A Corte Interamericana dos Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Paraguai pela violação dos direitos à integridade pessoal, à vida privada e familiar, à família e ao cumprimento de decisões judiciais em prejuízo do argentino Arnaldo Javier Córdoba, pai de uma criança nascida em Buenos Aires e levada ao Paraguai ainda bebê pela mãe, há quase 18 anos.
Em sentença divulgada na quarta-feira (13/12) sobre o caso Córdoba Vs. Paraguai, o Tribunal declarou que o Estado paraguaio é responsável pela falta de diligência e celeridade na restituição internacional da criança.
Córdoba era casado com uma mulher de nacionalidade paraguaia, e ambos viviam na Argentina. Em 2004, nasceu em Buenos Aires o filho único do casal. Em janeiro de 2006, quando a criança tinha um ano e onze meses, a mãe a levou de Buenos Aires para a cidade de Atyrá, no Paraguai. Córdoba alegou que a mudança foi realizada sem sua concordância e iniciou um processo visando a restituição internacional do filho.
A mãe se opôs, alegando ter sofrido violência doméstica física e psicológica do então marido quando moravam em Buenos Aires. Na ocasião, disse que a restituição poderia expor o filho a um perigo físico ou psíquico. A solicitação foi rejeitada pela Justiça paraguaia e, em setembro do mesmo ano, foi convocada uma audiência de restituição. A mulher não apareceu. Autoridades foram à casa dela, mas a mãe e o filho não foram encontrados.
Entre 2006 e 2009, detalha o Tribunal na sentença, foram realizadas diligências dirigidas à busca da criança e de sua mãe, incluindo uma ordem de captura internacional e buscas em seu domicílio, sem resultado.
Vários anos depois, em maio de 2015, após uma oferta de recompensa pelo Estado argentino, a Interpol localizou o menino e a mãe no Paraguai. Ele disse que queria ficar com a mãe, pois não sabia nada do pai, e que no Paraguai ia à escola e morava com sua mãe, seu irmão e seu “pai” de criação. Já a mãe alegou na ocasião que não queria voltar à Argentina nem se afastar do filho e que tinha ficado escondida por nove anos devido a supostos maus-tratos sofridos quando moravam em Buenos Aires. Ela foi presa preventivamente, e a tia materna ficou com a guarda provisória da criança, enquanto o processo de restituição era tramitado.
Segundo relato sobre o caso, posteriormente foram instaurados processos buscando restabelecer a relação entre pai e filho, que manifestou não ter interesse na reaproximação. Em março de 2017, o Juizado de Primeira Instância da Infância e Juventude de Caacupé, no Paraguai, acolheu medida cautelar de permanência da criança no Paraguai. Para emitir a decisão, considerou que, passados mais de 11 anos sem que se executasse a sentença de restituição, “outros direitos foram originados”. O Juizado lembrou as diferentes oportunidades que se criaram para o fortalecimento de vínculos entre pai e filho e que, depois de quase dois anos, não tiveram resultado positivo.
O menino, então um adolescente, não participou de nenhuma etapa do trâmite da ação inicialmente apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Consultado mais tarde pela secretaria da Corte IDH, afirmou que não desejava ser parte do processo na condição de suposta vítima.
Ausência de vínculos
Na decisão anunciada semana passada, a Corte estabeleceu que a falta de diligência e de rapidez no cumprimento da ordem de restituição e na adoção de medidas que buscavam a construção de um vínculo entre pai e filho levaram à consolidação de uma situação ilícita em detrimento de Arnaldo Javier Córdoba, em violação ao dever do Estado paraguaio de garantir o cumprimento das decisões judiciais.
O Tribunal considerou ainda que houve interferência arbitrária na vida privada e familiar do pai da criança e uma violação do seu direito à família, porque o Estado não tomou as medidas necessárias para localizar o paradeiro da mãe e do filho depois que eles não compareceram à audiência de restituição, nem para facilitar o processo de construção de vínculo entre Córdoba e o filho. O menino, hoje maior de idade, continua morando no Paraguai.
