Corte IDH

Corte IDH condena Colômbia por perseguição sistemática a defensores de direitos humanos

Tribunal reconhece pela 1ª vez responsabilidade estatal e cria estândares de proteção para exercício da advocacia e do jornalismo

caso cajar
Plenário da Corte IDH / Crédito: Corte IDH

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou a Colômbia por perseguição sistemática a defensores de direitos humanos. O Tribunal declarou que o Estado colombiano é internacionalmente responsável por uma série de ações clandestinas de inteligência, intimidação e violência contra integrantes da Corporação Coletiva de Advogados “José Alvear Restrepo” (Cajar), ONG dedicada à defesa e promoção dos direitos humanos no país.

Esta é a primeira decisão interamericana em que se reconhece a responsabilidade internacional de um Estado por vulnerar o direito a defender direitos humanos. Os integrantes do coletivo representam familiares de pessoas desaparecidas e/ou assassinadas pelo Estado ou por grupos paramilitares, membros de grupos considerados subversivos ou de oposição política, além de vítimas de todo tipo de violência cometida por agentes estatais ou terceiros que atuam com a conivência do Estado.

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Na divulgação da sentença, feita em vídeo pelo juiz brasileiro e vice-presidente da Corte, Rodrigo Mudrovitsch, o Tribunal considerou que o Estado colombiano violou uma série de direitos humanos: os direitos à vida, à integridade pessoal, à vida privada, à liberdade de pensamento e de expressão, à autodeterminação informativa, ao conhecimento da verdade, à honra, às garantias judiciais, à proteção judicial, liberdade de associação, circulação e residência, à proteção da família, os direitos da infância e o direito de defesa dos direitos humanos.

Essas violações de direitos acontecem desde os anos 1990, com atividades clandestinas de inteligência praticadas por órgãos estatais contra membros do coletivo de advogados e seus familiares. Ao longo desse tempo, autoridades do Estado colombiano reuniram e mantiveram diversas informações, incluindo dados pessoais e sigilosos das vítimas, que nunca tiveram acesso a tais registros. 

A coleta arbitrária de informações continuou inclusive durante a vigência da Lei 1.621 de 2013, criada para regular a atuação dos serviços de inteligência e contrainteligência na Colômbia. 

Na sentença, a Corte destacou que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos prevê o direito autônomo à autodeterminação informativa, que inclui o direito de acesso e controle de dados pessoais mantidos em arquivos públicos. 

Ainda segundo o Tribunal, as vítimas sofreram diversos atos de violência e intimidação, alguns deles executados com a intervenção direta de agentes estatais. Embora algumas dessas ações tenham sido cometidas por organizações paramilitares, a Corte considerou que o Estado colombiano criou “uma situação de risco à vida e à integridade pessoal das vítimas, uma vez que facilitou informação pessoal a essas organizações através do trabalho de inteligência”. 

Uma das vítimas, advogada e defensora de direitos humanos, recebeu ligações telefônicas frequentes com ameaças de morte. Chegou inclusive a ser perseguida e abordada por um veículo com homens que dispararam com metralhadoras em sua direção. 

A esposa de outro integrante do Cajar denunciou ter recebido uma ligação na qual foi reproduzida uma conversa que tinha tido com o marido dentro de um veículo cedido pelo próprio governo colombiano como medida de proteção, o que mostrou que nem nos espaços supostamente seguros estavam imunes às ameaças. 

Em paralelo, as vítimas eram vigiadas pelo serviço de inteligência do Estado, principalmente através do antigo Departamento Administrativo de Segurança, chamado DAS, dissolvido em 2011. Funcionários do órgão estatal chegaram a alugar um apartamento em frente ao de um dos líderes do coletivo, onde instalaram um ponto fixo de observação da rotina da família. 

