Direitos humanos

Corte IDH decide que Guatemala não discriminou americano impedido de ser notário

Homem não pôde exercer a profissão por não ter nacionalidade e domicílio no país. Juiz brasileiro divergiu dos demais

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Sessão de inauguração do ano judicial de 2023 da Corte IDH / Crédito: Flickr/@corteidh

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) decidiu que o Estado da Guatemala não violou os direitos à igualdade e à não discriminação ao negar acesso à carreira de notário a um cidadão norte-americano, em razão da nacionalidade dele. O caso é o Hendrix Vs. Guatemala.

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Steven Edward Hendrix trabalhava para o governo dos Estados Unidos e esteve frequentemente em território guatemalteco entre 1997 e 2006, em diversas ocasiões, por período mínimo de três dias e máximo de 3 meses e 24 dias. 

Doutor em Direito pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, e advogado pela Universidad Mayor de San Andrés na Bolívia, ele obteve também os títulos de advocacia e notariado pela Universidade de San Carlos da Guatemala. A partir da validação do diploma, solicitou registros para atuar como advogado e notário.

O Colégio de Advogados e Notários da Guatemala autorizou Hendrix a exercer a advocacia, mas o rejeitou como notário, porque ele não cumpria dois requisitos estabelecidos pelo Código de Notariado guatemalteco: o de residir no país e o de ser cidadão guatemalteco.

Inconformado com a negativa, o norte-americano tentou, por três vezes, obter a reconsideração da decisão em uma instância administrativa e duas judiciais, a partir de janeiro de 2002. O último recurso foi levado à Corte Constitucional Guatemalteca, que manteve o indeferimento da inscrição e a condicionou à realização de processo de naturalização.

Hendrix jamais aceitou naturalizar-se e apresentou, em 2004, petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que, por sua vez, submeteu o caso à Corte IDH, em 2021. Ele alegou que, além dos direitos à igualdade e à não discriminação, o Estado também violou seus direitos à proteção judicial, ao trabalho, à nacionalidade e à propriedade privada.

Controvérsia

A controvérsia do caso esteve em analisar se as regras previstas pelo Estado guatemalteco para o exercício do notariado são ou não discriminatórias a cidadãos estrangeiros. Ou seja, se Hendrix foi ou não impedido de exercer sua profissão em virtude de sua nacionalidade.

Na sentença, a maioria da Corte entendeu que, independentemente da nacionalidade, Hendrix não apresentou elementos que comprovassem que ele cumpria o requisito de ser domiciliado no país, o que asseguraria o vínculo real do notário com o Estado e, portanto, salvaguardaria o interesse público e a prestação de contas por seus atos.

“No caso da Guatemala, o notário é investido pelo Estado e recebe uma função pública através da qual exerce autoridade delegada para conferir autenticidade a atos e transações jurídicas (…). Justifica-se, portanto, que a função notarial esteja sujeita a fiscalização permanente. Na Guatemala, esta supervisão é exercida pela associação profissional que, em nome do Estado, é responsável pela direção geral do serviço, sua fiscalização e controle. A este respeito, este Tribunal considera que o arraigo [vínculo domiciliar com o país] dos notários se torna indispensável ​​para a garantia do princípio da responsabilização, uma vez que implicam um vínculo entre quem exerce a profissão notarial e o país que permite que essas pessoas sejam responsabilizadas legalmente por erros no exercício de sua função”, escrevem os juízes na sentença.

Para o colegiado, portanto, a Guatemala não tratou o peticionário de forma discriminatória e ofereceu a ele todos os recursos efetivos de defesa, embora suas pretensões tenham sido negadas. Por isso, não houve responsabilização do Estado e o caso foi arquivado pelo tribunal. 

As juízas Nancy Hernández López (Costa Rica) e Patricia Pérez Goldberg (Chile) divulgaram um voto concorrente, em que se debruçam na análise da necessidade e da proporcionalidade da exigência da nacionalidade.

Para elas, “o requisito de nacionalidade estabelecido no ordenamento jurídico guatemalteco é ao mesmo tempo necessário – uma vez que não existem outras alternativas à vista que garantam o pleno cumprimento do objetivo estabelecido – e estritamente proporcional”. “Neste último sentido, de fato, o sacrifício inerente à restrição não é exagerado nem desproporcional face às vantagens obtidas através de tal limitação, afirma. Não se pode esquecer que os notários são repositórios da fé pública no exercício das suas funções e, no caso da Guatemala, são também auxiliares da administração da justiça, razão pela qual a exigência de que estas pessoas tenham a qualidade de nacionais do Estado em cujo nome agem não implica um impacto desproporcional.”

