Agronegócio

Abstrativização do dano na responsabilidade civil?

Um estudo de caso sobre a judicialização do excesso de carga em rodovias

Imagem mostra caminhões trafegando em estrada
Crédito: pixabay

Este artigo tem por objeto ações civis públicas que, há algum tempo, o Ministério Público Federal (MPF) tem ajuizado para veicular a pretensão de responsabilizar empresas transportadoras e embarcadoras de carga por danos materiais e morais que, alegadamente, decorreriam do excesso de peso transportado nas rodovias brasileiras.

Mais do que isso, o MPF requer a aplicação de astreintes (multas processuais) como forma de garantir, para além do desfecho da relação processual, o dever de não transportar cargas em peso maior do que o máximo normativamente permitido. Pede-se, então, que uma decisão judicial definitiva estabeleça uma multa, uma imposição pecuniária a ser cobrada, sem limite temporal, sempre que ocorrer algum descumprimento dos limites máximos de carga rodoviária. Quando acolhida, essa imposição de multa por decisão judicial tem oscilado pelos mais diversos valores: de mil reais por evento infracional ao equivalente do valor total da carga, passando por cinco mil reais, vinte mil reais ou mesmo cinquenta mil reais a cada excesso verificado. Num determinado caso, o Juízo de 1º Grau havia fixado a multa em cinquenta mil reais por evento, ao passo que o Tribunal a reduziu para mil reais. Não há, portanto, o mínimo grau de padronização, nem mesmo explicitação dos critérios que levam à fixação dos valores.

Convém já anotar que, independentemente do esforço postulatório do MPF, o trânsito de veículo com excesso de carga é tipificado no inc. V do art. 231 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) como infração administrativa, sujeita a um rol de sanções também estipulado em lei. Gradação sancionatória, uniformidade de aplicação para situações equivalentes, tudo decorre do texto legal, como se exige das normas infracionais. Não apenas o excesso de peso bruto total é recriminado, como também a demasia aferida no peso por eixo. Ambas as infrações administrativas são reputadas de gravidade média.

Por um bom tempo, essas ações civis públicas eram (aliás, continuam sendo), em sua maioria, rejeitadas nos Tribunais Regionais Federais. Mais recentemente, porém, a Segunda Turma do STJ decidiu acolher a pretensão do Parquet federal, julgando procedente o Recurso Especial 1.574.350/SC. Adotou, para tanto, os seguintes argumentos: a) o trânsito seguro é um direito de todos, nos termos do CTB; b) são altos os índices brasileiros de letalidade no trânsito; c) a atuação judicial seria uma forma de concretizar direitos, pois “legislação temos de sobra, sem falar de políticas governamentais e princípios jurídicos apoiados na razão, na experiência e em expectativas comuns dos povos”; d) uma das valias da intervenção judicial reside na substituição de medidas administrativas incompletas ou deficientes, “de maneira a inteirá-la ou aperfeiçoá-la”; e); as esferas de responsabilização administrativa, civil e penal são independentes; f) a sobrecarga causa danos materiais e extrapatrimoniais in re ipsa (leia-se: presumidos), confirmados pela experiência comum, de modo a dispensar-se a comprovação pericial de algum dano específico à infraestrutura rodoviária.

O objetivo do presente artigo, então, é demonstrar que, sem desconsiderar a inegável independência entre os diferentes planos de responsabilização jurídica, e sem descurar da funcionalidade das astreintes, não se sustenta o entendimento de que a mera ocorrência de uma determinada conduta prevista em lei pode ensejar, em bases genéricas e abstratas, não apenas a sanção positivada, como também uma determinada reprimenda fixada judicialmente – e, portanto, sem correlação com a ocorrência de um determinado dano em concreto. Na medida em que abstrativiza, por completo, a figura jurídica do dano, o entendimento em causa não apenas revoluciona a temática da responsabilidade civil, como também suscita consequências severas no campo, já constitucional, da legalidade, do Estado de Direito e da separação de poderes.

