só iguale o número de brancos e negros neste setor daqui a mais de três décadas, entre 2056 e 2059. No concurso em questão, de 99 aprovados, apenas 5 entraram pelas cotas para pessoas negras, quatro homens e uma mulher. Já das 53 vagas exclusivas, apenas 5 foram preenchidas – o equivalente a 9,43% das vagas. Das 200 vagas de ampla concorrência, 99 foram preenchidas – ou seja, uma proporção de 49,5%, bem superior às das vagas para cotistas.
A reportagem do JOTA ouviu a juíza do Trabalho Bárbara Ferrito, a pesquisadora do Núcleo de equidade judicial da Fundação Getúlio Vargas Luciana de Oliveira Ramos e o advogado e professor Adilson Moreira, especialista em Direito Antidiscriminatório, para entender por que, mesmo com a reserva de vagas, pessoas negras ainda não chegam perto de ocupar 20% dos postos da magistratura – o racismo estrutural somado à dificuldade de se preparar para as quatro fases do concurso ajudam a responder a essa pergunta. 
“São pessoas que agora ocuparão cargos de juízes e que estarão decidindo o futuro de dezenas, possivelmente centenas de milhares de pessoas. Essas pessoas têm três características em comum: são brancas, são quase todas de classe média alta e, muito provavelmente, estudaram nas melhores faculdades de Direito do país”, diz Adilson Moreira, que também é autor de “Tratado de Direito Antidiscriminatório". “Embora certamente tenham se esforçado para passar neste concurso, isso não é produto apenas do esforço pessoal, mas de todo um processo que garante oportunidades para uns e desvantagens para outros. E esse processo se chama racismo.”
<h3>Mesmo com cotas, concurso afasta pessoas negras</h3>
A resolução do CNJ que estabeleceu a reserva de 20% das vagas nos concursos para magistrados negros também estabelece que esse critério deve ser baseado na autodeclaração dos candidatos, mas que “um juiz, um médico e um assistente social ficarão responsáveis por avaliar pessoalmente se o candidato se encaixa mesmo no perfil, com base no fenótipo de cada inscrito”. 
Nesse método, os aprovados são convocados na ampla concorrência, alternadamente e proporcionalmente de acordo com o número de vagas instituído para pessoas negras e também pessoas com deficiência. 
Ou, nas palavras do próprio TJSP, em nota enviada ao JOTA: “Os candidatos negros concorreram a todas as vagas destinadas à livre concorrência e, simultaneamente, às vagas a eles destinadas, em razão das cotas, correspondentes a 20% das vagas da livre concorrência. Isso significa que, se aprovados na nota de corte da lista de livre concorrência, passam a integrar a lista geral e não serão considerados na lista final dos aprovados pelas cotas”. 
De acordo com uma pesquisa feita pelo CNJ ao longo de 2020 e divulgada no ano passado, a reserva de vagas ajudou a aumentar em 9 pontos percentuais o número de juízes negros nomeados no país –eram 12% em 2013 e 21,6% em 2020– mas, na prática, essa alta ainda tem pouco efeito no quadro geral de juízes: hoje, menos de 13% são negros, contra 85% brancos. 
As cotas, da forma como estão estabelecidas, são insuficientes, afirma a juíza Bárbara Ferrito. 
“Essa política afirmativa só produz efeitos práticos na primeira fase, em que há uma garantia de que esse número de 20% vai passar para a segunda fase. Mas, na segunda fase, muitos acabam não alcançando. Do jeito que é moldada no Brasil, hoje, essa política é insuficiente e no final do concurso a gente não alcança o número de aprovados para preencher a cota”. 
E um dos principais motivos para isso, segundo os três especialistas ouvidos para a reportagem, é que a segunda fase do concurso –em que os candidatos precisam prolatar uma sentença de forma oral e diante de uma banca de avaliadores– requer um preparo especial e, principalmente, muito caro. Há professores que cobram até R$ 1 mil para corrigir uma sentença e o ideal é fazer diversos desses exercícios. “Esse critério afasta candidatos negros de uma preparação adequada para o concurso”, avalia a juíza. 
Adilson Moreira acrescenta que, além dos altos custos para a preparação, a fase de prolação de sentença exige não apenas conhecimentos adquiridos durante a faculdade de Direito, como a primeira fase, de perguntas objetivas, mas escrita e vocabulário, "habilidades que refletem o tipo de educação que o candidato teve a vida inteira, desde os primeiros anos de escola”. “Quando você é filho da classe média alta, tem acesso a livros, seus pais são advogados e usam vocabulário que a maioria das pessoas pobres não têm, também tem acesso a livros e aprende línguas estrangeiras desde muito pequeno. Toda essa trajetória entra em jogo na hora de fazer a prova de sentença e, estruturalmente, pessoas brancas e de classe média levam vantagem”. 
Essa fase oral do concurso tem ainda um outro problema, apontado pela pesquisadora Luciana Ramos de Oliveira: o viés de avaliadores, que, sendo maioria brancos, “estão mais abertos às respostas de candidatos brancos. Isso é cognitivo”, afirma. 
