Corte IDH

Brasil nega culpa por mortes na ‘Chacina do Acari’, mas admite falhas judiciais

Estado reconheceu que não deu respostas ao assassinato de mãe que investigava sumiço do filho e de outros dez jovens

chacina do acari
Mães do Acari / Crédito: João Roberto Ripper/Acervo Anistia Internacional

O Brasil reconheceu à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) parcial responsabilidade sobre desdobramentos do caso conhecido como “Chacina do Acari”, quando 11 jovens moradores da favela do Acari, no Rio de Janeiro, foram mortos em um sítio em Magé, na Baixada Fluminense. Em relação à chacina, o país, porém, negou a suposição de desaparecimento forçado dos jovens.

Segundo testemunhas, o grupo, que incluía sete menores de idade, foi sequestrado por homens que chegaram em um carro, uma viatura e uma Kombi e pediram dinheiro. Como não atenderam ao pedido, os jovens teriam sido levados para a fazenda de um policial, onde foram submetidos a violência sexual, assassinados e jogados no Rio Estrela, no Rio. Os corpos jamais foram encontrados.

Um inquérito policial foi aberto no dia seguinte aos desaparecimentos, mas, diante da falta de resposta das autoridades nos meses posteriores, mães dos desaparecidos passaram a investigar e reunir provas extraoficialmente e a cobrar o Estado por informações sobre os corpos. Elas ficaram nacionalmente conhecidas como “Mães do Acari”.

Em janeiro de 1993, a líder das Mães do Acari, Edmea da Silva Euzébio, foi assassinada em uma emboscada, no estacionamento do metrô da Praça Onze, no Rio, junto com a sobrinha dela, Sheila da Conceição.

Testemunhas disseram que Edmea havia reunido provas contundentes que apontavam para a participação de policiais nos assassinatos dos jovens. De acordo com o Ministério Público, o crime foi ordenado pelo coronel reformado e ex-deputado estadual Emir Campos Larangeira, que seria líder do grupo de extermínio policial que matou os jovens. O militar chegou a ser julgado, em 1996, mas foi absolvido por falta de provas. Até hoje, ninguém foi responsabilizado pelas mortes das duas mulheres.

É sobre a impunidade em relação às mortes de Edmea e Sheila que o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade internacional, em audiência realizada pela Corte IDH na última sexta-feira (13/10).

Diante dos juízes, o advogado da União Dickson Argenta de Souza pediu desculpas às famílias e admitiu que o Brasil falhou ao não punir os responsáveis pelo assassinato da líder das Mães do Acari e da sobrinha dela.

“O Estado brasileiro reconhece violações de direitos humanos vinculadas à morte das senhoras Edmea da Silva e Sheila da Conceição. O Estado entende que não cumpriu com sua obrigação de solucionar o caso em um prazo razoável, após denúncia feita pelo Ministério Público, razão pela qual o procedimento judicial se arrasta até os dias de hoje. Com isso, se violou os artigos 8 e 25 da Convenção Americana”, disse.

O advogado, no entanto, afirmou que a Corte IDH não tem competência temporal para analisar as demais violações atribuídas ao Estado, já que os fatos são anteriores ao reconhecimento da jurisdição do tribunal pelo Brasil, em 10 de dezembro de 1998.

“As mortes e todos os fatos que constituem violações instantâneas ocorridos antes de 10 de dezembro de 1998 estão, portanto, fora da competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos”, sustentou o advogado da União.

Além das violações reconhecidas pelo Estado, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) considerou que, em razão das 11 mortes e dos homicídios posteriores, o Brasil violou os artigos 3 (reconhecimento da personalidade jurídica), 4 (direito à vida), 5 (integridade pessoal), 13 (liberdade de pensamento e expressão), 16 (liberdade de associação), 19 (direitos da criança) e 24 (igualdade perante a lei) de sua convenção.

Representante das vítimas, o advogado Carlos Nicodemos, da organização Projeto Legal, defendeu que as circunstâncias do sumiço dos jovens caracterizam um típico caso de desaparecimento forçado, o que também implicaria em violações aos artigos I.a, b e d, e III da Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas.

“O caso é um exemplo claro de desaparecimento forçado, como ficou demonstrado pelas provas apresentadas. Foram agentes do Estado que sequestraram, violaram e fizeram desaparecer essas pessoas. Eles se mantiveram sob o manto da impunidade e nunca responderam por seus delitos”, disse o advogado.

Ele acrescentou: “A Corte tem jurisprudência consolidada sobre o desparecimento forçado a partir de três elementos: privação de liberdade, intervenção direta de agentes do Estado e a negativa de reconhecer a detenção e revelar o paradeiro da pessoa, o que está presente no caso concreto”.

Conforme Nicodemos, o desaparecimento forçado dos jovens se encontra em um contexto sistêmico de violência policial no Rio de Janeiro, expresso especialmente pela atuação de milícias.

“O desparecimento forçado é parte do regime de poder das milícias. Isso se comprova pela existência de cemitérios clandestinos, que contextualizam a violência exercida pela polícia. Outro fato conhecido no Brasil é a violência policial contra a população jovem, negra e habitante de favelas”, declarou.

O advogado da União rechaçou a suposição de desaparecimento forçado. “A caracterização do desaparecimento forçado exige três elementos, dois dos quais o Estado brasileiro entende que não foram provados. Primeiro, o Estado entende que não se provou a negação de revelar a detenção ou o paradeiro das vítimas. Pelo contrário, os relatos demonstram que houve um grande esforço para encontrar o paradeiro das vítimas. Segundo, não há provas sobre a participação de policiais nos fatos”, argumentou Dickson de Souza.

O representante estatal pediu aos juízes da Corte IDH que levem em conta que houve disposição das autoridades para tentar solucionar o caso. Ele anunciou que, além do reconhecimento parcial, o Estado construirá um memorial em homenagem às vítimas e reconhecerá, por meio da emissão de atestados de óbito, as mortes dos 11 jovens de Acari.

Após o fim da audiência, passou a contar o prazo de um mês para que as partes entreguem as alegações finais por escrito.

Participam do julgamento os juízes Ricardo César Pérez Manrique (presidente, Uruguai), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México), Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia), Nancy Hernández López (Costa Rica), Verónica Gómez (Argentina) e Patricia Pérez Goldberg (Chile). O magistrado brasileiro Rodrigo Mudrovitsch não participará do julgamento porque o regulamento da Corte não permite em casos do país de origem.

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