O Código de Trânsito Brasileiro e o regime legal do excesso de cargas nas rodovias

O Código de Trânsito Brasileiro é a norma legal que se ocupa, no Direito brasileiro, da ordenação do trânsito, assim entendido como “a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga” (§1º do art. 1º). Sob esse encarecido propósito é que o CTB: a) institui limitações administrativas ao trânsito de pessoas e cargas; b) prevê as sanções correlatas, em caso de descumprimento dessas limitações. Tudo em linha, portanto, com o princípio constitucional da legalidade, inscrito nos incs. II e XXXIX do art. 5º e no caput do art. 37 da Carta Magna.

No que atine, especificamente, ao trânsito de veículo com excesso de peso, trata-se, como dito, de conduta tipificada no inc. V do art. 231 como infração administrativa de gravidade média (numa escala que se inicia com o tipo leve e alcança a espécie gravíssima). As consequências sancionatórias, por óbvio, são predeterminadas e consistem no seguinte: multa pecuniária, numa escala diretamente proporcional à dimensão do excesso, retenção do veículo e transbordo da carga excedente.

Eis, então, o quadro: no Direito brasileiro, o simples fato de se transitar com uma carga em sobrepeso é caracterizado como ato infracional de lesividade média (e não grave, nem gravíssima) e, nessa medida, já autoriza o Estado a aplicar as sanções previstas em lei. Sem que, para tanto, se exija a comprovação de algum dano específico ou in concreto. Isso porque o Estado já incorporou em lei, como pressupõe o Estado Democrático de Direito, o juízo de reprovação sobre a conduta – assim esgotando, em linha de princípio, as possibilidades interventivas sobre o trânsito rodoviário com sobrecarga.

Deveras, fora desse esquadro legal-administrativo, a atuação estatal já desborda para os planos civil e criminal. Quanto a eventuais desdobramentos criminais do excesso de peso transportado, eles dependem da comprovação de materialidade e autoria de um determinado tipo criminal. Para a matéria em comento, porém, importam mais as repercussões da sobrecarga na dimensão da responsabilidade civil, pois, como visto, o STJ se fiou na sua independência quanto à esfera administrativa para validar a imposição judicial de multas incidentes por eventos infracionais.

Os diferentes pressupostos do secionamento  administrativo

Ao tipificar, em lei, uma conduta como infração administrativa, o Estado exerce, pelos canais legítimos de deliberação democrática, o juízo de reprovabilidade do fato, assim calibrando a reprimenda que entende apta a: a) punir o infrator, b) recompor a ordem administrativa; c) dissuadir o infrator e a sociedade quanto à reiteração das condutas. Trata-se das funções clássicas das normas infracionais, entre elas a decantada função de prevenção geral e especial.

Tudo constando da lei (a hipótese ilícita e as sanções correlatas), basta a prática do ato infracional para que se deflagrem os efeitos sancionatórios. Reprovabilidade, lesividade e resposta estatal passam a marcar presença por modo normativo, por desígnio da vontade legislativa do Estado mesmo. É assim que sucede, portanto, com toda e qualquer hipótese de sancionamento administrativo, conforme sintetiza Celso Antônio Bandeira de Mello, em lição dogmaticamente sólida e historicamente sedimentada:

“Esse princípio basilar no Estado de Direito [o da legalidade], como é sabido e ressabido, significa subordinação da Administração à lei; e nisto cumpre importantíssima função de garantia dos administrados contra eventual uso desatado do Poder pelos que comandam o aparelho estatal. Entre nós a previsão de sua positividade está incorporada de modo pleno, por força dos arts. 5º, II, 37, caput, e 84, IV, da Constituição Federal. É fácil perceber-se sua enorme relevância ante o tema das infrações e sanções administrativas, por estarem em causa situações em que se encontra desencadeada uma frontal contraposição entre Administração e administrado, na qual a Administração comparecerá com todo seu poderio, como eventual vergastadora da conduta deste último. Bem por isto, tanto infrações administrativas como suas correspondentes sanções têm que ser instituídas em lei” (…).

No caso do tráfego com excesso de peso, a conduta é valorada como de potencial lesivo médio, ensejando multas proporcionais ao grau de sobrepeso, além da retenção do veículo e do transbordo do excesso. Praticado o excesso de peso nas rodovias, tais sanções devem ser aplicadas, independentemente da ocorrência concreta de algum dano à infraestrutura viária ou à integridade física ou patrimônio de terceiros. O potencial lesivo da conduta é internalizado na disposição normativa. Uma disposição normativa voltada, ela mesma, à tutela dos bens jurídicos em causa: a infraestrutura rodoviária do País e a segurança do trânsito.

