Poder Judiciário da União
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS 

2JEFAZPUB
2º Juizado Especial da Fazenda Pública do DF

 

Número do processo: 0734454-86.2016.8.07.0016

Classe judicial: PROCEDIMENTO DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL (436)

AUTOR: RIHAB AWAD ODEH SAD

RÉU: DEPARTAMENTO DE TRANSITO DO DISTRITO FEDERAL

                                                                                                   


S E N T E N Ç A

 

Trata-se de Ação de Obrigação de Fazer com pedido de antecipação dos efeitos da tutela proposta por RIHAB AWAD ODEH SAD em face do DETRAN/DF.

Narra a autora que é muçulmana praticante e que sua religião determina que as mulheres não mostrem totalmente a cabeça, sendo obrigatório o uso de um lenço.

Explica que vêm sendo impedida de renovar sua CNH, com a apresentação de fotografia em que aparece com lenço característico de sua religião, tendo em vista vedação decorrente da Resolução n. 196/2006 do CONTRAN.

Sustenta que referida vedação administrativa afronta o direito fundamental à crença religiosa.

Requer o acolhimento de sua pretensão, com a condenação do Requerido à expedição de sua CNH com foto em que ostente o véu característico de sua religião.

O pedido de antecipação dos efeitos da tutela foi indeferido.

Citado, o Requerido apresentou contestação fora do prazo legal. Contudo, em peça juntada extemporaneamente, argumentou que a conduta administrativa está pautada dentro das normas vigentes e que o direito à liberdade religiosa não pode se sobrepor ao bem coletivo, principalmente, aqueles que visam a segurança dos demais cidadãos.

A autora manifestou-se em réplica.

É o breve relatório.

DECIDO.

O caso é de julgamento antecipado da lide, pois o processo se encontra suficientemente instruído, dependendo o desate do mérito da análise de matéria eminentemente de direito (Art. 355, I, CPC).

Incialmente, destaco que embora o Requerido tenha apresentado contestação fora do prazo legal, a ele não se aplicam os efeitos materiais da revelia, posto que os bens e direitos por ele defendidos são tidos por indisponíveis.

Passo ao exame do mérito.

Pretende a autora que sua CNH seja expedida com foto em que utiliza véu característico da religião islâmica, o que  foi vedado pelo DETRAN/DF.

A exigência do DETRAN/DF está fundamentada na Resolução n. 192/2006 do Conselho Nacional de Trânsito, que assim determinou em seu Anexo IV:

“Instruções para o Preenchimento dos Dados Variáveis da CNH.

Com relação às imagens da fotografia e assinatura, necessárias à emissão da CNH, o processo de captura e armazenamento deverá ser feito diretamente pelos Órgãos e Entidades Executivas de Transito dos Estados e do Distrito Federal ou, sendo necessária a terceirização desses serviços, os mesmos somente deverão ser realizados pelas empresas inscritas e homologadas junto ao DENATRAN para emissão da CNH, conforme determina o artigo 11° dessa Resolução e observadas as normas e especificações estabelecidas em Portaria do DENATRAN para o banco de imagens do RENACH.

1. FOTOGRAFIA: a mais recente possível, que garanta o perfeito reconhecimento fisionômico do candidato ou condutor, impressa no documento, por processo eletrônico, obtida da original aposta no formulário RENACH ou através de outro mecanismo de captura eletrônica de imagem. A fotografia deverá atender às seguintes características:

a) Colorida;

b) Dimensão padrão 3x4 cm (seja em papel, seja em meio eletrônico);

c) O fundo deverá ser nas cores: branca ou cinza claro ou azul claro;

d) Representar a visão completa da cabeça do condutor e ombros, com a imagem da face centralizada na fotografia, devendo a área da face ocupar mais de 50% da fotografia;

e) O candidato ou condutor não poderá estar utilizando óculos, bonés, gorros, chapéus ou qualquer outro item de vestuário / acessório que cubra parte do rosto ou da cabeça;

f) A imagem da face não poderá ter qualquer tipo de inclinação (para direita ou esquerda, para cima ou para baixo), devendo a fotografia representar o condutor olhando para frente, sem piscar;

g) A imagem não poderá conter qualquer tipo de manchas, alterações, deformações, retoques ou correções.”

