Elisa Martins

Textos trazem a cobertura das decisões e audiências da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH)

Direitos Humanos

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/corte-idh">Corte IDH</a>) condenou o Chile por reduzir as penas por crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar no país. Para o Tribunal, o Estado chileno falhou em proteger os direitos de dezenas de vítimas ao revisar e permitir a diminuição das sentenças impostas a responsáveis de desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais no regime do ex-general Augusto Pinochet.
Na sentença divulgada na última quinta-feira (26/09), a Corte declarou a responsabilidade internacional do Chile “pela violação, entre outros, dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial contra 49 vítimas e o direito à integridade pessoal de 99 familiares”.
<h3><a href="https://conteudo.jota.info/marketing-lp-newsletter-ultimas-noticias">Inscreva-se na newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba gratuitamente as principais novidades jurídicas, políticas e regulatórias diariamente no seu email</a></h3>
O caso “Vega González e outros vs. Chile” diz respeito a uma série de decisões judiciais proferidas entre 2007 e 2010 pelo Supremo Tribunal de Justiça chileno. Na época, o órgão aplicou a chamada "meia prescrição" como parte de um processo de revisão da condenação por desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais ocorridas entre 1975 e 1990.
A meia prescrição está prevista no artigo 103 do Código Penal Chileno. Ela contempla a redução da pena de prisão imposta ao responsável por um crime nos casos em que ele é apresentado ou levado à ordem do tribunal depois de metade ou mais da metade do tempo previsto para a prescrição de ação penal ou punição.
“Como consequência dessas decisões de cassação, as penas impostas aos responsáveis foram substancialmente reduzidas”, destacou a Corte. A decisão ressalta que o instituto da meia prescrição não se aplicaria aos crimes de lesa-humanidade, como no caso chileno.
“O Tribunal determinou que, no caso concreto, a norma foi aplicada e permitiu a redução substantiva das penas impostas aos responsáveis pelos acontecimentos relacionados com o desaparecimento forçado de 44 vítimas e a execução extrajudicial de 5 vítimas, e funcionou como fator de impunidade, incompatível com as obrigações do Estado de investigar e punir crimes contra a humanidade”, frisaram os juízes na sentença.
A Corte também concluiu que o Chile violou o direito às garantias judiciais de 98 familiares de desaparecidos e executados, ao não permitir sua participação em todas as etapas do processo – principalmente na fase de cassação no Supremo Tribunal de Justiça, instância em que foi aplicada a meia prescrição.
<h3><a href="https://whatsapp.com/channel/0029VaFvFd73rZZflK7yGD0I">Inscreva-se no canal de notícias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões do país!</a></h3>
Afirmou ainda que o Chile violou o direito à integridade pessoal de 99 familiares das pessoas desaparecidas e executadas devido à incerteza, sofrimento e angústia causados ​​pela conduta estatal nesse caso.
Estima-se que, entre 1973 e 1990, mais de três mil pessoas tenham desaparecido ou morrido vítimas de perseguição política na ditadura chilena.
<h3>O que diz o voto convergente de Mudrovitsch e Mac-Gregor </h3>
O primeiro crime do caso denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi de um homem sequestrado e torturado com choques elétricos até sua morte, em 1975. Os restos mortais de Rivera Matus foram encontrados apenas em 2001. As investigações realizadas depois do período de transição democrática, a partir de 1990, levaram a quatro acusados pela tortura e execução de Matus, que foram condenados a 15 anos de prisão.
No entanto, com os recursos de cassação e a aplicação da meia prescrição, as condenações foram anuladas, e a Corte Suprema de Justiça do Chile ordenou sentenças substitutivas, com pena máxima de quatro anos com possibilidade de liberdade condicional para três dos quatro acusados.
