Análise

Relações institucionais e economia comportamental: esculpindo escolhas

A ‘arquitetura de escolhas’ tem muito a contribuir para diversos ramos da comunicação institucional

Crédito: Pixabay
brava

A mais tradicional entidade da área de relações públicas dos EUA, o Institute for Public Relations (IPR) lançou em 2019 seu primeiro manual de Economia Comportamental, marcando a chegada de uma nova ciência à comunicação institucional. Para uma teoria com dois prêmios Nobel nos últimos 20 anos e aplicações consolidadas em finanças, marketing e políticas públicas, não era sem tempo. Mas afinal, para que serve a Economia Comportamental?

Esse ramo das ciências cognitivas tem foco na previsão de comportamentos e intervenção em processos decisórios, sejam eles decisões de consumo, gasto ou, quem sabe, a produção de atos regulatórios e políticas públicas. As aplicações da nova ciência ainda estão sendo exploradas, mas tudo indica possíveis usos no campo de relações públicas, governamentais e institucionais.

A principal hipótese da teoria é que as pessoas normalmente decidem “mal”: absorvem pouca informação, têm memória curta, dificuldade em visualizar o futuro, se adaptam facilmente ao status quo, lidam mal com pressão e, principalmente, não gostam de sentir que saem perdendo. A Economia Comportamental une elementos de psicologia e comunicação em uma abordagem pragmática de modo a viabilizar intervenções cirúrgicas no processo decisório.

Neste texto abordaremos alguns métodos e conceitos de Economia Comportamental úteis às atividades de comunicação e relações institucionais. Por fim, usaremos alguns deles para abordar problemas contemporâneos, como a “economia da atenção” e o surto de Sars-Covid.

Homo Economicus

Pesquisas empíricas realizadas desde meados do século XX deram adeus à hipótese básica da economia clássica segundo a qual o homem é um ser racional e toma decisões com base em informações perfeitas (o “homo economicus”). Mais recentemente a Economia Comportamental sistematizou o problema, constatando que as pessoas decidem de forma irracional, mas de forma consistente e previsivelmente irracional. A esses desvios a teoria chamou “vieses”. Algumas listas chegam a enumerar 200 tipos de vieses, parte deles mais óbvios, como as limitações da memória, aversão a perdas e o “efeito bizarro” (damos mais atenção a fatos extraordinários do que a acontecimentos comuns), outros menos evidentes, como as maquinações matemáticas da “contabilidade mental”, consequências inesperadas do “antropomorfismo” (imaginar traços humanos em seres inanimados) e até um curioso efeito “mulheres são incríveis” (atribuímos mais características positivas a mulheres do que a homens. É comprovado!).

Não se trata de uma revolução copernicana, de um novo paradigma científico ou uma teoria unificadora do comportamento humano. Há na Economia Comportamental muitos conceitos intuitivos e até convencionais. Um dos criadores da teoria, Daniel Kahneman, comenta em tom de brincadeira que sua maior descoberta é algo que sua avó já sabia! Mas uma coisa é saber que objetos caem, outra, entender a Lei da Gravidade. Demonstração empírica e sistematização metodológica ajudam a desenvolver conceitos e a aplicá-los à vida real.

Um projeto do Banco Mundial modulando a comunicação entre autoridade fiscal e contribuinte elevou em até 50% o cumprimento de obrigações tributárias na Polônia. Projetos privados implementando pequenas alterações em contratos de adesão multiplicaram em quatro vezes as contribuições a fundos de previdência. A simples mudança do “default” é capaz de elevar o número de doadores de órgãos de 10% para 90% da população. Uma campanha da Google elaborada pelo escritório Irrational Labs aumentou em 15% a retenção de anunciantes. Medicina, segurança do trabalho, vendas: há resultados consistentes de aplicação da Economia Comportamental das políticas públicas ao marketing.

