Em 1º de julho de 1976 foi promulgada a Lei nº 6.339, batizada em referência ao então Ministro da Justiça, Armando Falcão, seu idealizador. Como resposta do regime militar ao crescimento do MDB, que vencera a oficialista ARENA nas eleições de 1974, obtendo 16 das 22 cadeiras do Senado Federal em disputa, a nova legislação restringiu o quanto podia a propaganda eleitoral.
Alterando o art. 250 do Código Eleitoral, estabeleceu-se que a propaganda eleitoral estaria limitada “a mencionar a legenda, o currículo e o número do registro dos candidatos na Justiça Eleitoral, bem como a divulgar, pela televisão, suas fotografias, podendo, ainda, anunciar o horário local dos comícios” (art. 250, § 1º, I, CE). Nas palavras de Franco Montoro, então Senador pelo MDB de São Paulo, intentava-se eliminar da campanha o debate político.
A pretensão de estancar o crescimento da oposição logrou parcial êxito. Se é certo que a ARENA obteve naquelas eleições municipais 12 milhões de votos, contra 10 milhões do MDB, não é menos verdade que a evolução histórica apontava o ocaso futuro do regime. Quatro anos antes, em 1972, a ARENA obtivera mais do que o dobro dos votos de sua oposição encabulada.
O temor de quem se aboletava no poder justificou, em seguida, a aprovação do Pacote de Abril, que além de fechar o Congresso Nacional por duas semanas e criar a figura do Senador “biônico”, estendeu as restrições da propaganda eleitoral às eleições estaduais e federais de 1978. Na oportunidade, Pedro Simon, Deputado Federal pelo MDB gaúcho, afirmou que a lei era “o édito do silêncio, o horror à inteligência e a fuga ao debate”.
Eis que, transcorridos quase quarenta anos, o Congresso Nacional brindou a sociedade com a versão século XXI da Lei Falcão, alterando com a Lei nº 13.165 o art. 54 da Lei nº 9.504/97. Surfando na onda do descontentamento geral da população com a atividade política e, em especial, com a propaganda eleitoral, criou-se um novo engessamento do horário eleitoral gratuito, que vigerá já para estas eleições de 2016.
De acordo com o texto legal, nos programas e inserções de rádio e televisão as campanhas deverão se limitar a expor candidatos, caracteres com propostas, fotos, jingles e clipes com músicas ou vinhetas. Para a aparição de eventuais apoiadores, limita-se sua exposição a 25% do tempo de cada programa ou inserção. Além disso, veda-se o uso de montagens, trucagens, computação gráfica, desenhos animados e efeitos especiais.
Para a gravação de cenas externas a restrição é ainda mais intensa. Exige-se que o candidato pessoalmente exponha realizações de seu governo ou falhas de seus adversários. Para os próprios legisladores em exercício de mandato, que não poderiam deixar uma porta aberta aos seus próprios interesses, permite-se a apresentação de atos parlamentares e debates legislativos.
Infelizmente não se pode nem mesmo tratar a questão como equívoco do legislador. Erros são, essencialmente, atos impensados, irrefletidos, não desejados. O que se tem aqui é a deliberada tentativa de afastar ainda mais o eleitorado da política, impedir os cidadãos de conhecer as propostas dos candidatos, seus vícios e virtudes.
Uma leitura açodada da legislação poderia transmitir a ideia contrária. Afinal, se os candidatos deverão estar pessoalmente nos programas, certamente o eleitorado teria maior oportunidade de conhecê-los. Ademais, a lei parece afastar tudo aquilo que o senso comum engloba no conceito de “pirotecnia” da publicidade eleitoral.
Ledo engano. Nunca se pode perder de vista que toda eleição termina com um vencedor. A assertiva pode parecer banal, mas se faz necessária neste caso. A ausência de propaganda eleitoral ou sua quase integral limitação não acarreta a assunção ao cargo disputado de um candidato melhor ou pior. A única consequência, óbvia e natural, é que será eleito ao final aquele candidato que menos necessita de propaganda para se fazer conhecer pelo eleitorado. E quem seria esse sortudo?
Exatamente quem já está no cargo, aquele que tem a oportunidade, ao longo de quatro anos, de expor seu nome e suas realizações à população. A pessoa a quem a mídia costumeiramente busca neste período, mesmo que para criticar, que tem seu nome veiculado reiteradamente em jornais, rádios e emissoras de televisão.
Indiretamente, beneficia-se com uma legislação como essa um outro tipo de concorrente, o candidato-celebridade. Apresentadores de programa de rádio ou televisão, locutores de rodeio, ministros religiosos, cantores e atores, têm sido disputados a peso de ouro pelos partidos. Aliás, se dispuserem de seu próprio ouro para financiar as campanhas, tanto melhor. Afinal, com as restrições às doações, ganha pontos o candidato que traz consigo seu próprio patrocínio. A lógica que por anos permeou a Fórmula 1, com filhos de grandes empresários conseguindo um espaço no grid, à frente de pilotos muito mais qualificados, parece ter sido trasladada para o mundo eleitoral.