Voto divergente do juiz Rodrigo Mudrovitsch

Representante brasileiro na Corte, o juiz Rodrigo Mudrovitsch apresentou voto divergente dos demais juízes. Ele considerou que o colegiado não analisou o cerne do caso, que é se houve ou não discriminação em razão da nacionalidade, e, em razão disso, se absteve de reafirmar standards interamericanos.

“Com o máximo respeito à posição majoritária da Corte IDH, estimo que, no presente caso, era necessário reafirmar os standards interamericanos em relação ao princípio da igualdade e não discriminação (artigo 24 da Convenção) e explorar detalhadamente a aplicação do teste de proporcionalidade da medida restritiva de direitos nos casos de impedimento de exercício profissional em razão da nacionalidade. Além disso, entendo que a restrição profissional não foi devidamente analisada pelas instâncias administrativas e judiciais competentes, privando o sr. Hendrix do acesso à revisão judicial (artigo 25 da Convenção) e do direito ao trabalho, por ter sido impedido de exercer a função notarial (artigo 26 da Convenção)”, pontuou o juiz.

Mudrovistch citou precedentes da Corte para reforçar o histórico de máxima amplitude ao princípio da igualdade e não discriminação e aplicou o teste de proporcionalidade, por meio do qual constatou que a exigência de nacionalidade pelo Estado da Guatemala é incompatível com a Convenção Americana.

“Como consequência do teste de proporcionalidade, constato que o impedimento ao exercício profissional em razão da origem nacional impediu que a alegada vítima pudesse exercer a função notarial em um ambiente discriminatório em relação às oportunidades. A exclusão participativa de não nacionais em funções públicas ou privadas deve ser justificada como um mecanismo excepcional. Verifico, portanto, que a institucionalização do artigo 2.1 do Código de Notariado, o qual impede o acesso profissional dos não nacionais ao exercício notarial, é incompatível com a Convenção Americana”.

O magistrado brasileiro reforçou que desviar a análise do mérito para a ausência de domicílio foi um equívoco, já que não foi o real motivo que impediu Hendrix de exercer o notariado. 

“Ainda que o sr. Hendrix não fosse domiciliado na Guatemala, tal não foi o motivo concreto pelo qual ele foi impedido internamente de acessar o cargo de notário. Nas três decisões domésticas em que ele foi impedido de exercer a profissão — tanto em âmbito administrativo como nas duas decisões judiciais — a objeção apresentada pelo Estado foi baseada na sua nacionalidade estrangeira. Nesse cenário, entendo que a Corte deveria apreciar, à luz da Convenção, o critério por elas aplicado e não aquele que deixaram de aplicar”.

No voto, Mudrovitsch explicitou a diferença do modelo de notariado latino, formado por profissionais formados em Direito, qualificados juridicamente e que atuam no controle da legalidade, para o notariado anglo-saxão, feito por profissionais que não precisam de formação, não exercem função pública e tampouco controlam a legalidade do conteúdo. 

A explicação antecedeu uma resposta do magistrado ao argumento do Estado da Guatemala de que o requisito “nacionalidade” para o exercício notarial é comum aos países aderentes ao Sistema Latino Notarial.

“A mera invocação do Sistema Latino Notarial não é suficiente para fundamentar a alegação acerca do impedimento profissional. Muito embora o sistema seja o mesmo, em diversos países o exercício notarial é incompatível com o exercício de outras profissões liberais, sobretudo a advocacia. Portanto, a meu ver, o argumento de direito comparado, proposto pelo Estado, de que a exigência de nacionalidade para o exercício da função de notário é um traço comum a inúmeros países do Sistema, não é o mais adequado neste caso”, rebateu o juiz.

Para Mudrovitsch, a sentença da Corte se distancia da jurisprudência interamericana e pode enfraquecer stardards em matéria de igualdade e não discriminação. “Desdobra-se o dever da Corte IDH de, em cada caso concreto, contemplar as implicações de sua Sentença na edificação seus standards, a fim de garantir a solidez da sua cadeia de precedentes. No caso Hendrix vs. Guatemala, o distanciamento que respeitosamente vislumbrei em relação ao caminho que vinha sendo trilhado pela Corte IDH em matéria de igualdade e não discriminação levou-me a registrar a presente divergência”.

