Digitalização da economia

Imposto mínimo global pode ter benefícios rasos para Brasil e outros emergentes

Aprovada por países ricos, alíquota de 15% para multinacionais estará no centro das discussões do G20 em julho

Crédito: Unsplash

A chegada de Joe Biden à presidência dos Estados Unidos – em meio a uma nova crise global exigindo aumento de gastos públicos – impeliu os países ricos a voltar a perseguir um plano antigo: fazer multinacionais pagarem impostos onde atuam, sem chances de evitar taxas dentro da legalidade a depender do endereço. Para as economias em desenvolvimento, como o Brasil, ainda não está claro o quanto a corrida vale a pena.

A meta de ter um patamar tributário mínimo que as atinja é encampada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) desde o colapso financeiro de 2008. Nesse meio tempo, conseguiu apoio de 139 economias para o plano resumido pela sigla BEPS – em inglês, significa erosão da base tributária doméstica e transferência de lucros. As práticas a serem combatidas (seriam 15 ações de luta) podem representar uma perda de até US$ 240 bilhões para os países, segundo a OCDE.

O capítulo mais recente, que deu novo fôlego à ambição, foi a divulgação de um acordo entre os líderes econômicos do G7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido), no início de junho. A proposta é que o imposto mínimo a ser pago pelas empresas seja de 15% e que as multinacionais sejam impedidas de evitar tributos onde operam.

Nessa segunda parte, o foco está nas maiores companhias do planeta. Aquelas que tenham margem de lucro superior a 10% teriam de alocar patamar mínimo de 20% dos seus lucros nos países em que estão faturando. Sob esse montante, recairiam impostos. A percepção geral é que a mudança afetaria, principalmente, a vida das big techs nascidas nos Estados Unidos, como Amazon, Apple e Facebook.

Mas, se o país verá lucros escaparem de suas fronteiras, esse movimento foi necessário para a aprovação do patamar de imposto mínimo. O acordo foi costurado pelo governo Biden, que, em abril, enviou carta a uma centena de países apresentando a proposta, segundo informações do jornal britânico Financial Times. Além do imposto mínimo, ele propunha que o patamar não se restringisse a negócios digitais e, ao mesmo tempo, que países abandonassem tributo específico – França, Itália e Reino Unido têm os próprios mecanismos.

Segundo esse esboço do presidente americano, cerca de cem empresas gigantes seriam impactadas pela “remessa de lucros” a serem tributados em outros países. Por outro lado, o país seria o que mais recolheria com o tributo mínimo. No caso dos Estados Unidos, a necessidade de engrossar a arrecadação importa para dar conta do plano de infraestrutura anunciado por ele e orçado em US$ 2,3 trilhões em investimentos nos próximos anos.

Correspondendo em parte às ambições de Biden, o acordo com o G7 foi comemorado pela Secretária do Tesouro, Janet Yellen, em comunicado: “isso acabaria com a corrida pela tributação mínima e garantiria justiça para a classe média e trabalhadores nos Estados Unidos e em todo o mundo. Também ajudaria a economia global a prosperar, nivelando o campo de jogo para as empresas e encorajando os países a competir em bases positivas”. Os outros ministros seguiram o entusiasmo dela.

Agora, a ideia será discutida em reunião do G20 na Itália, em 9 e 10 de julho. Em seguida, o próximo compromisso é para um acordo com a OCDE, em outubro. No G20, tanto o desenvolvimento das economias quanto seus regimes tributários são muito mais variados, o que pode oferecer novos desafios para um consenso.

Impostos unilaterais

No atual modelo, com a globalização e a digitalização da economia, as empresas não necessariamente lucram no país em que estão sediadas, mas são tributadas nele. A questão é que há uma enorme disparidade na tributação para empresas a depender do país, variando desde completa isenção – nos chamados paraísos fiscais – até escalas mais altas, na África e na América do Sul.

Hoje, a média nominal de impostos para empresas está em 23,8%, considerando 177 países, segundo a ONG americana Tax Foundation. Desde os anos 1980, a tendência é de queda – o que não se deve completamente aos paraísos fiscais, mas também à necessidade de fomentar desenvolvimento e atrair investimentos. Há 15 países (geralmente ilhas) com imposto zerado, mas, na Europa, há oito com imposto de 10%, metade da média em toda a região,

Considerando os negócios digitais, o imposto pago pode ser menor, justamente pela possibilidade de atuar sem presença física. Em relatório divulgado em março, o comitê de assuntos econômicos e monetários do Parlamento Europeu, menciona que o imposto efetivamente pago por esse tipo de transação fica em média em 9,5%, enquanto modelos tradicionais pagariam 23%. Ainda, o comitê admite que, na falta de consenso no âmbito da OCDE e G20 que resolva a questão, poderia criar suas próprias regras.