Ademais, tampouco as críticas à chamada “pirotecnia” da propaganda eleitoral resiste ao mínimo escrutínio. Por um lado, esquece-se, propositalmente ou não, que se vive em um mundo pirotécnico, no qual mídias cada mais agradáveis sob um ponto de vista estético disputam a atenção de cada pessoa. Não basta mais o Full HD, a demanda agora é pelo 4K. O velho tubo das televisões, aposentado há anos em prol do plasma, deu espaço ao LED, ao OLED e, mais recentemente, a telas curvas que possibilitam imagens cada vez mais próximas da realidade. Nem mesmo os aparelhos móveis escapam da busca incessante por qualidade técnica, com visores maiores, definições quase perfeitas e câmaras com megapixels que se contam às dezenas.
Não só os aparelhos evoluíram, mas também os conteúdos divulgados. Netflix, filmes recheados de efeitos especiais de última geração, jogos de celular em 3D, realidade aumentada, enfim, tudo em nosso tempo prima pela excelência estética.
E é exatamente nesta realidade, quando se clama por reinserir os jovens no debate político, que a legislação vem sedimentar de vez sua exclusão. Se até mesmo o ensino à distância já compreendeu as vicissitudes de se fazer atrativo com apresentações sofisticadas e primor técnico, impossível imaginar que será possível manter um mínimo de interesse na propaganda eleitoral com a Lei Falcão 2.0. Candidatos de terno, falando às câmeras, pode ser o sonho idílico de quem crê ter havido um tempo dourado, em algum momento do século XIX ou meados do XX, no qual a população se interessava por política em razão de um senso de responsabilidade que lhe afligia a alma. A realidade, feliz ou infelizmente, é outra.
Diante deste quadro, se o intuito das mudanças na propaganda eleitoral foi impedir a renovação política e, como se viu, tudo aponta que poderá consegui-lo, faz-se necessário promover uma leitura do novo art. 54 da Lei nº 9.504/97 que não permita isso, com um olhar que prestigie a finalidade última da campanha eleitoral, a difusão eficaz de informação ao eleitorado.
Não se pode esquecer, como bem ressaltou Carlos Neves Filho, que “a propaganda eleitoral, enquanto tentativa legítima de criar estados mentais favoráveis a uma proposta, entre várias apresentadas, próprio da pluralidade de ideias de uma Democracia, possui princípios norteadores, onde se destaca o princípio da liberdade da propaganda”, em razão do que “a propaganda política é livre, mesmo que pareça, ou façam parecer, o contrário! [1]”. Daí se propor algumas linhas na hermenêutica do art. 54, na tentativa de salvar seu conteúdo da fatal inconstitucionalidade que derivaria de uma aplicação rígida e literal.
Inicialmente é de se afastar a interpretação que sustenta que narradores ou apresentadores deveriam ser considerados “apoiadores”. O regramento trazido pela nova redação, ao afirmar que “apoiadores, inclusive os candidatos de que trata o § 1º do art. 53-A só podem dispor de 25% do tempo”, deve ser lido de forma restritiva. Apoiador aqui há de ser alguém com relevo político ou social, apto a emprestar sua credibilidade e seu nome ao esforço de convencimento da campanha.
Ademais, igual cautela há que se guardar quanto à parte final da regra, quando alude que estes 25% de tempo devem ser considerados em “cada programa ou inserção”. Se é possível cogitar de aplicação literal no que toca ao programa, por sua maior extensão, o mesmo não se pode dizer quanto às inserções.
As inserções, pelo próprio texto legal, passaram a ser o principal veículo de transmissão de informação do horário eleitoral gratuito. Se a publicidade em bloco contará com apenas dez minutos em cada período, os pequenos spots de sessenta ou trinta segundos ocuparão setenta minutos diários na televisão e no rádio.
Assim, acaso se defendesse o cálculo das porcentagens em cada inserção, inviável seria trazer os apoiadores para esta modalidade de propaganda. Não é possível cogitar que alguém logre comunicar o que quer que seja em parcos sete segundos e meio. Resta claro que a aplicação da lei não pode inviabilizar aquilo que ela mesmo permite, ou seja, que apoiadores expressem aos eleitores as razões pelas quais recomendam seu voto neste ou naquele candidato.
Por isso sugere-se que o cálculo seja feito considerando o total de inserções ao qual o candidato tem direito naquele dia, interpretação que busca aliar, de forma razoável, o rigor da lei com a necessidade de viabilizar sua finalidade.
No que toca à regra geral, ou seja, aos 75% do tempo da propaganda, também alguns esclarecimentos parecem necessários. De plano percebe-se que são seis as possibilidades de uso do espaço: 1) candidatos, 2) caracteres com propostas, 3) fotos, 4) jingles, 5) clipes com música ou 6) vinhetas, inclusive de passagem, com indicação do número do candidato ou do partido.
O uso da locução alternativa – “ou” – deixa fora de dúvida que se tratam de modos distintos de expor a publicidade eleitoral. Dito de outro modo, não é necessário que haja concomitância entre elas. O uso de um jingle em parte do tempo, por exemplo, dispensa que naquele mesmo momento o candidato esteja em evidência no programa ou, pior, que seja obrigado a cantar o jingle. O mesmo se pode dizer quanto às fotos, que naturalmente não precisam retratar o próprio candidato.
Nada impede, nesta linha de raciocínio, que ao longo dos 75% do tempo um narrador conte um case, devidamente ilustrado por fotografias, trazendo em seguida as propostas do candidato em caracteres, intercalando com uma vinheta e, ao final, o candidato traga sua mensagem.
Mesmo quando se trata da aparição pessoal do candidato, não se pode fazer o cálculo do tempo contando os segundos em que ele diretamente se manifesta. Se o candidato está, por exemplo, em uma mesa, dialogando com eleitores sobre os problemas da cidade, toda a cena há que ser compreendida dentro da parcela de 75% geral. O que importa, neste caso, é a sua presença, não sendo relevante se ele faz perguntas às pessoas e com elas discute ou se fala sozinho em direção à câmera. Aliás, nem seria necessário dizer, mas são absolutamente intercambiáveis as presenças do candidato a prefeito e vice-prefeito, no caso de eleições municipais, estando ambos, individualmente, aptos a representar a chapa una e indivisível que compõem.
Em relação à parte final do caput do art. 54 também cabem algumas observações. A vedação ao uso de computação gráfica e efeitos especiais, fruto do mito do “marqueteiro bruxo”, que conseguiria enfeitiçar o incauto eleitor, deve ser matizada com igual preocupação em viabilizar a própria feitura da propaganda eleitoral.
Praticamente todos os recursos hoje envolvidos na gravação de som ou imagem podem ser genericamente considerados “efeitos especiais” ou “computação gráfica”. Até mesmo para se cumprir a lei, inserindo as legendas para que as pessoas com deficiência auditiva possam ter acesso à propaganda (art. 44, § 1º da Lei nº 9.504/97), é necessário o uso da computação gráfica. Assim, o uso moderado da computação, com recursos acessíveis no mais das vezes de forma gratuita ou a baixo custo, deve ser tolerado por ser absolutamente indispensável. Mais do que isso, reproduzir efeitos gráficos sem o uso da computação, no mais das vezes, implica em custos mais altos, o que seria contraditório com a pretensão da legislação.
Caso simples de compreender é o uso do recurso de chroma-key para alterar o fundo no qual se insere posteriormente a pessoa que está sendo gravada. Se a ideia é que o candidato faça sua fala, tendo ao fundo imagens das obras que realizou, por exemplo, a forma mais simples e barata é gravá-lo em estúdio com o tradicional fundo verde e, na fase de pós-produção, adicionar as fotografias com o chroma-key. A alternativa que uma leitura gramatical da lei parece sugerir exigiria a confecção de dezenas de cenários e a gravação da fala com sucessivos cortes, acarretando obviamente custos mais altos.
Sem estender em demasia estas breves considerações, um último olhar deve ser lançado à questão das cenas externas. A nova redação exige que o candidato “pessoalmente” conduza a cena. Este advérbio não parece exigir que sua imagem e voz, de forma concomitante, estejam em cena. Nada impede que uma tomada aérea sobre uma obra seja narrada pelo candidato, por exemplo. Voz ou imagem, em suma, bastam para que seja considerada a participação pessoal do candidato, cumprindo o requisito legal.
Os argumentos favoráveis à Lei Falcão – a original - são bem resumidos pelo seu epônimo, que afirmou ser “justa e igualitária”, eis que todos os candidatos se subsumiam ao mesmo regramento. Em contraste, prefere-se a síntese do então Senador pelo MDB de Minas Gerais, Itamar Franco, quando disse que ela tornava “proibido ao povo conhecer seus candidatos e suas ideias”.
A nova Lei Falcão, como visto, deve ser matizada para que a propaganda eleitoral consiga ser útil ao eleitor, assim como para evitar que a legislação se preste a encastelar no poder quem nele hoje está. O desafio da Justiça Eleitoral será conformar a rigidez da lei aos ditames da razoabilidade e permitir que a finalidade última das campanhas seja atingida: que o eleitor se interesse pela política e encontre nestes quarenta e cinco dias, que começam semana que vem, as razões de que precisa para decidir seu voto.
[1] NEVES FILHO, Carlos. Propaganda eleitoral e o princípio da liberdade da propaganda política. Belo Horizonte: Fórum, 2012, pp. 20-28.