BASIC

Algumas consultorias tradicionais como Deloitte e McKinsey e entidades internacionais como Banco Mundial e OCDE possuem unidades de “behavioral insights” há alguns anos, seguindo uma tendência que ganhou momentum recentemente. Pioneira na área, a unidade comportamental do governo britânico (Behavioural Insights Team, criado em 2010 no gabinete de David Cameron) tornou-se em 2014 uma sociedade privada sem fins lucrativos, totalizando 750 projetos em 31 países. O monitor da OCDE contabiliza 200 projetos em curso no mundo.

Em 2019 a OCDE lançou a plataforma BASIC, um manual de Economia Comportamental aplicada à formulação de políticas públicas, primeiro sistema do gênero de amplo espectro e acesso aberto. Uma das ferramentas mais úteis do sistema BASIC é a sistematização dos “mapas decisórios”, pelos quais é possível visualizar com precisão os dilemas confrontados pelos agentes em escolhas efetivas, com condicionantes adversos, opções restritas e informações limitadas, levando a resultados “subótimos”.

A plataforma BASIC sistematiza esses elementos no modelo ABCD, que detalha quatro dimensões do processo decisório: Atenção, Crenças, Escolhas e Determinação. Na vida real os sujeitos chegam a decisões insatisfatórias caso não dediquem tempo e concentração suficientes, tenham um pano de fundo valorativo inadequado, sofram pressões externas, incerteza e tenham falta (ou excesso) de motivação.

Matriz BASIC/ABCD

Fonte: OECD (2019), Tools and Ethics for Applied Behavioural Insights: The BASIC Toolkit, OECD.

Causa e efeito

A Economia Comportamental foi criada por um professor de estatística (Daniel Kahneman), por economistas (Richard Thaler) e teve participação de acadêmicos das exatas (Dilip Soman, engenheiro) em seu desenvolvimento, resultando um certo nível de formalização matemática. As decisões são vistas como relações de causa e efeito que se conectam por meio de mediadores, ou seja, por variáveis independentes que determinam resultados. Isso permite visualizar de forma mais clara os fatores que determinam uma decisão permitindo interferir de forma mais efetiva nesse processo.

Diagrama Mediadores/Moderadores

Fonte: Autor

Uma decisão “X” será uma função de diversos fatores: a, b, c, d, que podem ser descritos em uma equação. Temos: X= A + f(b) + f(c) + f(d)… de modo que cada elemento pode ser de alguma forma quantificado. Identificado um elemento que afeta uma relação causa-efeito (mediador), ele pode ser submetido a uma intervenção externa (moderador) de forma a reduzir ou aumentar a correlação de causalidade.

A atividade de relações institucionais consiste, em essência, na mobilização de “moderadores” a fim de incentivar ou desincentivar uma determinada relação de causa e efeito subjacente a uma decisão. A Economia Comportamental demonstra que isso depende nem tanto da mobilização de informações, mas da mobilização de contextos. A lógica de um argumento é apenas um dos elementos envolvidos no processo decisório.

Arquitetura de escolhas

Lançado em 2008, o livro Nudge, do economista Richard Thaler e do jurista Cass Sunstein vendeu 1,5 milhão de cópias e foi parar na cabeceira de chefes de Estado e CEOs ao trazer a Economia Comportamental para a vida prática. A principal proposta do livro é a formulação de “arquiteturas de escolhas” que direcionam, ainda que não determinem, processos decisórios. Vemos isso todos os dias no supermercado: produtos têm determinadas qualidades e preços, mas muitas vezes pegamos simplesmente o que está mais à mão.

A ideia é facilitar o caminho que leva a determinada escolha. Isso se faz talhando incentivos “salientes”, ou seja, claros e consistentes; estabelecendo opções-padrão (defaults); exige prever a ocorrência recorrente de erros decisórios e fornecer retorno (feedback) a agentes, selecionar e organizar informações em escolhas complexas e, como já foi ressaltado, produzir “mapas de escolhas” de forma a visualizar os dilemas enfrentados pelos sujeitos.

