Estúdio JOTA

O Brasil enfrenta uma crise no atendimento de saúde renal, que tem colocado em risco a vida de brasileiros com a perda da função dos rins. A Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) alerta para a gravidade dessa situação, em que mais de 1,4 mil pessoas aguardam internadas em hospitais por vagas para a diálise – esse número pode ser ainda maior, pois apenas nove estados da federação forneceram informações sobre essa crescente demanda.
A dependência da diálise para a sobrevivência é uma realidade para aproximadamente 154 mil cidadãos no país, de acordo com dados do último censo realizado pela SBN. A maioria desses pacientes, em torno de 95%, realizam hemodiálise como terapia de suporte renal. Todavia, merece atenção uma alternativa subutilizada: a diálise peritoneal, cuja presença é marcante em diversos países.
Diferentemente da realidade brasileira, onde a diálise peritoneal é pouco explorada, essa técnica tem se mostrado uma escolha amplamente adotada em nações como os Estados Unidos, Tailândia e China. No México, por exemplo, a terapia atinge cerca de 50% dos diagnosticados; ela se posiciona como um tratamento viável a ser realizado no lar, minimizando as idas hospitalares.
No entanto, os números brasileiros revelam uma situação desafiadora, com menos de 5% dos pacientes optando pela diálise peritoneal, segundo levantamento da SBN. Diante dessa realidade, emerge a discussão sobre como ampliar o acesso a essa alternativa terapêutica, uma vez que ela tem a mesma efetividade da hemodiálise. 
A medida poderia reduzir o contingente de pessoas sem assistência adequada, ao mesmo tempo em que seria uma opção para aqueles que já realizam hemodiálise. Neste momento de crise da saúde renal, a qualidade de vida e a sobrevivência dos pacientes dependem de novas soluções. 
<h3>A doença renal crônica e a diálise</h3>
Estima-se que cerca de 10% da população mundial seja afetada pela doença renal crônica, conhecida pela sigla DRC. Essa condição, predominantemente causada por diabetes e pressão arterial alta não controlados, provoca uma deterioração insidiosa, progressiva e irreversível na capacidade de filtragem dos rins. A maioria dos pacientes não apresenta sintomas específicos no momento do diagnóstico, que revela o caráter silencioso da doença. 
O gerenciamento da DRC tem como alternativas a diálise (peritoneal e hemodiálise) ou o transplante renal. Entretanto, uma parcela reduzida de pacientes qualifica-se para um transplante renal logo no início do tratamento, portanto a maioria necessita da diálise para estabilizar a condição e, eventualmente, tornar-se apta a integrar um programa de transplante renal. Para pacientes em situações de urgência, as terapias de diálise são as únicas opções para prolongar suas vidas.
<blockquote class="jota-article__eye">Menos de 5% dos pacientes com doença renal crônica são tratados com diálise peritoneal</blockquote>
Cerca de 70% das pessoas com DRC dependem da diálise para sobreviver. Essa abordagem terapêutica substitutiva desempenha um papel fundamental ao suprir as funções renais deterioradas. Por meio da diálise, o organismo é clareado de resíduos indesejados, tais como uréia e excesso de sais minerais (como o fósforo e o potássio), que os rins não são mais capazes de eliminar de forma eficaz.
Enquanto a hemodiálise exige a presença no hospital, o que impacta a rotina do paciente, a diálise peritoneal é uma opção que pode ser realizada em casa, durante o sono do paciente. 
<h3>Entre a hemodiálise e a diálise peritoneal</h3>
A terapia de hemodiálise consiste em filtrar o sangue do paciente com o auxílio de uma máquina, cumprindo assim as funções de remoção de toxinas e excesso de líquidos, essenciais para o bom funcionamento dos rins. Para realizar a hemodiálise, é necessário que o paciente tenha um acesso vascular (fistula ou cateter) que permita encaminhar parte do sangue para o maquinário da hemodiálise. 
Por envolver manipulação de sangue, ela é realizada em ambiente hospitalar, como hospitais ou clínicas especializadas em hemodiálise. Assim, os pacientes precisam se deslocar, no mínimo, três vezes por semana, para sessões que duram aproximadamente quatro horas cada. 
Por outro lado, a diálise peritoneal é uma abordagem terapêutica que o próprio paciente pode realizar em casa. Nesse método, a filtração do sangue ocorre por meio de um cateter implantado na cavidade peritoneal do abdômen. 
A diálise peritoneal pode ser realizada diariamente, por meio de trocas diurnas ou mesmo durante o sono, com a ajuda de uma máquina cicladora. Essa modalidade permite que o paciente mantenha uma rotina mais próxima do seu cotidiano, adaptando o tratamento conforme as próprias necessidades.
Comparativamente, a diálise peritoneal é tão eficaz quanto a hemodiálise em termos de suporte renal e sobrevida. Em alguns casos, a diálise peritoneal pode ter resultados superiores, considerando aspectos como qualidade de vida, capacidade de realização de atividades físicas e manutenção da rotina do paciente.
