Corte IDH

Peru é condenado por discriminação contra comunicador popular por orientação sexual

Judiciário peruano requisitou provas ‘difíceis e desproporcionais’ ao julgar ação que denunciava ato discriminatório

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Juízes da Corte IDH no STJ / Crédito: Carlos Moura/Flickr/@STJnoticias

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Estado do Peru nesta terça-feira (11/4) em razão de atos discriminatórios relacionados à orientação sexual do comunicador popular Crissthian Manuel Olivera Fuentes.

Segundo relato da vítima, em 11 de agosto de 2004, ele tomava café com seu então namorado em uma cafeteria, dentro de um supermercado na capital Lima, quando ambos foram subitamente abordados por seguranças e convidados a se retirar.

Em audiência realizada em Brasília, em 24 de agosto de 2022, Fuentes disse que os funcionários ordenaram que eles parassem com “aquelas atitudes”, porque “aquilo” não era permitido na cafeteria. Fuentes conta que eles apenas liam poemas um para o outro, sentados “muito juntos”. Nada além disso.

Os seguranças tentaram puxá-lo pelo braço, ao que ele se esquivou e seguiu sentado com o namorado, contou. Em seguida, a gerente da cafeteria interveio: eles teriam que sair porque um cliente havia prestado queixa, alegando que estava com filhos pequenos e que eles não poderiam continuar com aquelas demonstrações de afeto.

Em sua defesa, o responsável pelo supermercado sustentou que o casal foi repreendido porque cometia “atos de homossexualidade”. Também disse que Fuentes havia protagonizado “incidentes” em outros locais e que sua conduta feria a moral e os bons costumes coletivos.

Fuentes ajuizou, em outubro de 2004, uma ação por discriminação sexual ao Instituto Nacional de Defesa da Competência e Proteção da Propriedade Intelectual (Indecopi), um órgão administrativo de proteção ao consumidor. Para comprovar que foi tratado com discriminação na cafeteria, ele apresentou uma reportagem, feita dias depois, na qual um repórter heterossexual repete as mesmas condutas com sua namorada em um supermercado da mesma rede sem que nada aconteça.

Em agosto de 2005, a denúncia foi declarada sem efeito pelo Indecopi, sob a justificativa de que não havia provas da suposta discriminação e que o interesse da criança facultava ao supermercado permissão para solicitar que ele e o namorado parassem com as demonstrações afetivas.

Inconformado, o comunicador popular pediu a nulidade da decisão administrativa judicialmente, diante da Corte Superior de Lima, mas o pedido foi negado com a mesma justificativa do órgão administrativo: as provas eram insuficientes. A decisão foi mantida em todas as instâncias superiores do Peru.

Ao apresentar as alegações finais escritas, o Estado voltou a afirmar que “não ficou provado que houve diferença de tratamento, muito menos que tivesse sido motivada pela orientação sexual do senhor Olivera”. De acordo com os representantes do Peru, não houve interferência direta de agentes públicos nas alegadas violações de direitos. O Estado ainda alegou que não existe um “quadro de discriminação estrutural” no Peru e que as autoridades têm atuado para alcançar a igualdade em relação ao tema.

A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos

Na sentença, a Corte IDH salientou que, desde a sentença no caso Atala Riffo e crianças vs. Chile, a orientação sexual e a identidade de gênero são protegidas pela Convenção sob a expressão de “qualquer outra condição social” mencionada no artigo 1.1 do tratado.

“As formas de discriminação contra pessoas LGBTIQ+ se manifestam em inúmeros aspectos, tanto na esfera pública quanto na privada. A esse respeito, esta Corte reconheceu em sua jurisprudência que as pessoas LGBTIQ+ têm sido historicamente vítimas de discriminação estrutural, estigmatização, bem como diversas formas de violência e violação de seus direitos fundamentais. Essa violência contra pessoas LGBTIQ+ é baseada no preconceito, geralmente percepções negativas em relação a essas pessoas ou situações estranhas ou diferentes e pode ser motivada pelo ‘desejo de punir aqueles que desafiam as normas de gênero”, escreveram os juízes na decisão.

