Corte IDH

Brasil foi omisso em desaparecimento de líder rural, diz irmão de vítima à Corte IDH

Estado brasileiro admite violação de direitos, mas não reconhece desaparecimento forçado de Almir Muniz da Silva

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Sessão da Corte IDH. Crédito: Flickr/@corteidh

O Estado brasileiro foi omisso na investigação do desaparecimento de um trabalhador rural em Itabaiana, no estado da Paraíba, disse o irmão da vítima em audiência na última sexta-feira (9/2) na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). O caso ocorreu em 2002. Mais de duas décadas depois, o paradeiro de Almir Muniz da Silva, que era também líder da Associação de Trabalhadores rurais de Itabaiana, continua desconhecido.

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De acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Almir Muniz da Silva denunciou em várias ocasiões, como defensor de direitos humanos e de luta pela terra, a participação de agentes policiais em atos de violência contra trabalhadores rurais. De forma específica, citou um policial, Sergio de Souza Azevedo como um dos principais responsáveis por esses atos. Devido a essa situação, Muniz da Silva e seus familiares foram vítimas de ameaças por parte de agentes policiais, incluindo o policial Azevedo. O trabalhador e líder rural denunciou esses fatos, sem que nada fosse feito a respeito, relatou a Comissão. Azevedo chegou a ser investigado numa CPI no Congresso Nacional por ser supostamente chefe de uma milícia.

Em 29 de junho de 2002, Muniz da Silva se dirigia para casa em um trator da associação por uma estrada que cruzava uma fazenda administrada pelo mesmo policial antes denunciado por ele. Familiares dizem que ouviram ao menos sete disparos naquela manhã e, desde então, o líder local nunca mais foi visto.

Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, tratou-se de um desaparecimento forçado, nunca comprovado pela Justiça brasileira, “apesar de vários elementos judiciais, probatórios e contextuais sobre a participação de agentes estatais em seu desaparecimento”. Ainda de acordo com a Comissão, segundo declarações de testemunhas, o policial Sergio de Souza Azevedo teria dito que reteve e posteriormente assassinou Muniz da Silva e que teria se desfeito do corpo e escondido o trator. Autoridades brasileiras também se recusaram a receber a denúncia dos familiares da vítima no mesmo dia do desaparecimento.

“A Comissão tomou em conta as ameaças sofridas por Muniz da Silva, que não foram investigadas pelo Estado, assim como o contexto de violência contra trabalhadores rurais, líderes e defensores da terra na Paraíba na época dos fatos”, afirmaram representantes da Comissão. “Em razão de sua condição como líder e defensor da terra, seu desaparecimento teve efeito dissuasivo e de medo para outras pessoas que desempenhavam funções similares. Depois, o caso foi arquivado, sem que houvesse nenhuma punição, em total impunidade”, relataram à Corte.

A Comissão apresentou relatório em 2021 informando o caso ao Estado brasileiro, que após cinco prorrogações solicitou nova prorrogação. A Comissão considerou que não houve avanços significativos e decidiu apresentar a demanda à Corte IDH.

O caso foi peticionado pela Justiça Global, a Comissão Pastoral da Terra da Paraíba e a Dignitatis. As organizações, assim como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, alegam que o Estado brasileiro seria responsável pela violação de uma série de direitos, entre eles o direito à vida, à integridade pessoal e às garantias e proteção judiciais. Para elas, o Brasil falhou em oferecer a devida diligência na investigação e punição dos responsáveis pelo desaparecimento de Muniz da Silva.

Conflito histórico

Na mesma audiência, o irmão de Muniz da Silva, Norberto Muniz da Silva, contou que os conflitos por terra na região começaram no final dos anos 1980, quando outro trabalhador rural, Severino Moreira, foi assassinado em meio a um conflito de proprietários de terra com posseiros e rendeiros na região.

A situação piorou, afirmou Norberto, quando o policial Sergio Azevedo foi contratado como segurança de uma das maiores fazendas da região.

“Como policial, confiávamos que ele ia trazer segurança para nós. Mas chegou para aterrorizar o povo, ameaçar, como meu irmão foi ameaçado por ele”, contou.