Este relato é um de uma longa lista de casos em que a Corte Suprema de Justiça do Chile aplicou a meia prescrição às penas de condenados pelos crimes cometidos durante a ditadura militar, lembraram o juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, vice-presidente da Corte, e o juiz mexicano Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot em voto concorrente conjunto difundido com a sentença da Corte.
No voto, os dois juízes afirmam que a posição adotada pela maioria foi reconhecer que as sentenças da Corte Suprema chilena não tinham caráter de coisa julgada, reforçando o entendimento da Corte IDH sobre o alcance do direito de acesso à justiça e das obrigações estatais adjacentes de investigar, julgar e punir violações graves de direitos humanos.
Para  Mudrovitsch e Mac-Gregor, o caso abre um campo importante para reflexão sobre a relação entre coisa julgada e proteção de direitos humanos, “inclusive na perspectiva da sofisticada jurisprudência da Corte IDH, cujo desenvolvimento alinhado aos precedentes de outros Tribunais Internacionais resultou na consolidação do instituto da coisa julgada aparente”.
Em sua visão, a aplicação da regra de meia prescrição do direito interno chileno, com a consequente redução desproporcional da pena aplicada a crimes de lesa humanidade, consistiu “em inequívoca hipótese de coisa julgada aparente, na terminologia há muito adotada pela Corte IDH, reunindo os três requisitos para o seu reconhecimento”. Seriam eles: o vício grave no processo (não necessariamente decorrente de fraude), seguido de impunidade absoluta ou relativa de agentes responsáveis por violações a direitos humanos e, por fim, a relação de causalidade entre o vício e o resultado do processo.
Com base nos precedentes da Corte, os juízes exploraram as hipóteses de desconstituição da coisa julgada no âmbito do sistema internacional de proteção de  direitos humanos, subdividindo o conceito em coisa julgada aparente stricto sensu e coisa julgada fraudulenta.
Para Mudrovitsch e Mac-Gregor, apesar de a decisão da Corte IDH corroborar a jurisprudência sobre a possibilidade de revisão de sentenças definitivas, o Tribunal perdeu a oportunidade de afirmar que o caso chileno foi um caso inequívoco do impacto do consolidado instituto interamericano da coisa julgada aparente e, consequentemente, do aprofundamento da compreensão desse instituto.
“Não se ignora que a jurisprudência do Tribunal que autoriza a revisão da coisa julgada é pacífica e ecoa a preocupação de outros tribunais internacionais. Contudo, há importantes desenvolvimentos teóricos e argumentativos, desenvolvidos para elucidar o conceito de coisa julgada aparente, por exemplo, em relação à diferenciação de coisa julgada fraudulenta”, afirmam no voto. “O reconhecimento expresso da coisa julgada aparente na sentença permitiria, assim, o desenvolvimento de estândares para a aplicação do instituto no Sistema Interamericano, contribuindo de forma mais clara para a sua compreensão e consolidação”, afirmaram.
Por outro lado, ao trazer à tona a revisão criminal em prejuízo do réu, destacaram, o caso expõe a “complexa e nada trivial relação entre o Direito Penal e os direitos humanos”, especialmente no que diz respeito “ao manejo adequado da sanção penal como instrumento de tutela imprescindível dos direitos humanos”.
<h3>Proteção e efeito cascata</h3>
Para analistas ouvidos pelo JOTA, o caso analisado destoa de casos clássicos de impunidade e marca um avanço na proteção de vítimas de crimes contra a humanidade e na atuação da própria Corte.
“Endossa a jurisprudência interamericana, no que se refere à imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e o dever do Estado de investigar, processar, punir e reparar graves violações de direitos humanos e crimes de lesa humanidade envolvendo torturas, execuções sumárias e arbitrárias e desaparecimentos forçados”, diz Flavia Piovesan, professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da PUC-SP.
Para ela, a sentença reforça a ideia de que se um Estado, no pleno exercício de sua soberania, ratifica tratados de direitos humanos, contrai obrigações jurídico vinculantes, e todos os Poderes devem se conformar à luz dos parâmetros internacionais no caso interamericano.