Na sentença, a Corte ressaltou o cenário de impunidade pela falta de investigação e atribuição de responsabilidades pelos atos de violência, ameaças e intimidação. Esta situação levou alguns dos integrantes do coletivo de advogados, junto com suas famílias, a deslocamentos forçados por questões de segurança, tanto para outras cidades quanto para fora do território colombiano. Isso afetou diretamente as atividades do coletivo e limitou o trabalho de seus integrantes na defesa dos direitos humanos. 

O Tribunal reconheceu que os Estados podem realizar atividades de inteligência, mas destacou que devem cumprir determinados critérios e requisitos. Para a Corte, a vigilância, a interceptação de comunicações e a coleta de dados pessoais podem ter efeitos prejudiciais ao direito à privacidade, razão pela qual devem estar sujeitas a autorização judicial prévia. 

Os juízes destacaram que atividades de inteligência devem ser limitadas para pessoas que desempenhem determinadas funções, caso dos jornalistas – para garantir a confidencialidade das suas fontes – e dos advogados, para garantir o sigilo das comunicações que mantêm com os seus clientes. Para tal, a Corte estabeleceu estândares de proteção específicos para o livre exercício dessas funções. 

Voto concorrente de Mudrovitsch

O juiz Rodrigo Mudrovitsch apresentou voto individual concorrente no qual destacou que a Corte abre novos caminhos ao estabelecer padrões de proteção reforçada para as condições de exercício profissional de advogados e jornalistas, “reforçando o entendimento da garantia de independência nos sistemas de administração de justiça”.

“Diante das recorrentes tentativas do Estado de minar qualquer condição para o exercício independente da profissão jurídica, a decisão Cajar destacou-se por cristalizar os princípios gerais de proteção dos defensores de direitos humanos sob a forma de garantias processuais específicas relativas à atuação profissional dos advogados no decorrer de operações de inteligência. Para tanto, reconheceu que o exercício de tais atividades deve respeitar a inviolabilidade das comunicações entre advogado e cliente, garantia que se estende ao seu lugar e equipamentos de trabalho, sua correspondência e qualquer outro meio de comunicação utilizada para o exercício regular da sua profissão”, afirmou o juiz brasileiro. 

Mudrovitsch também reforçou que a decisão estabelece que qualquer operação de inteligência dirigida contra advogados só pode ser realizada mediante autorização judicial, e que cabe ao magistrado verificar a presença de indícios de atos ilegais e demonstrar a proporcionalidade da medida no caso específico. Além disso, qualquer informação obtida irregularmente no curso das operações deve ser descartada ex officio pelas autoridades de investigação.

“A incorporação destas normas na decisão do caso Cajar constitui um passo fundamental na jurisprudência interamericana e mostra a convergência de dois vetores fundamentais da decisão: por um lado, a concreção das obrigações do Estado em relação à afirmação do direito de defender direitos e, por outro, a imposição de limites objetivos às incursões de poderes públicos na esfera íntima sob o limiar do direito de autodeterminação informativa”, afirmou Mudrovitsch.  

No voto concorrente, o juiz também aprofundou o debate sobre os limites de convencionalidade para a atuação dos serviços de inteligência. E reforçou a importância de que a Corte se aprofunde nos temas de proteção de dados e inteligência artificial. 

“O caso mostrou sua relevância ao refletir as tensões que o desenvolvimento tecnológico e a ampla circulação de dados trazem ao âmbito da proteção dos direitos humanos, criando espaços para que episódios como os retratados na sentença se tornem recorrentes nos países da região. Daí a importância de que, em um futuro próximo, a Corte Interamericana também dirija sua atenção às novas perspectivas de proteção, como o direito à integridade dos sistemas”, afirmou o atual vice-presidente da Corte.

Decisão ‘emblemática’ e ‘inovadora’

Especialistas ouvidos pelo JOTA destacaram a relevância da sentença no caso Cajar, classificada por eles como “histórica”, “inovadora” e “emblemática”.