O caso sob exame põe em conflito dois interesses legítimos e constitucionalmente protegidos.

Se por um lado, o Estado se preocupa com a segurança da coletividade e exige uma perfeita identificação dos particulares em seus documentos; por outro lado, a autora, ao buscar a expedição da CNH na forma perseguida, procura a garantir o exercício de sua liberdade religiosa e de sua própria dignidade.

Na ponderação entre dois interesses legítimos em conflito, deve o intérprete procurar uma solução que preserve o núcleo de cada um deles, afastando minimamente as arestas de cada interesse, para que ambos possam se encaixar em harmonia.

Na hipótese dos autos, a autora é muçulmana e sua religião determina o uso do véu em lugares públicos.

A constituição Federal ao tratar acerca do direito de liberdade religiosa assim disciplina em seu artigo 5º, VI, da CRFB, "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias."

Há também o inciso VIII, do mesmo dispositivo legal, que estabelece que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.

Cabe destacar que a autora já possui carteira de identidade, carteira de trabalho e passaporte e, em todos esses documentos, sua foto de identificação foi retirada com o véu, o que denota ausência de dificuldade na identificação da autora em foto tirada com a vestimenta característica de sua religião.

Frise-se que a cédula de identidade é um documento nacional de identificação civil no Brasil, ou seja, específico para identificação do cidadão brasileiro.

Da mesma forma, o passaporte é um documento de identidade emitido pelo governo nacional, de validade internacional, que permite ao nacional cruzar a fronteira de um estado estrangeiro.

Dessa forma, não se justifica o argumento utilizado pelo DETRAN de que o uso do hijab - véu - dificulta a completa identificação do condutor e prejudica a segurança, para impedir a autora de retirar a foto de sua CNH com seu hijab (véu). 

Se a convicção religiosa da autora impõe o uso do véu a todo momento em que estiver exposta ao público externo, o véu acaba por integrar os atributos e características próprios da sua personalidade.

Deste modo, entendo que não cabe ao Poder Judiciário adentrar nos ritos e crenças da religião muçulmana para investigar se a retirada, ainda que breve, do véu característico da religião islâmica, deve ser tolerada pela autora. Essa questão deve ficar restrita a sua liberdade religiosa e ao seu conceito de dignidade pessoal, desde que, claro,não afronte a ordem pública.

Por fim, não se vislumbra prejuízo à segurança do Estado, posto que a foto a ser estampada pela autora em sua CNH apresentará toda a parte frontal de sua face, tal qual os documentos de identidade, passaporte e carteira de trabalho, não havendo dificuldade em sua identificação.

Deste modo, ponderando-se entre os dois interesses em conflito e considerando que a improcedência da pretensão da autora violará seu direito de liberdade religiosa e sua própria dignidade e que, por outro lado, sua procedência não prejudica seriamente a identificação, tenho que deve prevalecer, in casu, a liberdade religiosa em detrimento à segurança, que também teve seus interesses preservados.

Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido inicial para determinar ao DETRAN/DF que expeça  CNH à autora, permitindo que ela possa utilizar sua foto de identificação com o uso do véu característico de sua religião.

Sem custas ou honorários, na forma do artigo 55, caput, da Lei 9099/95.

Após o trânsito em julgado, expeça-se ofício, na forma do artigo 12, da Lei 12.153/2009.

Sentença Registrada Digitalmente. Publique-se. Intimem-se.

 

 BRASÍLIA, DF, 27 de junho de 2017 15:19:19.

 

JEANNE NASCIMENTO CUNHA GUEDES
Juíza de Direito Substituta

 

Assinado eletronicamente por: JEANNE NASCIMENTO CUNHA GUEDES
27/06/2017 15:30:30
https://pje.tjdft.jus.br:443/pje/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam
ID do documento: 7860674
17062715303041300000007609629
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