Vieses

Há algumas tentativas de classificar e sistematizar os chamados “vieses” de modo a facilitar sua identificação e manipulação. Um dos métodos mais conhecidos é o modelo “SEEDS”, elaborado por um grupo de pesquisadores em ciências cognitivas, publicado em 2015 no Neuroleadership Journal. O modelo propõe uma abordagem baseada no reconhecimento, classificação e mitigação desses vieses, propondo uma sistematização abrangente de 150 tipos de vieses em cinco subgrupos (Similarity, Expedience, Experience, Distance, Safety):

Modelo SEEDS

Tipos de vieses Características Exemplos de vieses
Semelhança Pessoas tendem a proteger e promover seus iguais. Há preconceito e resistência ao diferente. – Dentro do grupo

– Fora do grupo

Expediência Há atalhos mentais que levam a decisões rápidas e intuitivas. Podem, porém, levar a julgamentos incorretos ou imprecisos. – Crença

– Confirmação

– Disponibilidade

– Ancoragem

Experiência Tendemos a extrapolar nossas experiências para outras pessoas, presumindo que elas têm nossa percepção ou supondo que o mundo é realmente como o percebemos. – Ponto cego

– Falso consenso

– Erro de atributo

– Antecipação

Distância Atribuímos mais valor àquilo que é mais próximo de nós, temporal ou espacialmente. Há dificuldade em visualizar fatos e eventos distantes. – Efeito apropriação

– Previsão afetiva

– Desconto temporal

Segurança O mal pesa mais do que o bem. Tendemos a dar mais importância a fatos negativos do que positivos. É considerado uma adaptação evolutiva de caráter defensivo. – Aversão a perdas

– Enquadramento

– Custos enterrados

Fonte: Breaking bias updated: the SEEDS model. Neuroleadership Journal. Nov./2015.

Economia da Atenção

O principal desafio das relações institucionais e governamentais na atualidade é a “economia da atenção”, na qual as disponibilidades de tempo e foco dos sujeitos tornaram-se uma mercadoria escassa. Isso exige dos comunicadores novas estratégias não só para atrair atenção, mas aumentar a produtividade das interações disponíveis.

O primeiro tema de estudo de um dos fundadores da Economia Comportamental, Daniel Kahneman, nos anos 1970, foi exatamente a “atenção”. Seu trabalho demonstrou que o processamento focado de informações é monopolizado em certas regiões do cérebro, sendo uma atividade que exige esforço físico (literalmente). Como se sabe, o cérebro é um órgão intensivo em gasto energético (representa 2% da massa corporal, mas consome 20% da energia); evolutivamente, desenvolveu mecanismos poupadores de gasto, como os já mencionados “vieses”. Da mesma forma como ocorre com o raciocínio e a memória, o foco e a atenção são ofertados com parcimônia por nosso metabolismo cerebral.

O Brasil costuma frequentar o topo dos rankings de dispêndio de tempo no mundo virtual, com médias de presença nas redes chegando a impressionantes 9h de conexão por dia, quase 4h delas em redes sociais. O público-alvo dos profissionais de comunicação institucional, as autoridades, empresários, executivos e políticos, estão divididos entre o consumo e produção de quantidades cavalares de informação via meios multiplataforma. Suas disponibilidades de tempo e atenção tornaram-se particularmente escassas.

As ciências cognitivas identificam um duplo sistema de alocação de atenção: por um lado, damos atenção ao inusual, ao inesperado, por outro lado, há o interesse pelo familiar, pelo afetivo. A arte é dosar os dois.

Atrair a atenção, contudo, é parte da missão; o problema também é o que fazer quando a conseguimos: a informação deve ser trabalhada com precisão. Questões como “enquadramento”, elementos de contabilidade mental e outros fatores cognitivos devem ser levados em conta. Contra um argumento lógico pesam 200 vieses cognitivos dizendo o contrário.