“A Corte constata que, apesar de o Estado paraguaio ter tramitado em prazo razoável o pedido de restituição internacional do menino e que a audiência de restituição tenha sido convocada para 28 de setembro de 2006, a senhora “M” não se apresentou e não devolveu a criança, A partir daí e até maio de 2015, data em que a Interpol localizou seu paradeiro, o Estado paraguaio não adotou medidas adequadas para executar a ordem judicial”, diz o texto da sentença.
“Como afirmaram o senhor Arnaldo Javier Córdoba e a Sra. “L”, tia de “D”, durante a audiência pública deste caso, e não foi questionado pelo Estado, durante o tempo em que o paradeiro da criança e da sua mãe era desconhecido, ele frequentou a escola, fez exames médicos e foi vacinado. Segundo depoimento de seu pai, ainda frequentava uma escola localizada no centro da cidade de Atyrá. Na opinião deste Tribunal, não é razoável que o Estado paraguaio, há quase nove anos, não tenha descoberto o paradeiro de uma criança que estava sob seus cuidados pelo sistema público de saúde e educação”, completa o texto.
O Estado paraguaio afirmou ter adotado as medidas necessárias para cumprir a ordem de restituição e alegou que não poderia ser responsabilizado por eventos imprevisíveis, como o não comparecimento da mãe da criança à audiência. Para a Corte, porém, quando ainda se desconhecia o paradeiro de mãe e filho “o Estado estava na obrigação, no mínimo, de estabelecer medidas de coordenação interinstitucional que envolvessem autoridades encarregadas do cuidado de meninos e meninas na primeira infância, com o objetivo de localizar o paradeiro de ‘D’”.
Na sentença, a Corte determinou que houve uma separação injustificada e definitiva entre pai e filho, o que produziu uma situação de angústia permanente para Córdoba, pai da criança. E, mesmo quando o paradeiro da mãe e do menino foi descoberto, o Estado paraguaio não adotou as medidas necessárias para a adequada implementação de tratados relativos ao retorno internacional de crianças, considerou o Tribunal.
“O processo de reaproximação pai-filho, iniciado após a localização da criança, foi ampliado ao longo do tempo sem avanços significativos e não teve como objetivo promover o desenvolvimento da relação familiar rompida. Pelo contrário, como se depreende dos autos do presente caso, caracterizou-se por sessões que, na prática, dependiam da vontade dos funcionários judiciais e até mesmo das famílias”, diz a Corte IDH.
“O Estado não pode garantir o sucesso do processo de reaproximação, nem a sua eficácia para construir o vínculo entre pai e filho, mas seu fracasso no presente caso é uma evidência da falta de um programa de relacionamento adequado que considere o impacto da etapa de tempo na construção das relações familiares”, destaca o texto.
Como medidas de reparação, o Tribunal ordenou a adaptação da legislação interna do Paraguai aos termos prescritos pelos tratados internacionais sobre a restituição internacional de crianças, além da criação de um banco de dados que permita o cruzamento de informações sobre meninos e meninas envolvidos em processos de restituição internacionais.
Na sentença consta ainda a responsabilidade de que o Estado paraguaio informe sobre o progresso de adoção das medidas determinadas e que pague indenizações para cobrir um tratamento psicológico/psiquiátrico da vítima, além de indenizações por danos materiais e imateriais.
Debate na Corte
O caso suscitou debate entre os juízes. A principal controvérsia que dividiu a compreensão dos magistrados foi a análise de se a ausência de uma lei interna por parte do Estado paraguaio que regulasse o processo para restituição internacional violaria o artigo 2º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Os juízes Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México) e Rodrigo Mudrovitsch (Brasil) apresentaram voto concorrente no qual detalharam as razões que explicam a decisão da Corte de declarar a violação do artigo 2º da Convenção e de adotar como medida de reparação a adoção de uma lei de regulação do processo de restituição internacional de meninos, meninas e adolescentes pelo Paraguai. Os juízes Humberto A. Sierra Porto (Colômbia), Nancy Hernández López (Costa Rica) e Patricia Pérez Goldberg (Chile) não concordaram com este ponto e apresentaram um voto parcialmente dissidente. Como a juíza argentina Verónica Gómez não votou no caso, houve um empate, de forma que prevaleceu a posição adotada pelo presidente da Corte, Ricardo C. Pérez Manrique – critério de desempate até então inédito na atual composição.
