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Dano moral no transporte aéreo não depende de Convenção de Montreal

Tema 1.240, fixado pelo STF, não muda necessidade de prova do dano moral como condição para indenização

Avião
Foto: Unsplash

A concessão de indenizações por dano moral certamente constitui a grande causa do extraordinário e anormal volume de ações judiciais no Brasil envolvendo empresas aéreas.

Recentemente, ao analisar um recurso extraordinário interposto pela companhia aérea Deutsche Lufthansa AG em face de acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou o Tema 1.240, que dispõe: “não se aplicam as Convenções de Varsóvia e Montreal às hipóteses de danos extrapatrimoniais decorrentes de contrato de transporte aéreo internacional”.

Não obstante, há ampla fundamentação para que se questione essa interpretação, encontrada em estudos aprofundados sobre o tema realizados pelos professores Francisco Rezek1, Rosa Maria Nery e Nelson Nery Jr., os quais ensinam, entre vários outros aspectos, que a Convenção de Montreal deve ser aplicada tanto à responsabilidade civil por danos materiais quanto por danos extrapatrimoniais ou morais.

Todavia, não é esta a linha que pretendemos seguir nos limites deste artigo. Objetivamos demonstrar que a problemática relacionada ao dano moral no transporte aéreo não se relaciona à aplicação ou não do referido tratado internacional, mas está na causa do pedido de indenização desta natureza.

Como é notório, o dano moral decorre de conduta que afeta a personalidade da pessoa, sua honra, boa fama ou dignidade, causando abalo psicológico. Nessa linha, como condição para a responsabilização por dano desta natureza, há que se estabelecer o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do agente causador do evento danoso. Mesmo diante do sistema de responsabilidade objetiva, estas são condições sine qua non para que surja o direito à indenização a este título.

Muito embora o Direito brasileiro não contemple o instituto da indenização punitiva – ou punitive damages, instituto próprio da common law –, a jurisprudência pátria incorporou esse conceito no âmbito do dano moral, o qual passou a apresentar uma natureza dúplice: compensar a vítima que sofreu abalo psicológico, e também punir o causador do dano, com propósito educativo.

Neste contexto, surgiram interpretações bastante peculiares nos tribunais, no sentido de que atrasos ou cancelamentos de voo, além de problemas no transporte de bagagem, ocasionam dano moral, dispensando-se que o reclamante comprove a sua ocorrência. É o chamado dano moral presumido, ou in re ipsa.

A facilidade de se obter compensação financeira nestas hipóteses acabou incentivando a judicialização em face de companhias aéreas, o que propiciou o surgimento de empresas virtuais fomentadoras de litígios, que se aproveitam dessa oportunidade para lucrar, sob a falsa justificativa de proteger passageiros supostamente lesados.

Essas interpretações não se sustentam após uma análise cuidadosa da jurisprudência mais recente e da legislação atualmente em vigor.

Em 2019, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em recurso relatado pela ministra Nancy Andrighi (Resp 1.796.716) decidiu que atraso ou cancelamento de voo não configura dano moral presumido. Por isso, a indenização somente será devida se comprovado algum fato extraordinário que tenha trazido abalo psicológico ao consumidor.

Posteriormente, colocando uma pá de cal sobre essa questão, a Lei 14.034/2020 acrescentou o artigo 251-A ao Código Brasileiro de Aeronáutica, prevendo que a indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro.

Caminharam bem a jurisprudência e o legislador. Não se pode considerar que simples atrasos de voo ou situações de demora ou perda de bagagem causem humilhação ou dano à personalidade passiveis de indenização, a não ser que se admita que vivemos em uma sociedade frágil formada por cidadãos incapazes de compreender os aborrecimentos normais da vida cotidiana.

Admitir que fatos como estes, ou qualquer outro revés que enfrentamos no dia a dia, produzem direito indenizatório elevaria o grau de intolerância nas relações interpessoais ao insuportável, gerando o caos social.

Da mesma forma, não se pode admitir que tais situações ensejem dano moral com caráter punitivo, especialmente quando o evento decorre de força maior ou caso fortuito, ou são motivadas por questões afetas à segurança de voo, o que ocorre na grande maioria das situações envolvendo transporte aéreo.

Acrescente-se que não cabe ao Judiciário impor sanções às empresas aéreas por eventual descumprimento voluntário de obrigações contratuais, já que a competência para aplicação de penalidades nestas hipóteses cabe ao órgão regulador, a Agência Nacional da Aviação Civil (Anac).

Finalmente, o artigo 29 da Convenção de Montreal – cuja aplicabilidade no Brasil foi reconhecida pelo STF por ocasião do julgamento do Terma 210 da repercussão geral – veda expressamente a concessão de indenização com caráter punitivo, além de não encontrar fundamento em nosso ordenamento jurídico.

Não obstante o entendimento do STF no julgamento do tema 1.240, que excluiu a aplicabilidade da Convenção de Montreal às hipóteses de danos extrapatrimoniais, o que se depreende é que a discussão relativa ao dano moral no transporte aéreo vai além do que prevê ou não o referido tratado internacional.

É no nascedouro desse pretenso direito que deve recair a análise se deve haver indenização, de forma a aferir se o pedido apresenta fundamento ou não. E, como demonstrado, ausente a comprovação do dano efetivo e do nexo de causalidade, deve ser denegado todo e qualquer pleito dessa natureza.

Essa conclusão é de máxima relevância para o debate da judicialização excessiva no Brasil. Temos nos deparado com posições externadas por empresas agenciadoras de ações judiciais defendendo o amplo cabimento dos danos morais no transporte aéreo, sob o falso argumento de que os consumidores devem ser protegidos em face de supostas falhas do serviço prestado pelas companhias aéreas.

Na realidade, os defensores destas teses pregam a manutenção da figura do dano moral presumido, já que este instituto jurídico, na forma como vem sendo aplicado nas ações de responsabilidade civil contra companhias aéreas mencionadas neste artigo, proporciona a criação de um produto financeiro. Ele se materializa em um direito indenizatório assemelhado a um cheque em branco, com valor carimbado, já que conta com a certeza de procedência de demandas judiciais, desprezando-se a motivação da conduta da companhia aérea, o nexo de causalidade e a própria existência do suposto dano.

Então, devemos nos perguntar o que almejamos, como sociedade, ainda que nos limites das relações abordadas neste artigo. Desejamos fomentar a cultura da reclamação pela simples vantagem em se reclamar ou uma sociedade ética, onde a queixa ocorre quando há conduta lesiva e dano efetivo a reparar?

Certamente, a Lei 14.034/2020, a jurisprudência do STJ, assim como o Tema 210 já nos dão o caminho a ser trilhado, para que seja protegido o consumidor efetivamente lesado, caso haja defeito na prestação dos serviços de transporte aéreo. Ao mesmo tempo, devem servir para coibir pedidos de indenização abusivos e desproporcionais.

1 REZEK, Francisco. O transporte aéreo internacional ante a Justiça do Brasil. Revista do Advogado, AASP, nº 142. Junho de 2019, Direito Aeronáutico, p. 32-40.

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