A proporção de lucros verificados por multinacionais em paraísos fiscais, a partir de atuação em outros locais, poderia girar em torno de 40%, de acordo com cálculo feito por professores das Universidades da Califórnia e de Copenhague.

O número foi divulgado pela organização americana National Bureau of Economic Research (NBER) no ano passado. Eles acreditam que, caso os impostos para empresas fossem equiparados, lucros tributáveis poderiam aumentar 15% na União Europeia e cair 60% em países de baixa taxação. E é justamente esse o tipo de efeito desejado com o imposto mínimo.

A expectativa da OCDE era que a alíquota fosse de 21% – nos planos do grupo, a lista de empresas atingidas pela remessa de lucros também seria mais ampla. Ainda no ano passado, o grupo estabeleceu que reformas só seriam possíveis considerando dois pilares: compartilhamento de direitos tributários de empresas atuantes em diferentes países, em que uma parcela do lucro pudesse ser tributada onde os consumidores estão; e a introdução de um imposto mínimo global.

A Organização foi taxativa ao tratar da demanda por consenso. “No pior cenário possível, em que há uma guerra comercial global desencadeada por impostos unilaterais de serviços digitais em todo o mundo, o fracasso em chegar a um acordo poderia reduzir o PIB global em mais de 1% ao ano”, diz o documento resultante da cúpula.

Além disso, justifica a urgência de haver mudanças devido aos efeitos globais da Covid-19, já que “chegará o momento em que os governos precisarão colocar suas finanças de volta em condições justas e sustentáveis”. De fato, a maior parte dos integrantes da OCDE viu os gastos públicos aumentarem por causa da pandemia ao mesmo tempo em que suas economias murchavam.

Nesse plano, o grupo fala em parâmetros para que países em desenvolvimento possam se “beneficiar do novo direito de tributação com a necessidade de custos de conformidade baixos e proporcionais”, evitando “efeitos colaterais” a essas economias. Entretanto, a contar pela alíquota acordada pelo G7, o patamar é considerado baixo para dar conta de atacar desigualdades globais, na avaliação de organizações dedicadas ao tema.

“Já é tempo de as economias mais poderosas do mundo forçarem multinacionais, incluindo as de tecnologia e farmacêuticas, a contribuir de forma justa com impostos. Porém, fixar em apenas 15% é muito pouco e terá poucos efeitos em mitigar a corrida ao imposto corporativo mínimo e o uso de paraísos fiscais”, declarou Gabriela Bucher, diretora executiva da ONG Oxfam Internacional, com sede na França.

Formada por especialistas estrelados como o Nobel da Economia Joseph Stiglitz, a ex-membro do Parlamento Europeu Eva Joly e o economista Thomas Piketty, a Comissão Independente para Reforma de Tributação Corporativa Internacional (ICRICT) defende um “comprometimento muito mais ambicioso” e sugere uma alíquota de 25%. Caso fosse assim, o bloco de economias europeias poderia ver um aumento de € 170 bilhões, estimou em junho o centro de pesquisas independentes EU Tax Observatory, financiado pela União Europeia.

Outra distorção seria entender o imposto como um tributo à economia digital. Conforme explica Tathiane Piscitelli, professora de Direito Tributário e Financeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo, a OCDE prevê que não é adequado estabelecer um modelo de tributação que se aplique exclusivamente à este tipo de produto. “Houve um movimento de diversos países para aprovar a criação de tributos próprios para onerar a economia digital à luz do que diz a Organização”, afirmou durante o evento “Brazil Tax Conference 2021”, em junho. 

Além disso, as operações de exportação já são abarcadas em regime de retenção de tributação na fonte, de forma que o valor global de 15% pode não se “acomodar às necessidades de todos os países”, na perspectiva de Gisele Bossa, ex-conselheira do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e especialista em tributação e novas tecnologias. “Países menores como Bélgica, Eslováquia, Letônia, Eslovênia não têm mercado consumidor vasto quando comparado com a França e Itália, que tem interesse em tributar”, disse no evento. 

Cenário brasileiro

Há ainda o receio que, mirando em paraísos fiscais, os países ricos da OCDE acabem atingindo as economias em desenvolvimento – e em um momento em que elas precisam mais do que nunca ganhar tração. Isso caso a alíquota seja puxada para baixo nas economias desenvolvidas, já que o esperado é haver menos lucros escapando para países estrangeiros de baixa tributação.