Muniz da Silva, como liderança do grupo, “ficou visado”, afirmou Norberto. Os trabalhadores rurais passaram a ser impedidos de passar dentro da fazenda, mesmo que para acessar as poucas estradas disponíveis entre cidades vizinhas.

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“Já sabíamos que ele (Sergio Azevedo) era violento. Andava com outros indivíduos armados, coisa que só tinha visto em filme. E a gente, desamparado”, disse Norberto à Corte. “Soubemos que ele era policial civil, que trabalhava em João Pessoa, na capital. Mas nos dias de folga vinha fazer segurança na fazenda”.

No dia em que Muniz da Silva desapareceu, havia pegado o trator após um problema mecânico no carro. Ia levar milho à família para preparar comidas juninas, como era época, disse Norberto. Mas não voltou.

“No mesmo dia fomos até a cidade registrar queixa, mas não fomos atendidos. Dois dias depois, fomos até a Secretaria de Segurança, e o pessoal que foi depor como testemunha foi ameaçado, teve que sair escoltado. Entendemos que acharam que não era devido acusar um policial civil naquela repartição. Meu pai foi dar depoimento e foi barrado. Mas se era ele que estava nos ameaçando achávamos que tínhamos direito de dizer o que estava praticando na nossa comunidade”, disse Norberto, acrescentando que a mãe, de 85 anos, até hoje acha que o filho vai voltar.

“Almir era um pai de família muito presente para os filhos”, afirmou o irmão. “Dois tinham entre 15 e 14 anos, o mais velho tinha 17 anos. Eles já ajudavam. Quem é da roça começa a trabalhar cedo. E depois da ausência de Almir ficou uma família desestruturada. Os filhos, a esposa, ficaram sem semblante. O que aconteceu foi crueldade. Até hoje essa ferida não sara”, contou Norberto.

Ao longo dos anos, disse, a família recebeu algumas “pistas” sobre possível paradeiro de Muniz da Silva. Em muitas ocasiões, foram ao Instituto Médico Legal (IML) seguindo alguma indicação.

“Isso só aumentava a dor. Não sei se alguém queria prejudicar a família, dizia que podia ser o corpo dele, mas chegávamos e não era nada. Ficou uma confusão na nossa cabeça, que deixou sequelas”, contou.

Para Norberto, o Estado foi culpado pelo que aconteceu porque não seguiu seu papel de investigar o caso. E o acusado jamais foi ouvido para dar declarações.
O advogado Noaldo Belo de Meireles, da Comissão Pastoral da Terra, contou à Corte que em diversas ocasiões acompanhou trabalhadores locais em delegacias em contexto de conflitos agrários. Para ele, foi desencadeado um processo de criminalização e violência contra a comunidade, com leniência do Estado.

“Já no dia da tentativa dos familiares de registrar o caso houve recusa da delegacia de Itabaiana de atender Norberto. A Comissão Pastoral da Terra e alguns deputados procuraram a Secretaria de Segurança e tomaram o depoimento do Sr. Vicente, pai de Almir e Norberto. Nesse dia, foi decidido pela Secretaria nomear um delegado especial para acompanhar o caso”, contou Noaldo.

“Para nossa grande surpresa e tristeza, o delegado que foi nomeado, Manoel Magalhães Neto, era o mesmo que dois meses antes tinha sido designado para apurar um caso de tentativa de homicídio que o policial civil e investigador Sergio de Souza Azevedo tinha sofrido em uma cidade próxima. E esse delegado tem denúncias de graves torturas contra presos. Não entendemos como ele foi designado para apurar um caso de desaparecimento de um trabalhador na mesma região”, completou ele, afirmando que Sergio de Azevedo já tinha trabalhado na equipe do mesmo delegado, havendo “relação profissional e de amizade”.

Para o advogado Hugo Belarmino de Morais, professor de Direito e diretor técnico da Dignitatis, em representação das vítimas, a omissão das autoridades e o descaso com o desaparecimento de Muniz da Silva se observaram desde o começo da busca por ele. Um mês depois, o trator de Muniz da Silva foi encontrado, e nem assim a investigação avançou.