“O voto dos juízes Mudrovitsch e Mac-Gregor é primoroso e reforça a ideia de que não há coisa julgada perante o Direito Internacional e os direitos humanos porque decisões judiciais podem violar também a jurisprudência e a Convenção Americana”, afirma.
“No caso chileno, que tem o instituto de meia prescrição ou prescrição gradual, se entende que, ainda que houvesse coisa julgada, a Convenção pode ser violada por vícios e irregularidades insanáveis provocadas pelo próprio Judiciário, numa decisão judicial que descumpre parâmetros interamericanos”, analisa.
O voto de Mudrovitsch e Mac-Gregor aprofunda a noção de coisa julgada, diz a professora, com uma “reconceitualização da coisa julgada aparente”, que pode se dar como coisa julgada aparente stricto sensu ou coisa julgada fraudulenta.
“Dialogando com o sistema europeu e com a jurisprudência interamericana, trata-se de um avanço extraordinário por lembrar que a validade do processo é condição de validade da sentença”, afirma Flávia Piovesan.
“Ninguém pode ser processado pelo mesmo ato duas vezes. Então por um lado há essa garantia fundamental do réu, mas essa garantia há de ser afastada quando se percebe uma punição insuficiente, que há falhas na investigação, e vícios processuais substantivos, graves, que corrompem todo o processo. No caso chileno, a meia prescrição, ou prescrição gradual, traz um vício processual que resulta no déficit punitivo”, explica.
Por fim, diz a professora, há um convite à reflexão em toda a região, que guarda outros exemplos de violações graves de direitos humanos em regimes ditatoriais.
“A Corte Interamericana traz um impacto transformador no que se refere à justiça de transição buscando o efeito cascata. É um julgamento que integra o patrimônio regional interamericano e busca refinar os parâmetros interamericanos para a própria consolidação do Estado democrático de direito da nossa região. Não só diz respeito ao Chile, mas à toda a região que há que ser convidada a esta reflexão profunda da necessidade de revisão e anulação de julgamentos que levaram a esse déficit punitivo e mitigação da justiça”, opina ela.
Para Alaor Leite, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), o voto revela uma preocupação intensa e justificada com a integridade da jurisprudência da própria Corte.
“O conceito de coisa julgada aparente é um conceito que em parte já foi desenvolvido e explicitado pela Corte em outras decisões. O voto concorrente chama atenção para a necessidade de a Corte  não perder a oportunidade de mantê-lo quando for o caso na sua linha decisória, mas mover uma espécie de aumento da precisão conceitual”, afirma ele, doutor e mestre pela Universidade de Munique.
Pela primeira vez, lembra Leite, a Corte foi bastante técnica na distinção entre a chamada coisa julgada fraudulenta, produzida quando há mesmo fraude processual, e a coisa julgada aparente como ocorreu no caso em que há uma espécie de simulacro de processo.
“Não há propriamente fraude, mas há um atendimento meramente formal às obrigações de se perseguir determinados  crimes.
“A prescrição normal, não a meia prescrição, tem uma razão de ser que é bastante intuitiva. Quando o Estado é desidioso na persecução de alguns crimes ele perde em parte a legitimidade para punir esses crimes passados muitos anos. Mas isso é muito diferente em face de crimes de lesa humanidade, de natureza muito grave, precisamente quando são cometidos pelo próprio Estado em regime que não se possa considerar como regime democrático, e a história na América Latina é recheada de exemplos dessa natureza. Portanto, há sempre muitas dúvidas sobre se esse instituto que faz sentido para a maior parte dos crimes faz também sentido para esse tipo de criminalidade”, afirma Leite.
Para ele, a meia prescrição sanciona ainda mais a demora do Estado, ao não apenas punir o decurso do tempo total de prescrição como abrandar a eventual punição do acusado caso tenha transcorrido metade desse tempo.