Não se ignora, por óbvio, que os mesmos fatos tipificados como infrações administrativas possam resvalar para algum tipo de ilícito civil. Nesse caso, porém, a aferição da responsabilidade já escapa ao modelo de presunção normativa próprio da regulação administrativa. A responsabilização civil extracontratual depende, no mínimo, e como se sabe, da evidenciação concreta e específica de um dano e do nexo causal entre ele e a conduta em causa, nos moldes dos arts. 186, 403 e 927 do Código Civil. Essa tríade constituída por conduta, nexo de causalidade e dano compõe, assim, a quintessência da responsabilidade civil. Sobre o dano, mais especificamente, Anderson Schreiber registra:

“O dano é elemento indispensável do ato ilícito. Tradicionalmente, conceitua-se o dano como a lesão a um interesse juridicamente protegido, a abranger tanto o dano patrimonial quanto o dano moral. Nem todo dano, contudo, é ressarcível. A doutrina afirma que somente se repara o dano que seja certo e atual. A exigência de que o dano seja certo impede a reparação de danos meramente hipotéticos. Indenizam-se os lucros cessantes e até a perda da chance, mas o dano eventual, meramente hipotético, este permanece à margem do dever de reparação. Por sua vez, a atualidade do dano exige que já tenha se verificado ao tempo da responsabilização, impedindo, em regra, a indenização de danos futuros, o que não se confunde com danos ainda não liquidados (isto é, tornados líquidos, quantificados)”.

Ainda no que concerne ao dano, Sílvio de Salvo Venosa é categórico ao apartar o seu conceito daquele atrelado à antijuridicidade: “Na noção de dano está sempre presente a noção de prejuízo. Nem sempre a transgressão de uma norma ocasiona dano”. Já em sentido inverso, não se ignora que o dano possa surgir independentemente da transgressão explícita a uma norma jurídica. Pode se configurar, portanto, mesmo não precedido de antijuridicidade. Entretanto, seja como for, não há hipótese de responsabilização civil desacompanhada de um dano. Veja-se:

“(…)como regra geral, devemos ter presente que a inexistência de dano é óbice à pretensão de uma reparação, aliás sem objeto. Ainda mesmo que haja violação de um dever jurídico e que tenha existido culpa ou até mesmo dolo por parte do infrator, nenhuma indenização será devida, uma vez que não se tenha verificado prejuízo”.

E é nesse contexto, aliás, que há de ser aplicada a multa judicial coercitiva, dado o seu caráter meramente instrumental, voltado para estimular o cumprimento de uma obrigação que atenda aos seus pressupostos normativos. Multas judiciais coercitivas se justificam pela obrigação subjacente à decisão judicial que as impõe, e não pelo simples fato de ser veiculada por ela, decisão judicial. Astreintes não podem estar soltas no mundo, como um fim em si mesmo e desvinculadas do cumprimento de uma obrigação legítima. A multa tem natureza processual, finalidade coercitiva e caráter acessório. Sua ratio essendi está no constrangimento, no convencimento do devedor ao cumprimento da prestação.

Ocorre que a Segunda Turma do STJ não fez essa distinção básica e, para enveredar nos caminhos da responsabilização civil e da correlata imposição de astreintes, simplesmente afirmou que o Poder Judiciário deve proteger os mesmos bens jurídicos tutelados pelo legislador do trânsito (infraestrutura rodoviária, segurança física e patrimonial das pessoas, meio ambiente e ordem econômica). Dando-se que o simples fato da violação à norma administrativa proibitiva já legitimaria a imposição judicial de multas coercitiva, até como forma de “resguardar o seu [dela, proibição legal] caráter imperativo”.

Essa, portanto, a perplexidade que ressai da posição do STJ: a pretexto de laborar no espaço constitucional de independência entre as esferas administrativa e civil, fundamentou-se a imposição de multas inibitórias em caso de excesso de peso: (i) na defesa genérica e abstrata dos bens jurídicos que já são tutelados pela disciplina legal do tema; (ii) num heterodoxo e incogitável reforço judicial de efetividade ou imperatividade da norma.

