Uma divergência de entendimento entre a Receita Federal e a Secretaria de Fazenda e Planejamento do estado de São Paulo (Sefaz-SP) motivou o envio de alertas a bolsistas sobre possíveis inconsistências no pagamento do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).
O aviso diz que um cruzamento de dados entre a declaração do tributo e a do imposto de renda mostrou que uma possível inconsistência na falta de pagamento do ITCMD. A comunicação destaca que não configura início de uma ação fiscal, mas pede que a pessoa verifique os valores recebidos e proceda com o eventual pagamento do imposto, se necessário.
Trata-se da primeira fase da Operação Donatio XVIII, contra devedores do ITCMD. As mensagens foram enviadas para cerca de 21 mil contribuintes, que declararam o recebimento de uma doação ou herança ao Fisco federal, mas para os quais não foram encontradas declarações do imposto estadual.
Um deles foi Virgínia Bessa, professora do programa de pós-graduação em Música da Unicamp, que contou ter feito um pós-doutorado no Laboratório Mondes Américains, na França, com uma bolsa da Fapesp. Ela, que foi bolsista uma boa parte da vida, nunca havia recebido algo desse tipo.
O ITCMD deve ser recolhido sempre que o valor das doações superar 2500 Unidades Fiscais do Estado de São Paulo (UFESPs) — o equivalente a R$ 85.650 neste ano — em um mesmo calendário. A alíquota é de 4%. Como Bessa estudou na Europa e recebeu o dinheiro em euro, segundo ela, a incidência do imposto sobre a bolsa a deixaria com uma dívida de R$ 9 mil com a Sefaz.
A pesquisadora mobilizou pessoas para entender o que estava acontecendo. Entrou em contato com a secretaria paulista, o deputado estadual Carlos Giannazi (Psol-SP) e outros ex-bolsistas da Fapesp, mas continuou no escuro. “Quando a gente não tem uma posição clara do órgão a gente fica sem saber. E se, de repente, vem e me cobram? Eu acho que isso não vai acontecer, mas se não houver uma normativa clara a gente fica no limbo.”
Pesquisadores ficam sem respostas
A Fapesp emitiu um comunicado no final de dezembro dizendo que, diante das mensagens recebidas pelos bolsistas, encaminhou uma consulta à Procuradoria Geral do Estado de São Paulo para que se reconheça a não incidência do ITCMD sobre o recebimento de bolsas pagas por agências de fomento.
A entidade afirmou que divulgaria em “momento oportuno” o parecer. Até a publicação desta reportagem, isso não aconteceu.
“A própria secretaria induz o bolsista ao erro, porque a gente não sabe se é devido ou não. E a orientação deles é, ‘clique no link e siga o passo a passo’,” afirmou Lara Mesquita Ramos, professora da FGV-SP que realizou um pós-doutorado pela mesma fundação com bolsa da Fapesp.
“Está todo mundo aguardando orientação sobre o que fazer. E quando a gente tenta o contato individualmente com a Secretaria da Fazenda, a gente só recebe uma resposta protocolar que é: ‘siga as orientações da notificação que você recebeu’. A Secretaria da Fazenda, primeiro, aciona milhares de bolsistas no estado e, depois, simplesmente não dá nenhum retorno.”
“Muita gente já acionou a ouvidoria, a própria Fapesp. Eles não respondem e ainda falam que você deve ter preenchido o imposto de renda errado. ‘A Sefaz só cobra quando você põe na rubrica de doação’. Em nenhum momento tem uma manifestação para o bolsista de que houve um erro de comunicação e que os bolsistas deveriam ignorar a notificação.”
Pesquisadores não devem pagar ITCMD por bolsas de estudo
Eduardo Barboza Muniz, professor do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e sócio Brigagão Duque Estrada Advogados, explicou que a doação é caracterizada pelo elemento da liberalidade, quando há a transferência de bens ou vantagens a um terceiro sem uma contrapartida.
“Quem paga uma bolsa espera que o pesquisador continue vinculado ao plano de pesquisa, exercendo sua atividade. São exigidas providências relativas à pesquisa, comprovação de sua atuação, vinculação ao programa respectivo. Não é uma transferência gratuita de um bem, no caso dinheiro, mas sim uma transferência que está condicionada à permanência do bolsista do programa.”
Dessa forma, as bolsas não poderiam ser tratadas como doação para fins de cobrança do ITCMD, porque sua função, concluiu, é viabilizar a pesquisa científica. “O estado não deve buscar aumentar as suas receitas mediante a cobrança inconstitucional do ITCMD dos pesquisadores, que já sofrem com as tantas mazelas da pesquisa no Brasil.”
Em nota enviada ao JOTA, a própria Sefaz-SP esclareceu que, em doações de bolsas de estudo vindas do “Estado”, a princípio, não há cobrança do ITCMD. O que ocorreu foi um ruído na transferência de dados com a Receita Federal.
‘Nenhum bolsista será intimado a recolher ITCMD’
Até recentemente, o convênio para compartilhamento de dados entre a Sefaz-SP e a Receita Federal era atendido pelo Serpro. Ele para as mãos da Superintendência da Receita em São Paulo para agilizar o processo.
Diante do pedido da Sefaz-SP para fornecer a relação de contribuintes que declararam doação no Imposto de Renda, a Receita encaminhou todos os casos que ela considera como tal, inclusive os valores referentes a bolsas de estudo. Doações, em geral, são isentas de IR, mas tributadas pelo ITCMD — em São Paulo, quando superarem as 2.500 UFESPs.
A secretaria afirmou que os dados, sem o exame das declarações completas de IR, não permitem identificar se os valores são de bolsa de estudos ou efetivamente de doação. Por isso, disparou os alertas. Isso não significa que todos são devedores, o que só se poderia afirmar após um trabalho de verificação fiscal.
A expectativa é que, nas próximas fases da operação, haja o compartilhamento das declarações completas de IR de contribuintes selecionados e, apenas depois, haverá a notificação para que a pessoa realize o pagamento ou apresente documentos que comprovem a não incidência do imposto.
“Nenhum bolsista, identificado como tal nas declarações de IR, será intimado a recolher ITCMD sobre as bolsas de estudo e, caso, por qualquer motivo, recebam uma notificação para a presentar documentos, basta comprovar o recebimento de bolsa de estudo por entidades de fomento à pesquisa que não haverá cobrança do imposto,” assegurou a Sefaz-SP.
De acordo com a secretaria, contribuintes que receberam bolsas de estudo não precisam fazer nada a partir de agora, “pois os valores não são considerados como doação. Os bolsistas não serão mais acionados pela Sefaz-SP nas próximas fases”.