“A discussão é oportuna porque o caso lança luz a uma hipótese que é menos explícita. Estamos acostumados a ver crimes cometidos pelo Estado em regimes totalitários ou ditatoriais que são simplesmente esquecidos, não são perseguidos pelo Estado. No caso chileno, houve persecução penal, porém ela foi, segundo a visão do juízes, uma espécie de arremedo de persecução penal que gerou uma resposta nitidamente insuficiente por aplicação desse instituto da meia prescrição. No fundo não foi mais do que uma falsa prestação de contas. E nesse sentido revela uma forma mais sutil de desatender as regras da Convenção”, opina Leite.
Para o especialista, o voto tem uma sutileza ao cuidar de um caso que não é dos mais evidentes, ao mesmo tempo em que aborda outro lado da moeda:
“Também é grave desfazer uma decisão definitiva contra o acusado, e a Corte também entende este como um direito importante, bem destacado no voto. É um voto muito consciente desse equilíbrio que tem que se buscar, avança na precisão conceitual e destoa de casos clássicos de impunidade”, diz.
Para Adriano Teixeira, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, a sentença representa, por um lado, um aprofundamento da jurisprudência da Corte na defesa dos direitos humanos, sobretudo nos casos em que violações de direitos humanos não foram devidamente punidas por leniência de Estados autoritários e por graves vícios processuais. Por outro lado, diz, apresenta ainda um refinamento de critérios para definir a resolução de situações desse tipo.
“O voto dos juízes Mudrovitsch e Mac-Gregor nesse sentido é uma enorme contribuição para a jurisprudência da Corte porque, embora não seja extremamente extenso, é especialmente denso com contextualização teórica muito precisa e importante sobre os institutos jurídicos em jogo, no caso a coisa julgada, o princípio ne bis in idem, a proteção de direitos humanos e a coisa julgada fraudulenta e aparente”, diz Teixeira.
<h3>Reconhecimento parcial do Chile</h3>
O Chile reconheceu parcialmente sua responsabilidade no caso e admitiu que a aplicação da meia prescrição viola os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial das vítimas identificadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao reduzir significativamente as penas impostas em. crimes contra a humanidade.
A Corte valorizou o reconhecimento da responsabilidade parcial, mas ponderou que outros aspectos permanecem controversos, como a compatibilidade da figura da meia prescrição na legislação chilena com a Convenção Americana, bem como o impacto que a aplicação dessa figura poderia ter nas obrigações dos Estados de investigar e punir graves violações dos direitos humanos. A Corte também considerou que outras violações de direitos não foram reconhecidos pelo Estado chileno.
Como medidas de reparação, o Tribunal ordenou a revisão e/ou anulação das reduções de pena que decorreriam da aplicação não convencional da meia prescrição. Determinou ainda que o Estado adapte seu sistema jurídico interno para que a meia prescrição não seja aplicável para crimes contra a humanidade e violações graves dos direitos humanos. Até que tal modificação seja feita, adicionou o Tribunal, o Chile deverá aplicar o controle de convencionalidade.
O Tribunal também ordenou que o Chile forneça tratamento psicológico, psiquiátrico ou psicossocial às vítimas que o solicitarem.
Participaram da emissão desta sentença os juízes Nancy Hernández López (Costa Rica, presidente), Rodrigo Mudrovitsch (Brasil, vice-presidente), Humberto A. Sierra Porto (Colômbia), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México), Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai), e Verónica Gómez (Argentina).
A juíza Patricia Pérez Goldberg, de nacionalidade chilena, não participou da tramitação do caso nem da deliberação e assinatura da sentença, seguindo as normas do Tribunal. Da mesma forma, o secretário da Corte, Pablo Saavedra Alessandri, de nacionalidade chilena, não participou na tramitação nem deliberação e assinatura da sentença.

juizes da corte idh

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Para Tribunal, 'meia prescrição' em revisão de sentenças não seria aplicável a delitos de lesa humanidade

Corte IDH condena Chile por reduzir penas de crimes cometidos na ditadura

Essa cobertura é apoiada pelo Elas Pedem Vista