Nada, absolutamente nada, foi mencionado quanto à existência de um dano concreto, eventualmente causado a esse ou aquele sujeito de Direito, pelas infrações administrativas versadas no processo. Tudo ficou no campo da correlação genérica, abstrata e presumida entre as infrações administrativas aludidas e a tutela dos bens jurídicos que subjazem à disciplina do trânsito nacional. Embora nos pareça autoevidente que esses planos da abstração, da generalidade e da aferição de efetividade da norma sejam próprios do legislador e, subsequentemente, da regulação administrativa. Nunca, porém, do Poder Judiciário, mormente diante de uma lide concreta em que se discute o tema da responsabilidade civil.

Essa, portanto, a questão que se apresenta neste artigo: a mera afirmação de antijuridicidade, consubstanciada na violação de uma norma infracional de caráter administrativo, pode servir como elemento de presunção (absoluta, além do mais) de um dano? A responsabilidade civil pode se fundar na associação abstrata a bens jurídicos coletivos? A resposta, parece-nos, é manifestamente negativa.

Por esse modelo, saem de cena a intersubjetividade, a noção de prejudicialidade e a ideia, mais moderna, de que o centro gravitacional da responsabilidade civil está na reparação do dano injusto e no reequilíbrio econômico do dano. Por outro lado, entram, no lugar, uma noção meramente punitiva ou punitivista, calcada na antijuridicidade do ato, que, sem a mínima atenção àquilo que é central em matéria de responsabilidade civil (a tutela da vítima do dano injusto), já se traduz num canhestro instrumento de repressão a condutas antijurídicas. E nas mesmíssimas bases, insista-se, da ordenação e do sancionamento administrativo.

A invocação meramente nominal, flagrantemente artificial e escancaradamente retórica à ideia de presunção ou de dano in re ipsa não é minimamente suficiente para presentificar, no caso, o elemento do dano e, com isso, legitimar o resultado interpretativo constante do precedente sob análise. E assim não é porque, diferentemente das hipóteses conhecidas de dano in re ipsa, não se está, aqui, a laborar no campo nebuloso da intimidade e da subjetividade humana, no qual incide o dano de ordem moral. A esse propósito, Afrânio Carlos Moreira Thomaz chega a ponto de afirmar que o dano moral, “de um modo geral, não demanda produção de prova, já que a dor, o sofrimento e a humilhação constituem sentimentos extremamente subjetivos, dificílimos de serem mensurados”. Ao passo que Antônio Jeová Santos, reforçando a dimensão moral em que inflete o dano in re ipsa, sustenta que: “A afirmação de que o dano ocorre in re ipsa repousa na consideração de que a concretização do prejuízo anímico suficiente para responsabilizar o praticante do ato ofensivo ocorre por força do simples fato da violação (…)”.

Algo bem distinto, portanto, é a hipótese em que a conduta, em si mesma, de trafegar com excesso de carga é tomada como fundamento para a responsabilização civil, no pressuposto de que tenha causado algum dano à infraestrutura viária e ao bem jurídico da segurança viária. A ambiência é completamente distinta daquela em que floresceu o instituto do dano in re ipsa. Tanto é assim que, no plano da factualidade das coisas, nem mesmo tem sido possível a liquidação dos supostos danos às rodovias. Já se reconheceu que o estado geral das rodovias brasileiras seguramente não conduz à delimitação do dano causado por uma determinada empresa que trafega numa fração bastante reduzida da malha rodoviária nacional. Um evento causado por uma multiplicidade de fatores (e até mesmo como um processo natural) não pode ser levado em consideração, assim por modo genérico e aleatório, para embasar uma condenação indenizatória. Dando-se, então, que, na fase de liquidação de sentença, a deformação da figura da responsabilidade civil também tem projetado seus efeitos, levando à falta de efetividade das decisões judiciais desse tipo. O que não deixa de ser irônico, pois um de seus supostos fundamentos consistiria na necessidade de se reforçar, justamente, a efetividade da norma de trânsito.