“No fim de julho, o trator foi encontrado na fazenda Olho D’Àgua, no município de Itambé, no estado de Pernambuco, na divisa do estado da Paraíba. A região era e ainda é polo de atuação de grupos de extermínio”, afirmou o advogado.

“O desespero tomou conta dos familiares. É digno de nota dizer que a perícia não apontou nenhum indício relevante, nem marcas de digitais ou marcas de tiros, que foram localizadas pelos próprios familiares. O trator continua com os trabalhadores do atual assentamento Almir Muniz e é utilizado nas atividades agrícolas e manejado pelos familiares. Imaginem o impacto e a dor dos companheiros ao utilizar esse instrumento de trabalho, inclusive por falta de políticas públicas para os camponeses, o mesmo que foi utilizado no desaparecimento de uma liderança camponesa tão importante”, disse Belarmino de Morais.

Para a representação das vítimas, agentes estatais agiram de forma a não permitir que o corpo fosse encontrado. Ele teria sido morto por arma de fogo, afirmaram, atropelado pelo próprio trator, e provavelmente teria tido o corpo queimado.

“O desaparecimento ocorreu por sua atuação como líder defensor de direitos humanos e pela denúncia da ação de policiais em conflitos agrários na Paraíba. As denúncias que realizou perante a Comissão Parlamentar de Inquérito que apurava a violência no campo, como por exemplo a formação de milícias privadas no estado, foram fundamentais para provar que agentes estavam envolvidos em outros casos. Seu desaparecimento favoreceu as milícias e seus mandantes, em especial proprietários de terras”, contou o advogado da Dignitatis.

Segundo a advogada Daniela Fichino, diretora-adjunta da Justiça Global, entre 2019 e 2021 o Brasil registrou mais de 200 mil desaparecimentos por causas diversas, de acordo com dados do relatório do Fórum de Segurança Pública.

Para ela, no caso de Muniz da Silva, em que um agente estatal é apontado como suspeito, cabe ao Estado brasileiro provar que não houve sua participação.
“De norte a sul, o que se documenta e evidencia é um crescente aumento de agentes do Estado na sustentação, formação, apoio direto e indireto a grupos de milícias e extermínio que redundam em mortes no campo e na cidade, na vulneração do direito à terra e ao território, na vulneração física e psíquica de diferentes populações que lutam pelo reconhecimento de seus direitos”, afirmou.

Brasil admite responsabilidade parcial

Na audiência, o Estado brasileiro admitiu que houve violação estatal aos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial porque a investigação sobre o desaparecimento de Muniz da Silva “careceu de recursos materiais e humanos, não tendo o Estado atuado com a devida diligência, o que resultou no arquivamento do inquérito policial” (em 2009).

O Estado também ampliou o reconhecimento de responsabilidade internacional por ofensa ao artigo 5.1 do Pacto de San José, “segundo o qual toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral”. No caso, a integridade psíquica e moral dos familiares de Muniz da Silva foi violada “fundamentalmente em vista do sofrimento causado diante da ausência de investigação suficiente do desaparecimento”.

“De fato, a perda de um ente querido, somada à impunidade resultante de um processo de investigação insuficiente, constitui inelutável violação da integridade psíquica e moral dos familiares do Sr. Almir Muniz da Silva. Em razão disso, considerando-se a natureza jurídica própria de que se revestem as medidas de reparação por violações dos Estados ao Direito Internacional, o Estado brasileiro manifesta publicamente seu pedido de desculpas aos familiares do Sr. Almir Muniz da Silva”, afirmaram.

Não houve reconhecimento, porém, de que o ocorrido configura caso de desaparecimento forçado.

“Conforme precedentes desse tribunal e tratados sobre o tema são elementos do desaparecimento forçado: 1) Privação de liberdade, provocada por agente do Estado ou 2) com apoio ou concordância deste 3) Negativa de reconhecer privação de liberdade e revelar a sorte ou paradeiro da pessoa desaparecida. No caso, o Estado brasileiro compreende não ter restado demonstrada a privação de liberdade praticada por agentes estatais ou por quem agisse com autorização, apoio ou aquiescência do estado. O que se verifica é que a partir da profissão de policial do suspeito apontado pelos familiares atribuiu-se ao Estado a privação de liberdade ou aquiescência com tal conduta”, afirmaram representantes do Estado brasileiro.