 “A decisão marca um momento histórico não apenas para a advocacia, mas para a justiça como um todo, ao estabelecer claramente que a independência dos advogados é uma pedra angular na administração da justiça”, afirmou ao JOTA o presidente da OAB Nacional, Beto Simonetti. 

“A sentença reconhece, de forma inédita, obrigações dos Estados na proteção das prerrogativas da advocacia, assegurando que os advogados possam exercer seu papel sem interferências, em defesa do devido processo legal. Esse avanço reflete uma preocupação da jurisprudência interamericana em consolidar a independência do sistema de justiça, e reafirma que a defesa autônoma e eficaz por parte dos advogados é indispensável para o equilíbrio e a justiça das sociedades”, destacou Simonetti. 

Para a advogada Melina Fachin, professora associada dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná e membro da Rede ICCAL (Ius Constitucionale Commune) Brasil, a decisão consolida uma linha jurisprudencial que a Corte vinha adotando em relação a defensores e defensoras de direitos humanos. 

“É muito importante que a Corte faça esse reconhecimento. Não só advogados e jornalistas defendem direitos, mas a decisão vai no sentido de uma proteção especial efetiva que advogados e jornalistas devem ou podem ter quando exercem essa função de defensores e defensoras de direitos humanos. Isso envolve vários estândares e parâmetros, entre eles o sigilo profissional. Tem relação com outros casos já julgados pela Corte, contra Guatemala e Honduras, e até contra o Brasil. O próprio Estado brasileiro foi condenado em 2009, no caso Escher, sobre grampos ilegais, com monitoramento ilegal, com conivência do Judiciário. O caso de agora consolida essa tradição da Corte e abre um novo campo para preencher de significado o que é esse direito a defender direitos”, afirma. 

Melina Fachin relembra que o próprio contexto da Colômbia e do coletivo Cajar mostram como a região ainda é frágil na proteção de direitos, especialmente para aqueles e aquelas que querem defender direitos. 

“Há uma atuação que começa em um contexto ainda muito inflamado pela questão paramilitar na Colômbia, mas que se desdobra em anos recentes. O caso faz uma radiografia por mais de três décadas, mostrando como, mesmo com a consolidação dos parâmetros dos Estados democráticos e de parâmetros protetivos de direitos humanos na região, a atividade de defesa dos direitos humanos ainda é perigosa e vista com desconfiança pelo Estado”, afirma. 

“Ter um paradigma que afirme e estabeleça os critérios desse direito a defender direitos e de como ele é protegido na jurisdição interamericana é muito relevante, inclusive para o próprio sistema”, diz ela. “O coletivo Cajar, que agora figura como vítima, já impulsionou vários outros casos colombianos no sistema interamericano. Então é quase um mecanismo de autodefesa do sistema o reconhecimento dessa proteção especial aos defensores e defensoras de direitos humanos, não só na Colômbia, mas para outras localidades da região em que se produzem circunstâncias semelhantes”, completa. 

Para Flávia Piovesan, professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da PUC-SP, trata-se de uma decisão emblemática que trará um impacto transformador na região. 

“Pela primeira vez, de forma explícita, a Corte reconhece o direito a defender direitos, como o direito autônomo. Mais do que isso, estabelece deveres estatais para proteger esse direito, ou seja, enfatiza que o Estado deve facilitar o direito a defender direitos, assegurando um entorno seguro a defensores de direitos humanos e afastando hostilidades, ameaças, perseguições, intimidações e violência”, afirma. 

“Também é importante destacar os enfoques diferenciados. A Corte adota a perspectiva de gênero para endossar a devida diligência reforçada em relação a mulheres defensoras de direitos humanos”, destacou a especialista. 

Ela também salienta a argumentação do juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch em seu voto com relação à autodeterminação informativa.