Há contraindicações específicas à diálise peritoneal que devem ser avaliadas individualmente. Fatores como histórico de cirurgias abdominais complexas podem dificultar a viabilidade dessa terapia. Países como Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia priorizam para terapias domiciliares, como a diálise peritoneal.
A Portaria 389/2014 do Ministério da Saúde, que define diretrizes para o cuidado de pacientes com DRC, propõe elevar o uso da diálise peritoneal para 20% dos casos após dois anos da implementação da política. No entanto, mesmo quase uma década após a implementação, apenas um quarto desse objetivo foi alcançado.
<blockquote class="jota-article__eye">Em 2014, o Ministério da Saúde planejava elevar o uso da diálise peritoneal para 20% após dois anos</blockquote>
“Quando estudamos a sobrevida tanto durante a hemodiálise quanto em diálise peritoneal, verificamos que é equivalente nos dois primeiros anos de tratamento”, explica a nefrologista Daniela Ponce, professora da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB-Unesp) e responsável médica pela unidade de diálise do Hospital das Clínicas (HCFMB). “Essa é uma estratégia de saúde pública. No Brasil, pelo menos 25% dos pacientes que estão em hemodiálise poderiam fazer a diálise peritoneal”, pontua Ponce.
<h3>A rotina em diálise</h3>
O advogado Álvaro Braz, 65 anos, morador de São Paulo, passou mais de duas décadas tratando sua diabetes e hipertensão arterial. Contudo, em 2022, durante uma crise de saúde, ao visitar um hospital vinculado ao seu plano de saúde, recebeu a notícia de que estava enfrentando uma séria perda de função renal, já em estágio avançado de doença renal crônica. Seguindo as orientações médicas, ele passou por uma cirurgia para implantar um cateter de hemodiálise e iniciou a terapia.
"A hemodiálise é bastante sacrificante. Você precisa ir a uma clínica, ficar quatro horas em uma cadeira, perdendo praticamente o dia inteiro. Sem contar o estresse das agulhas, que tenho pavor. No outro dia, você está destruído. Eu não tinha mais vida social, não tinha vontade de trabalhar nem de sair. Minha vida se resumia a ir para a clínica fazer a hemodiálise”, relembra Braz. 
As sessões começavam às 10h30, mas ele saía de casa às 9h para chegar à clínica. Geralmente, as sessões terminavam por volta das 14h30, o que significava que ele só retornaria a casa por volta das 16h. Durante os meses de tratamento de hemodiálise, ele perdeu 32 kg e sofria os impactos negativos do estresse a cada visita à clínica.
A situação mudou quando a filha de Braz ouviu falar sobre a diálise peritoneal por meio das redes sociais e, ao pesquisar na internet, descobriu que essa modalidade de tratamento estava disponível tanto pelo Sistema Único de Saúde (SUS) quanto por convênios de saúde particulares. Ela então entrou em contato com o serviço social da clínica de hemodiálise e foi encaminhada para o Hospital do Rim, em São Paulo, onde ele agora realiza a diálise peritoneal.
“Minha vida mudou completamente; voltei a poder sair para um almoço, trabalhar e até mesmo viajar”, relata Braz. Desde novembro de 2022, ele só precisa se dirigir ao hospital para consultas mensais de rotina e agora está na lista de espera para um transplante renal. Desde que fez a transição, não enfrentou nenhuma complicação associada ao tratamento.
<blockquote>"Após a mudança para a diálise peritoneal, minha vida mudou completamente; voltei a poder sair para um almoço, trabalhar e até mesmo viajar."
<footer class="jota-article__quote-cite">Álvaro Braz, 65 anos </footer>
</blockquote>
Todo o equipamento necessário para a diálise peritoneal é disponibilizado para os pacientes que requerem esse tipo de terapia. Além disso, os suprimentos diários essenciais, como bolsas e equipamentos, são entregues mensalmente na residência dos pacientes. No país, a empresa Baxter é a principal fornecedora desse tratamento.
<h3>Da vivência pessoal à cobrança política</h3>
Maria de Lourdes Silva Alves, 67 anos, presidente da Federação Nacional das Associações de Pacientes Renais e Transplantados do Brasil (Fenapar), compartilha uma experiência diferente da de Álvaro Braz. Há cerca de 15 anos, ela também enfrentou a perda de função renal e necessitou dar início à hemodiálise. Naquela época, desconhecia a técnica da diálise peritoneal e não recebeu orientação sobre essa opção por parte dos profissionais que a acompanhavam.
"A hemodiálise impacta muito a nossa vida; fiquei um ano e meio nesse tratamento e fazia sessões três vezes por semana. Hoje, eu teria escolhido a diálise peritoneal, porque é menos invasiva, não tem a necessidade do deslocamento e não debilita tanto”, compartilha Alves.
Em julho de 2023, ela participou do lançamento da Frente Parlamentar da Nefrologia. Durante seu discurso aos parlamentares na Câmara dos Deputados, Alves destacou a crise relacionada à diálise no Brasil. Um dos pontos mais alarmantes é a situação das clínicas de hemodiálise conveniadas ao sistema público de saúde (SUS), que enfrentam sérias dificuldades financeiras. 
Devido à defasagem na tabela de repasse financeiro do SUS e ao aumento substancial dos preços dos insumos necessários para a terapia, 42 clínicas encerraram suas atividades desde 2017, enquanto outras tiveram que reduzir o número de vagas, conforme dados da Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplante.