Análises e efeitos

O advogado Ingo Wolfgang Sarlet, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e desembargador aposentado, concorda com a posição do juiz Rodrigo Mudrovitsch, de que a Corte deixou de analisar a principal questão do caso.

“A Corte acabou se deslocando do foco, na medida em que acabou examinando apenas o vínculo de domicílio, e deixou de analisar a nacionalidade. Isso vai de encontro a toda a tradição da Corte IDH, no modo como ela trata o princípio da igualdade e à jurisprudência sobre a necessidade da proporcionalidade. Não se poderia condicionar a nacionalidade como requisito decisivo, porque sequer houve análise disso. A falta de análise, o deslocamento do foco, configuram também uma violação do direito à proteção judicial”.

Para Sarlet, embora haja especificidades no modelo notarial guatemalteco, o caso Hendrix é uma oportunidade para refletir sobre a exigência de nacionalidade no Brasil.

“O debate sobre este caso abre caminho para pensarmos se não seria possível, no mínimo, discutir o requisito legal da nacionalidade no Brasil. Os votos nos trazem subsídios para, no mínimo, pensarmos mais, refletirmos mais sobre o tema e, quem sabe, considerar mudanças. Como se trata de segurança e de fiscalização do trabalho, imagino que a exigência de domicílio no país já seria suficiente”, diz o professor. Ele pondera: “Mas não tenho expectativa que essa discussão seja iniciada tão cedo, no Brasil. As regras já estão tão incorporadas na nossa tradição jurídico-constitucional que não me parece provável que isso seja impugnado”.

Sarlet elogia Rodrigo Mudrovitsch pelo voto de “grande qualidade, profundo e minucioso”. De acordo com o professor, embora vencido, o posicionamento do brasileiro pode ter impacto relevante nas decisões sobre o tema

“O voto pode aparecer na doutrina dos direitos humanos do sistema interamericano, pode aparecer em outros casos de situações similares, influenciando a jurisprudência interna, nacional. Pela robustez e pelo poder persuasivo, o voto tem um potencial positivo de impacto – pode servir para reflexões futuras ou até mesmo para alguma adesão, em casos futuros da Corte”.

Alexandre Kassama, 27º Tabelião de Notas de São Paulo e membro da Academia Notarial Americana, também exalta o voto do juiz brasileiro. “O voto do Mudrovitsch é muito interessante, porque reforça a vinculação do notariado à segurança jurídica e aos direitos humanos. É uma importante reafirmação de que a função é essencial para manter a atividade estatal e para assegurar os direitos humanos”.

Para Kassama, contudo, o objeto do julgamento da Corte IDH neste caso não é uma questão no Brasil. “Nunca tivemos um caso em que um estrangeiro tentou obter o direito de ser notário na Justiça, porque há diferenças consideráveis. Aqui, assumimos procedimentos judiciais, como divórcios extrajudiciais, inventários, outorga de título de propriedade extrajudicial. O notário funciona para desafogar o Judiciário. Ou seja, existe um certo poder, sim. Neste caso, quando você tem uma figura mais estatal, há justificativa para exigir a nacionalidade”, avalia.

O tabelião Hércules Benício, presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção do Distrito Federal, destaca que a possibilidade de atuar como advogado e notário ao mesmo tempo na Guatemala descaracteriza a imparcialidade dos profissionais, o que desmonta o argumento do Estado de que a exigência de nacionalidade garantiria segurança e soberania.

 “O que o juiz Rodrigo Mudrovitsch sustenta com muita qualidade é que, especificamente na Guatemala, há possibilidade de acumulação da profissão de notário com a profissão de advogado. Ora, se o notário guatemalteco pode atuar como advogado, de certa forma há uma descaracterização da imparcialidade que deve caracterizar o notariado do tipo latino. Ou seja, não é porque a Guatemala sustenta que tem um modelo de notariado latino que eu vou tratar como se todos os rigores estivessem presentes na Guatemala, porque, de fato, os rigores não estão”.

Benício ressalta que no Brasil e em outros sete países da América Latina há proibição do exercício do notariado e da advocacia ao mesmo tempo. “Isso deita luzes sobre a importância da atividade notarial como sendo uma função pública de assessoramento das partes, com imparcialidade e segurança jurídica, tudo isso muito bem qualificado pela fé pública de que possuem os notários”.