No embasamento do voto, os juízes recordaram que o artigo 2º dispõe sobre o dever dos Estados de adotar disposições de direito interno. “Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1.º ainda não estão garantidos por disposições legislativas ou outras, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com seus procedimentos constitucionais e as disposições desta Convenção, medidas legislativas ou outras que possam ser necessárias para tornar efetivos esses direitos e liberdades”, diz o texto na Convenção.
Para os três juízes, esse dever de adotar disposições de direito interno se apresenta em dois aspectos. “Por um lado, a supressão das normas e práticas de qualquer natureza que impliquem violação das garantias previstas na Convenção, que desconheçam os direitos nela reconhecidos ou dificultem o seu exercício. Por outro lado, a expedição de normas e o desenvolvimento de práticas que conduzam a uma observância das referidas garantias”, escreveram ao justificar seu voto concorrente.
“Nesta base, a Corte qualificou a responsabilidade do Estado e ordenou alterações legislativas quando, no contexto de um litígio, tenha sido demonstrado que uma lei interna viola os direitos previstos na Convenção, mas tem feito o mesmo nos casos em que existam omissões legislativas que impliquem o incumprimento das obrigações internacionais do Estado”, completaram.
Os juízes consideraram, então, que a violação ao artigo 2º da Convenção se ajustava neste caso precisamente pelo vazio regulamentar, “na falta de regulamentação adequada do processo de restituição internacional de crianças no Paraguai, o que resultou na ineficácia no procedimento de restituição do filho do Sr. Córdoba. Em nossa opinião, a obrigação de regulamentar impôs ao Estado o dever de adotar uma lei que tornasse efetiva a proteção dos direitos dos pais e das meninas e meninos num procedimento de restituição”, justificaram os juízes Ricardo C. Pérez Manrique, Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot e o brasileiro Rodrigo Mudrovitsch no detalhamento do voto.
O que dizem os especialistas
Para especialistas ouvidos pelo JOTA, a postura fortalece a sentença e, de forma inovadora, se mostra relevante para casos similares na região.
“Trabalha com a ideia de que no artigo 2º está incluída também a necessidade de que o Estado paraguaio deve adotar medidas legislativas para implementar os tratados internacionais sobre restituição de crianças. Eles entenderam que justamente nessa ausência de normas internas se gerava uma violação do artigo 2º em relação ao Estado paraguaio por esse vazio em regulamentar adequadamente o retorno internacional de crianças nesses casos protegidos pela Convenção de Haia”, explica a advogada Melina Fachin, professora associada dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná e membro da Rede ICCAL (Ius Constitucionale Commune) Brasil.
Para ela, o voto concorrente veio somar à consolidação da sentença. “Ele robustece a sentença ao trazer uma base muito sólida de por que a violação ao artigo 2º nesse caso envolveria o dever de o Estado paraguaio se adaptar à legislação internacional, com um embasamento que passa pela jurisprudência da Corte, mostrando como o artigo 2º vem sendo interpretado”, afirma.
Além disso, diz, ao reconhecer falhas normativas, o voto traz um sentido prospectivo na ideia das reparações. “Tem a ver com o que a Corte almeja conseguir com esse voto não apenas para o Sr. Córdoba, mas para a região, estimulando que os Estados adotem standards que robusteçam essas práticas normativas para proteção sobretudo de crianças. Nessa linha, pensar em standards normativos que intensifiquem essas obrigações internacionais é um passo bastante relevante”, opina.
Para Flávia Piovesan, professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da PUC-SP, o voto é inovador e traz dois legados importantes com a decisão: favorece o corpus iuris interamericano relativo à infância e densifica o alcance do artigo 2º da Convenção americana no que se refere ao dever do Estado de adotar disposições de direito interno.