Reconheceu-se, além do mais, que não há método, nem técnica, qualitativa ou quantitativa, de identificação dos eventuais danos causados pelas práticas infracionais de uma determinada empresa em relação ao processo de deterioração das rodovias. Desgastes naturais, falhas de projeto, aplicação de materiais de baixa qualidade, falta de manutenção adequada, movimentação de veículos sem cargas (a imensa maioria em trânsito no País), tudo isso (e mais outros tantos fatores) concorre para a deterioração das rodovias brasileiras. Daí por que o tráfego com excesso de peso não pode ser considerado como causa adequada (logo, suficiente e indispensável) dos eventuais déficits de qualidade apresentados pelas rodovias federais. Portanto, ao acolher esse tipo de pretensão, o STJ termina por impor condenação, mais do que ilíquida, indeterminável, pois a decisão não aporta nem mesmo os conteúdos ou as balizas mínimas para individualização dos supostos danos a serem reparados.

Vê-se, portanto, que a criação de uma hipótese não apenas presumida, mas abstrata, de dano gera consequências graves em sua própria delimitação. Acaba por resultar na indeterminabilidade de sua extensão, o que tem levado à inocuidade das condenações indenizatórias a esse título. Essa, inclusive, é a razão pela qual o MPF passou a incluir, em suas ações, o pedido de cominação ad aeternum de multas processuais coercitivas (não vinculadas, portanto, à existência e à fluência da relação processual). Com elas, o MPF se dá por satisfeito, tirando, da ação, o descabido provimento punitivo que, em verdade, procura esconder sob o rótulo artificial da responsabilidade civil.

É de se falar, ainda, nos reflexos que a engenhosidade da tese impõe ao elemento do nexo de causalidade. Convém lembrar, a esse propósito, que são dois os tipos de infração por sobrecarga: o excesso de peso pela carga total bruta e o excesso de peso por eixo. E, na imensa maioria dos casos, os embarques acontecem com todas as cautelas, respeitando-se ambas as determinações normativas. Todavia, em decorrência da movimentação do veículo ao longo do trajeto, a carga acaba se deslocando, o que acarreta um peso excedente por eixo, e não da carga como um todo. Donde a indagação pertinente: não teria sido, em boa parte dos casos, o mau estado das rodovias a causar o desarranjo das cargas e a ocorrência do excesso de peso por eixo? Com a presunção e abstrativização do dano, essa é uma questão que fica sem lugar, tornando-se insindicável, pois a responsabilização civil torna-se inteiramente dependente da mera constatação de que o tráfego com excesso de carga ocorreu, tal como documentado em auto de infração administrativa.

Por fim, no tocante, especificamente, à condenação indenizatória por danos morais coletivos, convém referir-se a um fundamento adicional para afastá-la em hipóteses que tais. Ao contrário do que exige a jurisprudência do STJ sobre o tema dos danos morais coletivos, o tráfego com excesso de peso não é normativamente considerado como ato ilícito de especial significância ou que desborda os limites da tolerabilidade social. A explicação é singela, mas suficiente: a própria valoração do trânsito com excesso de peso como infração de gravidade média (e não grave, nem gravíssima) já evidencia não se tratar de conduta apta a ensejar lesão intolerável aos bens jurídicos em jogo, nem sensível intranquilidade social, nem mesmo alterações relevantes na ordem extrapatrimonial coletiva. E, num modelo de Estado de Direito, em que vigoram o princípio da legalidade e a separação funcional de Poderes, não deveria ser reconhecida ao Poder Judiciário a aptidão para se contrapor, direta e manifestamente, à pauta valorativa instituída em lei. Mormente quando não o faz por razões de inconstitucionalidade e, principalmente, quando se trata de um arranjo normativo de caráter sancionatório.

Daqui já se percebe que o precedente em comento, ao promover a abstrativização do dano, desnatura a responsabilidade civil. Cruza a última de suas linhas elementares, atingindo, em cheio, o elemento do dano, historicamente responsável pela ancoragem conceitual da responsabilidade civil. O precedente ameaça, com isso, o papel que a aferição do dano sempre exerceu como uma espécie de chave ou válvula normativa, a justificar, determinar e calibrar o fluxo e o reequilíbrio patrimonial que subjazem aos provimentos ressarcitórios levados a efeito pelo Poder Judiciário. Cristiano Chaves, Nelson Rosenvald e Felipe Peixoto Braga Neto abordam o ponto: “Com a progressiva corrosão dos tradicionais filtros ao acesso à reparação – a culpa e o nexo causal -, restou ao dano o imprescindível papel de elemento selecionador das pretensões ressarcitórias que serão acolhidas ou não pelo Poder Judiciário”.