Disseram também que, ainda que fossem comprovadas as alegações contra o suspeito, não se poderia concluir que sua conduta decorreu de sua função como policial ou presumir que seus atos fossem autorizados, apoiados ou consentidos pelo Estado.

“Ademais, no âmbito interno não houve acusação formal ou condenação penal do suspeito, e isso devido às falhas já reconhecidas pelo Estado. Sem uma condenação penal transitada e julgada, o Estado brasileiro não pode afirmar que uma pessoa específica, dentro do seu território, praticou um ato definido como crime. O que reconhecemos é que as falhas decorridas na investigação tiveram como consequência a inviabilidade de se apurar a responsabilidade criminal do suspeito Sergio Azevedo”, concluíram representantes do Estado brasileiro, afirmando que medidas solicitadas de reparação já estão em andamento, como programas de proteção a defensores de direitos humanos no contexto agrário.

As organizações de representação das vítimas chamaram de “audácia” do Estado brasileiro não reconhecer o caso como desaparecimento forçado, dadas as reiteradas demonstrações de ameaças do policial suspeito. E afirmaram que ele usava “convenientemente” a posição de policial, que era conhecida por outros policiais e confirmaria a aquiescência do Estado.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos afirmou que não houve comprovação por parte do Estado brasileiro de que Sergio Azevedo não trabalhasse como administrador da fazenda durante seu turno de trabalho como policial. Adicionou ainda que ele trabalhava na fazenda uniformizado como policial, e circulava em delegacias da região conhecido como tal. A Comissão reiterou a observância do caso como desaparecimento forçado e solicitou à Corte a declaração de responsabilidade internacional do Estado brasileiro pelo ocorrido com Muniz da Silva.

Azevedo foi assassinado onze anos depois, em 2013,  a tiros, dentro de sua casa, em Bayeux, Paraíba.

Conflito por terras na agenda

Na véspera da audiência sobre o caso Muniz da Silva, os juízes da Corte analisaram o caso Da Silva vs Brasil, sobre a violação de direitos humanos no assassinato do trabalhador rural Manoel Luiz da Silva, morto em 1997, também na Paraíba.

Ele pertencia ao Movimento dos trabalhadores rurais sem-terra (MST) e foi assassinado a tiros por seguranças particulares de uma fazenda na cidade paraibana de São Miguel de Taipu. Ele e outros três trabalhadores rurais atravessavam a fazenda vindos de uma mercearia, em direção ao acampamento da reforma agrária, quando foram interpelados por seguranças fortemente armados.

Manoel, que tinha 40 anos na ocasião, foi baleado e morreu. Seu filho, Manoel Adelino, tinha quatro anos, e sua mulher, Edileuza, estava grávida do segundo bebê. Na audiência, Manoel Adelino contou que depois do ocorrido ele e a mãe deixaram o acampamento da reforma agrária em que viviam e que a mãe “se entregou aos vícios”, morrendo em decorrência de alcoolismo poucos anos depois. Aos 9 anos, Manoel Adelino deixou a escola, foi morar em casa de parentes e começou a trabalhar em “bicos”.

Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a investigação do caso e a ação penal foram marcadas por uma série de omissões e irregularidades.

Na audiência, representantes do Estado brasileiro assumiram que houve demora e falhas no processo de identificação e punição dos culpados e pediram desculpas a familiares da vítima.

Participam de ambos os julgamentos os juízes Nancy Hernández López (presidente, Costa Rica), Ricardo César Pérez Manrique (Uruguai), Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia), Verónica Gómez (Argentina) e Patricia Pérez Goldberg (Chile).

O juiz Rodrigo Mudrovitsch (vice-presidente, Brasil), de acordo com o regulamento da Corte, não participa das deliberações em casos envolvendo seu próprio país.