“É muito relevante a visão, da qual compartilho, dos juízes Ricardo Manrique, Eduardo Mac-Gregor Poisot e Rodrigo Mudrovitsch de trazer o aspecto de violação do artigo 2º em razão da omissão. Constatou-se o que chamaria de omissão inconvencional. Tal como temos a omissão convencional, a Convenção americana também pode ser violada por ações ou omissões inconvencionais. Foi inovador na voz e visão dos três juízes reconhecer que havia um vazio no campo da regulamentação da restituição internacional de crianças no Paraguai. E esse vazio, essa omissão, contraria a Convenção americana, que pode ser violada quer quando se faça o que nela se proíbe, ou que não se faça o que ela determina. Essa omissão contribuiu para a violação de direitos”, afirma.
Segundo Piovesan, o voto endossa a visão da omissão inconvencional do Estado – no caso do Paraguai, a ausência de regulamentação. “Não adotar medidas necessárias para harmonizar e adequar a ordem jurídica interna viola a Convenção. A violação do artigo 2º acontece tanto na utilização de normas incompatíveis quanto quando não há normas. É muito interessante”, diz a especialista.
A ênfase na violação ao artigo 2º também foi motivo de destaque para Siddharta Legale, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do mestrado do PPGDC-UFF.
“Esse caso tem um ponto muito importante que é a possibilidade de verificar se a atuação do Estado paraguaio no processo legal viola não só o artigo 1º, que tradicionalmente a Corte invoca, que é a obrigação geral de respeitar direitos, mas se violou também o 2º, segundo o qual deve existir um conjunto de remédios institucionais que protejam de forma efetiva os direitos. E aqui o voto densifica o argumento de que esse controle de convencionalidade tem como ponto de partida o artigo 2º, e não só o 1º”, diz ele.
“Os três juízes acertam em cheio ao trazer a necessidade de olhar o comportamento do Estado paraguaio em concreto na proteção desses direitos nessa celeuma sobre o sequestro internacional de menores olhando para o efeito jurídico concreto”, completa.
Siddharta Legale destaca a relação do voto com casos anteriores na Corte e diz que, além de manter o sistema de precedentes coerente e íntegro, essa é a posição mais consistente com a Convenção americana e suas leis de interpretação.
“A sentença torna mais densa e atualiza a jurisprudência sobre o controle de convencionalidade. E evolui seguindo a linha de precedentes da Corte, não só em casos clássicos sobre anistia como em casos fundamentais como o de reconhecimento de propriedades coletivas para povos indígenas, em que a Corte já mencionou que o remédio institucional deve ser efetivo”, afirma.
“O precedente do caso Córdoba densifica o controle de convencionalidade e é compatível com o caso Barrios Alto Vs. Peru, o grande caso que inventa o controle de convencionalidade, ainda sem dizer o nome. Aparece também na Corte no caso Almonacid Arellano Vs. Chile e Gomes Lund e outros Vs. Brasil. Não se trata de uma análise só normativa, mas da compatibilidade com o sentido produzido nas interpretações do chamado bloco de convencionalidade ou Constituição Interamericana, como gosto de chamar, olhando empiricamente para ver se o Estado está provendo recursos para proteger ou não o direito”, conclui.
O voto parcialmente dissidente
Já os juízes Humberto A. Sierra Porto, Nancy Hernández López e Patricia Pérez Goldberg apresentaram voto parcialmente dissidente.
Os juízes destacaram que o artigo 2º obriga os Estados a adotar medidas legislativas “ou outras que forem necessárias para tornar efetivos direitos e liberdades”. Os magistrados consideraram que os tratados internacionais relativos à restituição internacional de crianças devidamente ratificados pelo Paraguai e que foram aplicados pelo Estado durante a tramitação deste caso “são autoexecutáveis”, ao ponto que alguns de seus artigos contêm prazos específicos, claramente definidos e com critérios gerais para sua execução, que foram respeitados pelo Estado na tramitação deste caso. Neste sentido, reforçam, “constituíram medidas suficientes para garantir os direitos consagrados na Convenção, nos termos do disposto no artigo 2º”.
“Com base nisso, consideramos que as violações dos direitos do Sr. Córdoba não são resultado da falta de medidas legislativas, mas de falhas administrativas relacionadas com a falta de diligência exigida do Estado neste tipo de casos”, afirmaram os juízes.
Para configurar uma violação do artigo 2º, os magistrados disseram que se deveria ter mais claro como essa ausência de regulamentação teria impactado no caso específico e qual tipo de regulamentação deveria ter sido adotada.