Luciana cita um experimento feito em audições para a Orquestra Gulbenkian, em Portugal. Quando essas audições passaram a ser às cegas, nos anos 1970, com o músico atrás de uma cortina que impedia que os avaliadores fossem afetados pelo aspecto físico do candidato e portanto julgariam apenas as habilidades artísticas, sem um viés sexista, por exemplo, o número de mulheres aprovadas subiu significativamente. “Não tem como aplicar o truque da cortina no concurso para juiz, mas isso deixa claro como esses vieses existem”. 
Os números corroboram as explicações dos especialistas entrevistados pelo JOTA: a pesquisa do CNJ mostrou que, em um concurso aberto para a Magistratura do Trabalho em 2020, 26,2% dos inscritos eram negros. Após a primeira fase, de perguntas objetivas, essa porcentagem chega a aumentar para 28,7%, indicando que proporcionalmente mais negros do que brancos foram aprovados, mas cai drasticamente para 17% após a fase de prolação de sentença. 
Uma curva muito similar aconteceu neste concurso específico para juízes do TJSP. Segundo o órgão, foram aprovados 128 candidatos negros na primeira etapa, 8 na segunda etapa, 8 na terceira e 5 na última etapa, de exame oral. Ou seja, apenas 3,9% dos aprovados na 1ª fase foram aprovados ao final do concurso. No concurso como um todo, 10,1% dos aprovados na primeira etapa foram aprovados ao final, o que demostra que, a partir da segunda etapa, quando as cotas não mais operam, o corte de candidatos negros é maior. 
“Que tipo de igualdade ou redução de diferenças está se pretendendo, com esse tipo de ação afirmativa, que atua apenas na primeira etapa e comprovadamente não aprova 20% de candidatos negros?”, questiona a pesquisadora. “Esse sistema não tem feito grande diferença, tem sido inefetivo. É quase como dizer que não há cotas. E isso é problemático porque acaba servindo como justificativa para dizer: ‘Olha aí, a gente aplicou as cotas, mas não funciona’.
Tudo isso, afirma Adilson Moreira, faz com que bacharéis em Direito negros sequer considerem tentar carreira na magistratura. 
“A maioria das pessoas negras chegando agora às faculdades de Direito são a primeira geração de famílias de classe média baixa e classe baixa, portanto, a primeira prioridade ao começar a pensar na vida profissional é sobreviver e garantir retorno econômico para sua família. Por isso, começam eliminando certas possibilidades, como o concurso para juiz, porque a competição é feroz e eles não têm condições financeiras de passar dois, três anos, ou mais, se dedicando inteiramente aos estudos para o concurso”, explica. “Dificuldades socioeconômicas pressionam pessoas negras em uma direção ou outra”. 
<h3>Por que isso precisa mudar? </h3>
Tanto o professor quanto a juíza e a pesquisadora avaliam que um Judiciário formado por uma maioria de juízes brancos gera uma série de consequências graves –tanto em termos de representatividade, porque “se não existem pessoas negras em um espaço de poder, passa a mensagem que elas não podem estar ali”, explica Bárbara Ferrito; quanto para a democracia.
“Para ter um panorama da complexidade dos fatos, um juiz precisa estar aberto a diversas verdades, diversas formas de ver um fato social. E, com um Judiciário formado por um único grupo social, a realidade de vários brasileiros é apagada.  “Isso é um problema não só para os negros mas para a Justiça brasileira”, fala. “Um juiz negro não está lá para defender os negros, ele tem que manter a imparcialidade, mas o olhar que ele lança sore o processo é o que faz diferença”. 
Adilson Moreira dá exemplos práticos: “Aquelas pessoas [que aparecem na foto que abre a reportagem] foram socializadas em um país que reproduz a noção de que o racismo é irrelevante. Esses novos juízes, portanto, podem não ter conhecimento adequado dos fatores que impedem o acesso e o gozo de direitos a pessoas negras. Então, na prática da profissão, ou eles vão recorrer a estereótipos raciais que circulam na sociedade ou estarão convencidos de que o Direito oferece todas as respostas para resolver qualquer tipo de questão e que devem apenas aplicar a norma como ela é, considerando que todas as pessoas têm as mesmas oportunidades”. 
Luciana Ramos de Oliveira concorda, e completa: “Não há neutralidade na decisão. Existe uma obrigatoriedade de justificar essas decisões, e isso é importante, claro, mas não significa que essas decisões são neutras”. 
O ideal, ela acredita, é que os concursos para a magistratura seguissem o formato dos vestibulares que também têm reserva de vagas: a cota acompanha o candidato da primeira até a última fase. Ela vê, ainda, outras duas possibilidades de solucionar o problema: reduzir a nota de corte para candidatos negros nas fases seguintes ou, ainda, incluir mais pessoas negras nas bancas de avaliação das fases orais, em que os candidatos se apresentam pessoalmente aos julgadores, e é mais difícil driblar o viés racial. 
Em nota enviada ao JOTA, o TJSP afirmou, por meio das desembargadoras Silvia Rocha e Luciana Almeida Prado Bresciani, ambas integrantes da Banca Examinadora do 189º Concurso de Ingresso na Magistratura, que “houve estrito respeito às normas referentes às cotas e aos termos do edital”.

juizes tjsp concurso 189

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JOTA

Apesar de TJSP haver reservado 53 vagas para pessoas negras, no último concurso apenas 5 foram preenchidas

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