E não é só. O precedente sob exame faz, da responsabilidade civil, um simples instrumento acessório da responsabilidade administrativa, servindo-lhe como um incogitável mecanismo de reforço de efetividade. Chega a ser curioso, nesse sentido, que um dos fundamentos da decisão seja a independência entre as diferentes esferas de responsabilização. Ora, ao se transpor, para a responsabilidade civil, a tutela abstrata de bens jurídicos, como a segurança viária, e ao se limitar o exame do pressuposto de responsabilização para a mera ocorrência da conduta, o que se faz é justamente o contrário. Borram-se as fronteiras entre a responsabilidade civil e a responsabilidade administrativa, prevalecendo o modus operandi desta última. Circunstância, essa, que além de implodir as bases da responsabilidade civil, ainda bombardeia categorias elementares do direito constitucional.

O Poder Judiciário como instância revisora da adequação e da efetividade das mais diversas regulamentações administrativas?

Indo diretamente ao ponto, os reflexos (in)constitucionais do entendimento subscrito pela Segunda Turma do STJ tornam-se ainda mais evidentes quando se testa a possibilidade de se universalizar a tese nele contida.

Afirma-se, como visto, que o Poder Judiciário poderia impor multas coercitivas específicas para tutelar (diretamente, sem a mediação da lei) os bens jurídicos associados à disciplina do excesso de peso nas rodovias. Isso sem que dele, Judiciário, se exija a demonstração da ocorrência concreta e específica de algum dano à infraestrutura rodoviária, à integridade física e patrimonial de terceiros, etc. Tudo, portanto, a se dar em bases genéricas e abstratas.

Pois bem. O resultado dessa tese estaria na franquia aberta à revisão judicial de todo e qualquer modelo legislativo-regulatório. Afinal, o que impediria, de agora em diante, que Juízes impusessem multas coercitivas incidentes sobre a conduta proibida de conduzir motocicletas sem o acionamento dos faróis (inc. IV do art. 244)? E multas inibitórias a serem aplicadas para os veículos que excederem a capacidade máxima de tração (inc. X do art. 231)? O que dizer do trânsito com o veículo em desacordo com as especificações, e com falta de inscrição e simbologia necessárias à sua identificação, quando exigidas pela legislação (art. 237)?

Todas essas condutas traduzem infrações de natureza grave ou gravíssima e, portanto, reputadas pelo CTB como de maior potencial lesivo do que o tráfego com excesso de peso. Como o Poder Judiciário irá se portar diante delas? Irá associá-las abstratamente aos bens jurídicos tutelados pelo CTB e, nessa medida, cominará multas coercitivas em reforço à previsão legal? Ou exercerá uma espécie de revisão judicial do modelo legislativo de trânsito, apenas reforçando as reprimendas das condutas que ele, Poder Judiciário, entender mais lesivas aos bens jurídicos associados ao trânsito nacional? Todas essas são indagações que ficam sem resposta sob o pálio do Estado Democrático de Direito, pois ao Poder Judiciário não é dado laborar nesse campo.

Os problemas decorrentes da tese firmada no acórdão recorrido não se adstringem, todavia, à interação do Poder Judiciário com o sistema normativo de trânsito. Todo e qualquer segmento de atividade humana que esteja sujeito a limitações administrativas estaria à mercê desse modo de pensar, que envolve a tutela judicial direta de bens jurídicos abstratos (e não de lesões concretas), notadamente sob o argumento do reforço de efetividade ou imperatividade da norma. Regras de direito urbanístico, limitações ao exercício profissional, regulação do desempenho de certas atividades econômicas (farmacêuticas, por exemplo), todo o sistema normativo de limitação, proibição e repressão de condutas nessas matérias estaria passível de revisão abstrata pelo Poder Judiciário, assim justificada pela independência da esfera civil e da instância judiciária, independentemente da ocorrência de uma lesão concreta e específica.

Daqui já se desata, portanto, o juízo conclusivo de que esse modelo de intervenção judiciária é manifestamente vedado, na medida em que atentatório ao princípio da legalidade (art. 5º, incs. II e XXXIX, e caput do art. 37), ao sistema de separação de Poderes (art. 2º), à competência do legislador para dispor sobre trânsito e transporte (art. 22, inc. XI), à disciplina legal da responsabilidade civil (arts. 186, 403 e 927 do CC) e à própria disposição proibitiva do trânsito com excesso de peso (art. 231, inc. V, do CTB).