Covid

O surto de Sars-Covid-19, além de dificultar encontros face-a-face, produz seus próprios desvios comportamentais. Um estudo sobre o tema foi publicado na revista Nature em abril deste ano, revelando alguns fatores relevantes para os comunicadores institucionais.

Um desses fatores é a importância de elementos como altruísmo e solidariedade na gestão da crise sanitária. Esses são sentimentos ignorados na teoria econômica clássica, a qual presume indivíduos egoístas, sensíveis apenas a penalidades e retribuições. Sem os sentimentos de empatia e simpatia seria impossível gerir a crise.

O estudo destaca, ainda, o papel das lideranças, que podem induzir confiança e colaboração. A mobilização identitária é vista como uma via mais eficaz para promover atos de cooperação social do que ações baseadas em normas e sanções, que sinalizam à população desconfiança e hostilidade. Na ausência de tal liderança a tendência é a disseminação do individualismo, de ações do tipo “cada um por si”.

Há outros sentimentos nocivos. Um deles é o chamado “jogo de soma zero”, viés segundo o qual as pessoas tendem a pensar que, se estão perdendo, alguém está ganhando (e vice versa). Isso incentiva parcela da opinião pública a buscar culpados e atribuir responsabilidades, muitas vezes de forma infundada.

Temos que destacar a notória propensão à crença em fakenews, algo perigoso em políticas públicas e privadas em geral. Uma das descobertas de Daniel Kahneman é que a intuição, nossa percepção mais imediata, à qual chama em sua teoria “Sistema 1”, processa as informações presumindo que elas são verdadeiras, para só depois atribuir verdade/mentira com base no esforço reflexivo realizado pelo “Sistema 2” (racional, mais lento e custoso). No nível do indivíduo, em decorrência de diversos fatores (estresse, pressão social) a efetivação desse esforço é difícil ou desinteressante, criando terreno fértil para charlatanismo e teorias da conspiração.

Cabe ainda lembrar a oscilação entre otimismo e pessimismo. Temos dificuldade em avaliar possibilidades intermediárias, tendendo a ser “oito ou oitenta”: ou o risco é de zero ou o desastre é certo. Há por um lado a tendência a pensar “não vai acontecer comigo” e por outro uma propensão ao fatalismo ou pânico.

Segundo a metodologia SEEDS para mitigar um viés é preciso antes identificá-lo e aceitá-lo. Devemos ficar atentos aos comportamentos que emergem da crise.

Conclusão

A abundância de evidências empíricas e metodologias acessíveis torna a Economia Comportamental um celeiro de ideias e práticas em comunicação corporativa. Sua passagem exitosa pelo campo das finanças, marketing e políticas públicas revela uma técnica que sai do experimental para se tornar uma técnica consolidada.

A “arquitetura de escolhas” tem muito a contribuir para diversos ramos da comunicação institucional. Suas soluções tendem a ser eficazes e eficientes, produzindo grandes mudanças com pequenas intervenções. O lado ruim é que não contamos com uma fórmula simples, uma “Lei geral do comportamento”. O profissional de Economia Comportamental precisa aplicar conhecimentos caso-a-caso, testando intervenções pontuais na base da tentativa e erro, baseando-se em conhecimento teórico e prático acumulado paulatinamente.

Neste texto vimos ainda que princípios fornecidos pela Economia Comportamental podem esclarecer alguns problemas atuais da comunicação institucional, como o excesso de informações, as fakenews e os impactos sociais do surto de Covid-19. Essas questões são centrais à administração pública e privada, mas carecem de abordagens efetivas. Talvez seja a hora de uma outra fórmula: novos problemas exigem novas soluções.


O Sem Precedentes desta semana analisa o voto antecipado do ministro Marco Aurélio Mello, do STF, que reconhece a possibilidade de o presidente Jair Bolsonaro prestar depoimento por escrito à Polícia Federal no âmbito do inquérito que apura possível interferência do presidente na PF. Ouça: