Antes de ter suas peças adaptadas no circuito da Broadway e ver alguns de seus textos virarem filmes em Hollywood, o dramaturgo e roteirista norte-americano Elmer Rice teve uma brevíssima, porém significativa, passagem pela advocacia. Foram dois anos entre graduar-se na New York Law School, em 1912 – uma das mais antigas escolas independentes de Direito dos EUA – e encerrar sua curta experiência em uma sociedade de advogados, há exatos 100 anos, em 1914.
A atuação como advogado foi breve, mas o que Rice aprendeu no período acabou materializado em suas peças e nos musicais e filmes desdobrados de sua obra dramatúrgica. O autor serviu-se do mito social do advogado e da cultura de trabalho no universo da advocacia como elemento de alguns de seus textos, a ponto de ser reconhecido como mestre dos chamados “dramas de tribunal”.
Seu registro mais contundente de como atua um advogado e da marcha deste junto à estrutura e engrenagens da sociedade pode ser qualificado, no entanto, como um “drama de escritório”. A peça "Counsellor-at-Law" acabou virando filme, com roteiro trabalhado pelo próprio Elmer Rice, levado às telas nos anos iniciais do cinema sonoro pelo diretor William Wyler, em 1933. A peça de Elmer Rice é de 1931. No Brasil, o filme ganhou o título inexato de "O Conselheiro", invés de algo como "O Advogado".
O roteirista abandonou a advocacia em 1914, mas, afinal, o que da sua visão sobre a profissão e o mercado não virou peça de museu em 2014? A história do criminalista George Simon na iminência de ter sua reputação despedaçada por um erro cometido no passado ocorre nos anos 1930, e as experiências e as vicissitudes fundamentais da advocacia estão todas lá.
Interpretado no cinema pelo ator John Barrymore – avô da atriz Drew Barrymore – o protagonista George Simon despacha em ritmo alucinante mesmo para os padrões de hoje, com a diferença de tecnologia entre uma era e outra parecendo de pouca relevância. As inovações – o telefone e o elevador – são usados em frenesi. A voz aguda e acelerada da telefonista atende as chamadas, repetindo incontáveis vezes, durante o decurso do filme, o nome do escritório: Simon &amp; Tedesco... Simon &amp; Tedesco... Simon &amp; Tedesco. Todos falam muito rápido.
George Simon desconta a ansiedade pela rotina impiedosa numa caixa de bombons, sempre à mão. Ao longo das atribuições do dia, o nome de John Tedesco, sócio do protagonista, é aventado na boataria sobre a nomeação para uma vaga na Suprema Corte, o que Simon vê como possível vantagem para amesquinhar as decisões e, por tabela, os juízes do tribunal de recursos em que milita.
Praticamente toda a ação do filme se desenvolve no 27º andar do recém inaugurado Empire State Building, que abriga o escritório e faz as vezes de símbolo que empresta à advocacia, no filme, o caráter de atividade profundamente vinculada ao esforço e mérito individuais, sendo assim um leito regular de ascensão social e econômica. O personagem George Simon é um judeu americano de origem humilde, saído do gueto do Lower East Side, em Manhattan, e descendente de imigrantes que “cruzaram o Atlântico em 3ª classe”. Casado com uma socialite a quem venera – e em relação a quem se sente socialmente inferior – chega a abandonar uma causa de US$ 100 mil [soma altíssima no contexto da época] por conta de um pedido caprichoso e fútil da mulher.
Quando o passado vem perturbá-lo, ouve, em tom de desabafo, que o procurador-adjunto que pode lhe causar problemas talvez o faça porque, afinal, “quem chegou no Mayflower (o navio que desembarcou os primeiros puritanos ingleses na costa de Massachussetts, no século 17) não gosta de ver os rapazes da Segunda Avenida se destacarem”.
Simon teme enfrentar a acusação de ter incentivado uma testemunha a cometer o crime de perjúrio ainda nos primeiros anos de sua carreira. O que, na verdade, o protagonista fez, mas não para ganhar a causa pura e simplesmente, mas por acreditar que seu cliente, que respondia pela morte de um jovem de origem alemã, tinha chances reais de reabilitação apenas longe do cárcere.
A ansiedade pelo risco de enfrentar um processo de desfiliação da ordem local de advogados pelo erro cometido no passado – o temido disbarment – o conduz ao desespero. Além da bem sucedida carreira, Simon teme perder seu papel como referência de perseverança à comunidade em que cresceu e, acima de tudo, de ver seu exemplo de pragmatismo e resiliência esvaziado. Uma sequência deixa isso claro, quando sua mãe pede que ele dê conselhos a um jovem desorientado, filho de amigos da família preocupados com as lamúrias comunistas repetidas pelo rapaz.
Frente à ausência de reação do interlocutor, Simon diz ao jovem obcecado por pensamentos sobre luta de classes que “lhe dará apenas conselhos práticos”, ao que o rapaz responde o insultando de “cossaco”. Perplexo com o xingamento extravagante, o protagonista responde: “Estamos na América!”, mas o jovem insiste e diz que a América “é pior que a Rússia czarista”.
O rapaz desabafa, ainda, afirmando que ele e o advogado são, na essência, diferentes, porque somente o jovem, de fato, pertence à classe trabalhadora. Simon replica de forma astuta: “Então comeu melhor do que eu”, sugerindo que chegou ali apenas pela força do trabalho. Por fim, alterado, o rapaz acusa o advogado de explorar operários e “puxar o saco de políticos burgueses”, ao que Simon retruca: “Você e seus cossacos e sua guerra de classes... não suportariam um décimo do que enfrentei para chegar até aqui”.
A lembrança de um filme dos anos 1930 pode ser um pouco heterodoxa para falar dos símbolos e da cultura de trabalho da advocacia, e para apresentar assim a cobertura de mercado do JOTA, que nasce em 2014 – o presente – que é menos distante das tumultuadas primeiras décadas do século 20 do que somos levados a pensar. O século 20 já foi apontado como o século do advogado em função do que representou em termos de transformação da Justiça no Ocidente e da evolução vertiginosa da burocracia e da complexidade financeira nas relações econômicas e políticas em todo o mundo.
Descontado algum romantismo e uma ou outra sacada preconceituosa sobre a advocacia, o âmago da profissão está exposto com sutileza no filme de 1933, originado do texto de Elmer Rice. Mas, na era do big data, da informação em desvario e de um agudo processo de reformulação das relações sociais e econômicas, é difícil não concluir que o século 21 é um século para o advogado.
De volta aos anos 1930, Simon, ao fim, supera a crise profissional, mas cede ao desespero depois que sua mulher o rejeita frente à possibilidade de o marido afundar socialmente. O advogado é resgatado de uma tentativa patética de suicídio justamente pela secretária, que o ama em silêncio e o serve com devoção quase maternal, a Srta. Regina Gordon, “Rexie” na abreviação idiomática da época, interpretada pela atriz Bebe Daniels, estrela egressa do cinema mudo, ainda como artista mirim.
Porém, é com o chamado de um potencial cliente que Simon renasce por completo. Na cena final, o telefonema do presidente da Cia. Americana do Aço o resgata em definitivo do torpor. O industrial precisa de um defensor para o filho, enrascado com a morte da namorada após uma discussão entre o casal. “Pode imaginar o tamanho do caso!”, repete Simon, alterado, à secretária. Tasca então um beijo em Rexie e diz:
“Ao trabalho!”
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JOTA

A cultura de trabalho e o mito social da advocacia nos séculos 20 e 21

Um século para o advogado

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