O tribunal destacou que a população LGBTQI+ sofre discriminação histórica no Peru – até 2017, não havia nenhuma informação estatística sobre essa população. Neste ano, o Instituto Nacional de Estatística e Informática realizou a “Primeira Pesquisa Virtual para pessoas LGBTI”, a fim de que “poderes públicos e a sociedade civil [possam] implementar políticas, ações e estratégias que garantam seu reconhecimento e proteção nos diferentes públicos e esferas privadas”.

Conforme o estudo, 62,7% dos peruanos LGBTQI+ afirmaram ter sido vítimas de violência ou discriminação, sendo 17,7% vítimas de violência sexual. Apenas 4,4% do total de pessoas agredidas ou discriminadas denunciaram o ocorrido às autoridades, sendo que, destas, 27,5% afirmaram ter sido maltratadas e 24,4% afirmaram ter sido muito maltratadas no local onde relataram. 

Em relação ao caso concreto, a Corte observou que há inúmeras provas que demonstram que o tratamento desigual dado a Olivera e ao namorado foi em virtude da orientação sexual de ambos. Os juízes consideraram que houve inversão do ônus da prova, já que a vítima foi obrigada a apresentar provas “difíceis e desproporcionais”.

“Em suma, as decisões das autoridades administrativas e judiciais impuseram um padrão probatório onde, como o senhor Olivera ilustrou no ato da audiência pública perante este Tribunal, ‘a única coisa que poderia provar a discriminação, ou poderia ter provado a discriminação, era um vídeo do exato momento em que os eventos ocorreram’, o que é, obviamente, um padrão de prova difícil e desproporcional. Ante o exposto, a Corte considera que, embora não lhe corresponda determinar as circunstâncias fáticas do ocorrido em agosto de 2004 em relação ao encontro entre o Sr. Olivera, seu sócio e funcionários do referido supermercado, a resposta dada pelas autoridades nacionais a uma denúncia em que havia indícios de tratamento discriminatório por parte de uma empresa por causa da orientação sexual do Sr. Olivera e seu companheiro levou à imposição de exigência de prova contrária às normas acima mencionadas, o que resultou em violação da obrigação de realizar a inspeção correspondente para fins de eliminar quaisquer práticas e atitudes discriminatórias contra a comunidade LGBTIQ+”, ponderou a Corte IDH.

Os magistrados entenderam, portanto, que o Estado deve ser responsabilizado pela violação dos artigos 7.1 (direito à liberdade pessoal), 8.1 (garantias judiciais), 11 (proteção da honra e dignidade), 24 (igualdade perante a lei) e 25.1 (proteção judicial) da Convenção Interamericana. “A Corte considera que os parâmetros e requisitos relativos ao ônus da prova impostos pelos órgãos administrativos e judiciais internos tornaram nulo o direito do senhor Olivera à igualdade de acesso à justiça. Ao anterior acresce a motivação particular apresentada pelas autoridades administrativas, não sanada judicialmente, assente em estereótipos baseados na orientação sexual que afetavam a imparcialidade dos referidos órgãos”, concluiu o tribunal.

Em razão da condenação, a Corte IDH determinou que o país forneça, gratuita e imediatamente, tratamento psicológico e/ou psiquiátrico a Olivera, implemente campanhas de conscientização sobre respeito e não discriminação para com a comunidade LGBTQI+, prepare um plano pedagógico sobre diversidade sexual nos cursos de formação de carreiras administrativas e judiciais e indenize o comunicador popular em US$ 15 mil.

A decisão é assinada pelos juízes Ricardo C. Pérez Manrique (presidente, Uruguai), Eduardo Ferrer Mac-Gregor (México), Humberto Sierra Porto (Colômbia), Nancy Hernández López (Costa Rica), Verónica Gómez (Argentina), Patricia Pérez Goldberg (Chile) e Rodrigo Mudrovitsch (Brasil).