“Fixar o direito à autodeterminação informativa é outro trunfo da sentença. Ela traz toda a perspectiva de que os serviços de inteligência devem percorrer finalidades legítimas e necessárias às sociedades democráticas, relembrando o princípio da proporcionalidade. Qualquer restrição ao direito à autodeterminação informativa deve louvar valores pertinentes à sociedade democrática, de modo que seria, como foi no caso, uma afronta ao princípio da proporcionalidade a devassa aos dados, a vigilância arbitrária, já que não se mostraram presentes os requisitos da adequação, necessidade, proporcionalidade estrita, havendo aí arbítrio e abuso na afronta dos direitos”, explica Flávia Piovesan. 

Para Melina Fachin, a Corte já vinha sinalizando que tinha o tema no radar, mas foi a primeira vez que isso foi colocado em uma sentença. 

“Em seu voto, o juiz Rodrigo Mudrovitsch mostra que não se trata de uma mera aplicação do direito à privacidade à luz das novas mudanças tecnológicas. Ele faz referência à uma sentença do Tribunal Constitucional alemão que já na década de 1980 reconheceu a existência desse direito à autodeterminação informativa como uma extensão da própria proteção da dignidade humana para expor que de fato estamos diante de um novo campo de defesa dos direitos e que de alguma maneira se vale dos estândares de proteção que estão na convenção, do direito à liberdade, à privacidade, à intimidade, mas é mais do que isso”, afirma. 

“Muitas vezes os dados não são privados ou sensíveis. Mas é a partir de um mapeamento sistemático desses dados que se faz um controle informacional das pessoas, que acaba por gerar, como gerou no caso, constrangimentos, limitações e afetação dos próprios projetos de vida das pessoas submetidas a esse tipo de vigilância e violação. E o voto vai muito bem nesse sentido ao divisar a compreensão de onde estaria a caracterização desse direito à autodeterminação dos dados como um direito próprio, justiciável e protegido pela Convenção Americana de Direitos Humanos”, explica a especialista. 

Em nota, a presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Katia Brembatti, considerou que a decisão reforça a garantia ao direito de informar e receber informações, da liberdade de expressão e de imprensa. “Um dos votos trata da inviolabilidade do sigilo da fonte e da importância do jornalismo e de profissionais de imprensa na defesa ao Estado Democrático de Direito, como salvaguarda aos direitos humanos. A proteção a jornalistas em todas as esferas, inclusive no acosso judicial, é fundamental para que a sociedade resguarde seu direito à informação”, disse.

‘Oportunidade histórica’

O Tribunal determinou que o Estado colombiano cumpra diversas medidas de reparação, entre elas a obrigação de investigação por parte das autoridades dos atos de violência contra as vítimas e a de permitir o acesso das vítimas à informação e dados pessoais contidos nos arquivos de inteligência. 

A Corte também ordenou que a Colômbia realize uma campanha nacional de sensibilização social sobre a violência e estigmatização que há anos têm assolado defensores de direitos humanos no país. E estabeleceu que o Estado crie um sistema de coleta de dados sobre casos de violência cometidos contra pessoas defensoras de direitos humanos. 

Por fim, estabeleceu ainda que o país aprove as leis necessárias para garantir o direito à autodeterminação informativa e adeque os manuais de inteligência e contrainteligência aos padrões internacionais sobre o tema. 

Integrantes do Cajar definiram a decisão da Corte como “oportunidade histórica” de reparação às vítimas que trabalham há mais de 45 anos na defesa de direitos humanos na Colômbia. Para membros do coletivo, a sentença dignifica as lutas do movimento de direitos humanos e reconhece a falta de garantias para a defesa desses direitos. 

“Foram mais de 45 anos de perseguição contra nossa organização de defesa dos direitos humanos. O Estado colombiano quis evitar que nossas advogadas e advogados desenvolvessem seu trabalho de representação de vítimas e luta contra a impunidade porque queriam acabar com o Cajar. Tudo isso pago com os impostos dos colombianos. É inadmissível”, disse Yessika Hoyos Morales, presidente do Cajar.