Há pelo menos 1,4 mil pessoas internadas (principalmente em UTIs) aguardando vagas em hospitais e nas clínicas de diálise que restaram, conforme dados fornecidos pelas secretarias de Saúde de Alagoas, Amazonas, Bahia,  Distrito Federal, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina, São Paulo, reunidos pela Sociedade Brasileira de Nefrologia.
<blockquote class="jota-article__eye">Há pelo menos 1,4 mil pessoas internadas aguardando vagas em hospitais e clínicas de diálise </blockquote>
"A vida de um paciente renal crônico é doída. A fila para a hemodiálise está muito grande, cada paciente ocupa um leito na UTI enquanto espera vaga para o tratamento domiciliar. A diálise peritoneal dá a possibilidade de se fazer o tratamento em casa, o que onera muito menos o governo”, argumenta Alves.
Um estudo conduzido em Curitiba e publicado no Jornal Brasileiro de Nefrologia avaliou o impacto financeiro da hemodiálise, diálise peritoneal e transplante renal no SUS e na saúde suplementar. 
O transplante renal apresenta o menor custo a longo prazo, mas frequentemente não é uma opção viável como primeira escolha devido às condições clínicas do paciente, demanda elevada e prazo para encontrar um órgão compatível. Em seguida, aparece a diálise como tendo menor custo-efetividade – isto é, a relação entre os recursos necessários e os impactos positivos do tratamento
Isso porque a hemodiálise inclui custos de recursos diretos da unidade de diálise, mas também gastos indiretos, como hospitalizações frequentes. Além disso, a terapia exige uma quantidade significativa de profissionais, como enfermeiros e médicos, durante as sessões. Existem ainda os gastos municipais com transporte até o local da diálise, frequentemente fica em outra cidade. 
"Na diálise peritoneal precisamos de muito pouco em comparação com a hemodiálise. Profissionais treinados, implantes de cateter e custos de consultas mensais são os principais gastos atribuídos à terapia", destaca a nefrologista Daniela Ponce, da Unesp. Segundo ela, um dos principais benefícios da diálise peritoneal é que ela leva o tratamento até o paciente, e não o contrário.
<h3>Falta de informação </h3>
Apesar das orientações oficiais do Ministério da Saúde para aumentar a utilização da diálise peritoneal em todo o país, esse método ainda enfrenta barreiras significativas para o seu crescimento no Brasil. A falta de conhecimento sobre essa terapia, tanto por parte dos profissionais de saúde quanto dos próprios pacientes, bem como a disponibilidade limitada de serviços públicos e clínicas privadas, são os principais desafios.
O advogado Álvaro Braz trocou tratamento após a filha encontrar, por acaso, informações sobre a diálise peritoneal nas redes sociais. Enquanto a professora Maria de Lourdes Silva Alves ficou receosa em relação a essa modalidade, uma vez que não tinha ouvido falar sobre ela e não recebeu orientações da equipe médica que a acompanhava.
“O método está tão subutilizado em nosso país, onde hoje temos uma realidade em que escolas de medicina formam nefrologistas que nunca tiveram contato com o tratamento de diálise peritoneal. Como os médicos que não estão familiarizados com essa técnica podem prescrevê-la?", questiona a professora de nefrologia Daniela Ponce.
No sistema público de saúde, existem centros de referência para essa terapia, como o Hospital do Rim em São Paulo e o Hospital Ana Nery em Salvador. No entanto, a oferta ainda é limitada.
<blockquote class="jota-article__quote">"Hoje temos uma realidade em que escolas de medicina formam nefrologistas que nunca tiveram contato com o tratamento de diálise peritoneal."
<footer class="jota-article__quote-cite">Daniela Ponce, nefrologista e professora da Unesp</footer>
</blockquote>
De acordo com o último censo da SBN, aproximadamente 95% dos pacientes renais crônicos atendidos pelo SUS passam por hemodiálise, enquanto apenas 4,1% utilizam a diálise peritoneal. No setor privado, a situação não é muito diferente, com aproximadamente 90,9% dos pacientes em hemodiálise e apenas 7% em diálise peritoneal.
“A chance de melhorar esse cenário é se houver a criação de grandes centros de referência pactuados com os estados, para colocar a população afetada em terapia. Além do compromisso das escolas de medicina em formar profissionais que tenham acesso ao tratamento, para que também possam oferecer a diálise peritoneal”, sugere Ponce.
Além de seguir a política pública do Ministério da Saúde, que mira na ampliação do acesso à diálise peritoneal desde 2014, seria preciso garantir que os pacientes tenham a oportunidade de escolher seus tratamentos, de acordo com a própria realidade. Isso poderia acontecer ainda dentro dos limites do financiamento público.

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JOTA

Apesar de gerar menos custos, técnica é subutilizada no Brasil, que tem filas de espera para tratamento de doença renal crônica

Benéfica a pacientes, diálise peritoneal é viável frente à crise da hemodiálise

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