Também está em aberto como deve se dar o fluxo de lucros e de que modo ele poderia fomentar as economias em desenvolvimento. “Ainda, é imperativo que as receitas geradas pelo imposto mínimo sejam dividas de forma equânime entre os países em que elas nasceram e nos em desenvolvimento”, disse José Antonio Ocampo, professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e membro do ICRICT em manifestação oficial.

A política tributária brasileira oferece uma situação singular. Para companhias estrangeiras, pode ser menos vantajoso ser tributado em transações para o exterior. Um exemplo é que, baseadas fora do país, elas pagam imposto de renda retido na fonte (IRRF) sobre rendimentos e ganhos de capital, variando de 15% a 25%, quando o beneficiário está num país com tributação favorecida. Ainda, nesse caso o imposto incide sobre o valor bruto.

Comparativamente, no Brasil, os impostos são pagos pelo lucro líquido – caso da CSLL, cuja alíquota geral é de 9%. A base de cálculo nesse cenário é menor. O total da carga brasileira gira em torno de 34% para as empresas de modo geral. Na Europa, em que se questiona a atuação de multinacionais que não contribuem, não existe retenção na fonte como aqui. A legislação brasileira também limita a dedução de royalties a 4% da receita líquida do negócio, de modo a evitar a redução do lucro no país.

“Mesmo em relação a outros países em desenvolvimento, o Brasil tem uma situação diferente. Inclusive, temos uma política cambial que induz as empresas estrangeiras a se estabelecerem no país. Além de ser mais difícil que elas atuem por aqui estando fora, o que é muito simples na Europa”, diz Luís Flávio Neto, diretor do Instituto de Direito Brasileiro de Tributário e sócio do KLA Advogados, em São Paulo.

Se um imposto mínimo pode não afetar diretamente a realidade brasileira, a questão é que o Brasil tem regras distintas do que é mais frequentemente praticado na OCDE, por exemplo. Esse é o caso de diferentes tributos para comércio e serviços, em que há uma confusão em especial para a economia digital.

Até fevereiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) discutia a incidência de impostos para licenciamento de software, isto é, se deveriam ser tributados com ICMS ou ISS. No caso analisado, os estados de Mato Grosso e Minas Gerais instituíram as alíquotas estaduais, de comércio, para essas situações, o que foi questionado. A maioria dos ministros acompanhou a conclusão do ministro Dias Toffoli, para quem a elaboração de softwares é um serviço, e, portanto, deveria incidir o ISS.

A exemplo do que é discutido na Europa e implementado em alguns países, no Brasil também existem propostas para criar tributos próprios para essa economia. É o caso do Projeto de Lei 2358/2020, que tramita na Câmara dos Deputados e quer criar a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a receita bruta de serviços digitais prestados por grandes empresas de tecnologia (Cide-Digital). 

O projeto foca nas grandes empresas, já que a incidência da contribuição sobre a receita bruta é prevista sobre as atividades de publicidade, plataformas digitais e de transmissão de dados de usuários. A norma estabelece alíquotas progressivas e pretende abarcar todas as pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil ou no exterior e que tenham receita global superior a R$ 3 bilhões ou local superior a R$ 100 milhões. 

A arrecadação da Cide-Digital seria destinada ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Porém, não ficou claro o motivo do direcionamento desses recursos, podendo se questionar se há pertinência entre a arrecadação e o destino final. Agora, o projeto aguarda parecer do relator na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, deputado Pedro Vilela (PSDB-AL). 

Há ainda o Projeto de Lei Complementar 131/2020, em tramitação no Senado e que procura estabelecer uma tributação diferenciada da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) incidente sobre a receita bruta das empresas que usam plataformas digitais. Desde que foi proposto, ele não teve avanços no Congresso. 

Pelo texto, a Cofins incidirá sobre a receita bruta de quem desenvolve atividades de publicidade, plataformas digitais, como já acontece, mas não trata da transmissão de dados. Aqui a incidência é prevista sobre a pessoa jurídica domiciliada Brasil ou no exterior com receita bruta global superior a R$ 20 milhões além de mais de R$ 6,5 milhões localmente. Nesse caso, a alíquota seria de 10,6% no regime não-cumulativo. 

Ambos os projetos ainda dependeriam de um longo caminho para prosperar, mas,  com o aquecimento no exterior, poderiam voltar ao debate. A criação desse tipo de imposto precisa ser observado no contexto brasileiro, no entanto. “Ele pode representar a aplicação indevida de um debate que existe internacionalmente, mas que, nesse caso, como raramente acontece, o nosso sistema tributário dá conta de resolver”, avalia Tathiane Piscitelli, da FGV. 

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