Conclusão

Centralmente, o que se conclui é que a responsabilização civil levada a efeito pela simples constatação da ocorrência de um ilícito administrativo (sem aferição adequada de um dano, portanto) é medida que implode as bases teóricas e normativas da responsabilidade civil. Isso porque, ao centrar-se apenas na conduta e pretender tutelar genérica e abstratamente bens jurídicos e valores normativos, a responsabilidade civil acaba por adotar os mesmos pressupostos e o mesmo modus operandi da ordenação e da responsabilidade administrativas. Fazendo-o, porém, ao arrepio daquilo que é a base de sustentação das normas infracionais: o princípio da legalidade, esse corolário do Estado de Direito e da separação funcional de poderes. Donde constituir matéria de impacto significativo sobre o direito constitucional.

Com efeito, ao associar o dano à tipificação administrativa de uma conduta – ao abstrativa-lo, portanto -, o precedente faz, da responsabilidade civil, um lócus de programação normativa. Uma ambiência de valoração abstrata, capaz de reformular, inclusive, o juízo normativo expresso realizado pelo Poder Legislativo. É o caso, justamente, da judicialização do tráfego com excesso de peso nas rodovias. Ao passo que o CTB reputa a conduta como de lesividade apenas média, o MPF e o Poder Judiciário a selecionam como objeto de um heterodoxo reforço de efetividade – e, pior, sem que reúnam a capacidade institucional adequada para avaliar se haveria mesmo uma crise de efetividade da norma. Deixa-se de tomar em conta, nesse sentido, a proporção ínfima entre o número de infrações desse tipo e o total de saída de cargas no País. Com o que se faz tábula rasa do papel que a figura do dano sempre exerceu como chave conceitual da responsabilidade civil.

Mais do que isso, reduz-se a pó o plano da causalidade. Afinal, se a responsabilidade depende da mera constatação de uma conduta, já não há espaço cognitivo para a demonstração de que essa conduta não tem aptidão para ensejar alguma espécie juridicamente relevante de dano. É nesse sentido que não se leva em consideração o fato de que a imensa maioria das infrações consiste no excesso de peso por eixo, e não do peso bruto total. E que, muitas vezes, é o mau estado das rodovias que ocasiona o desbalanceamento das cargas. Isso, aliás, impossibilita a fase de liquidação dos danos. As sentenças de conhecimento (como já era de se esperar) não aportam nenhuma baliza para a delimitação do dano e, por conseguinte, da responsabilidade civil. É aí que surge a figura da multa coercitiva, requerida pelo MPF a título principal, e não instrumental ou acessório.

Portanto, não bastasse a impropriedade do reconhecimento judicial de uma responsabilidade civil abstrata, o fenômeno espraia seus efeitos sobre o processo civil, a partir da cominação de multas coercitivas, temporalmente ilimitadas e incidentes, em paralelo à multa administrativa, sempre que constatada a conduta de trafegar com excesso de peso. Sobre esse ponto, em específico, o que se percebe é que a independência entre os planos de responsabilização jurídica, bem como a funcionalidade reconhecida às astreintes não traduzem fundamentos adequados para legitimar multas judiciais que operam nas mesmas bases abstratas e genéricas das sanções devidamente inscritas em lei.

Quando se alude à ideia de bis in idem, portanto, não se o faz para negar a multicitada independência entre a responsabilidade administrativa e civil. Essa, por si só, é incontroversa, como visto neste artigo. O bis in idem se configura, porém, quando se rotula de responsabilização civil, artificialmente, a imposição judicial de multas coercitivas devidas pela mera incorrência em determinada conduta, sem alegação (menos ainda demonstração) de um dano concreto e de seu nexo de causalidade. É aí que toma corpo o fenômeno vedado do bis in idem, aqui perpetrado pelo Poder Judiciário. O que já se põe em rota de colisão frontal, insista-se, com o Estado Democrático de Direito e ao modelo constitucional de separação dos Poderes.

Diante de um quadro como esse, de tamanho impacto sobre o direito civil, o direito processual e o direito constitucional, espera-se que o Poder Judiciário possa reconduzir a matéria aos quadrantes da validade e da legitimidade constitucional.