Advogado especializado em direito tributário, Maurício Dalri Timm do Valle acredita que os processos relacionados às despesas médicas são os mais difíceis que chegam para análise no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), órgão vinculado ao Ministério da Economia que analisa litígios entre contribuintes e o Fisco.
“Os casos envolvendo despesas médicas e moléstias graves são casos geralmente difíceis, pela própria circunstância apresentada nos autos”, assegura o advogado, mestre e doutor em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
No primeiro mandato como conselheiro da 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara, Valle foi indicado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). Ele aponta que ocupa um cargo que tem o papel de “defesa da legalidade”.
O conselheiro ainda lembra que em seu primeiro processo relatado levou um “representativo 7×1”, quando não conseguiu convencer os pares. É, para Valle, até hoje o mais marcante entre os que perdeu na corte administrativa.
“Na ocasião, manifestei o entendimento de que o princípio da vedação ao efeito de confisco aplicava-se, conforme o art. 150, IV, da Constituição, apenas aos tributos, e não às multas. Fui vencido, na estreia, por um representativo 7X1”, recorda Valle.
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Ficha-técnica
Nome: Maurício Dalri Timm do Valle
Formação: Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), em 2006.
Alma matter: Universidade Federal do Paraná
Vida acadêmica: Mestre (2010) e Doutor (2015) em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná.
Origem da indicação: Contribuinte – CNI
Time do coração ou hobby: Os principais hobbys que tenho são os churrascos de domingo e, claro, as pescarias. Quando mais novo, era pescador de lambari e tilápias. Não tão novo assim, quando trabalhei no Supremo Tribunal Federal (STF), morei atrás do lago Paranoá. Pescava em todas as manhãs e nos fins de tarde. Depois, comecei a pescar traíras. E, mais recentemente, descobri a pescaria de tucunaré. A pescaria ensina muitas lições: persistência, paciência e companheirismo. Mas, a principal delas é a de que o que importa mesmo são os momentos. Para mim, esses momentos são importantes porque os compartilho com a família.
As decisões do conselheiro
Qual foi o caso mais importante em que seu posicionamento se tornou o entendimento do colegiado?
Não me recordo de algum voto em que meu posicionamento tenha se tornado o entendimento do colegiado.
Qual foi o caso mais difícil de formar sua convicção?
Os casos envolvendo despesas médicas e moléstias graves são casos geralmente difíceis, pela própria circunstância apresentada nos autos.
Qual foi o caso em que a decisão teve mais força para pacificar uma discussão?
Não me recordo, também, se em algum caso minha decisão teve mais força para pacificar uma discussão.
Qual foi o caso mais marcante em que você foi voto vencido?
O caso em que você fui voto vencido foi o primeiro relatado por mim. O primeiro, que envolvia a discussão da confiscatória da multa. Na ocasião, manifestei o entendimento de que o princípio da vedação ao efeito de confisco aplicava-se, conforme o art. 150, IV, da Constituição, apenas aos tributos, e não às multas. Fui vencido, na estreia, por um representativo 7X1.
Qual é a discussão que adoraria ter a oportunidade de participar como julgador?
Sou muito satisfeito com as discussões travadas no colegiado. Chamam particularmente a atenção as discussões relativas ao Imposto Territorial Rural (ITR), aquelas relativas às obrigações acessórias e as de omissão de rendimentos.
Qual foi o voto mais inovador que proferiu?
Quanto aos votos, é muito difícil individualizá-los. Não sei, realmente, precisar qual seria o voto mais inovador. Sempre que possível, tento me valer de ferramentas da teoria do direito para solucionar casos que me pareçam difíceis. Em um dos debates, envolvendo a intimação de pessoa em estado crítico no hospital, lembro ter argumentado com base no entendimento de Georg Henrik von Wright sobre a existência de normas.
O problema da existência das normas é tratado por von Wright no capítulo VII de seu “Norm and action”, sob o título de “Problema ontológico das normas”. Para o filósofo finlandês, esse problema é essencialmente “… la cuestión de qué signifique decir que hay (existe) una norma a tal y tal efecto (a questão do que significa dizer que existe (existe) uma norma para esse efeito)”. Sua análise limita-se às prescrições, e sendo assim, a questão que se propõe a responder é a de que significa dizer que uma prescrição existe.
O próprio autor afirma que analisará a questão de modo indireto, partindo da ideia associada à ética kantiana de que “Dever implica poder” (Aqui, é importante explicar a distinção entre “Poder” e “Poder” encontrada na tradução para o espanhol. “Poder” é a tradução do termo inglês “may” e possui um significado deôntico, enquanto “Poder” é a tradução do termo inglês “can” e possui um significado técnico); formulando-a, para as prescrições, da seguinte forma: “Que algo sea el contenido de una prescripción entraña que el sujeto de la prescripción pueda hacer dicho algo”. Em seguida, enfrenta a questão relativa ao significado de “implica” no mencionado princípio, deparando-se com a dúvida acerca da natureza da conexão entre norma e habilidade. Diante dessa interrogação, de ser a conexão entre norma e habilidade “lógica” (ou “conceitual”) ou “física” (ou “causal”), conclui pela primeira: o vínculo é conceitual.
Continuando seu raciocínio, von Wright lembra que a visão de que “Dever implica Poder” foi utilizada, certas vezes, como um contra-argumento à opinião de David Hume, de que há uma distinção entre “norma” e “fato” e entre “dever” e “ser”. Entretanto, o filósofo finlandês acredita que os supostos conflitos entre as visões de Kant e de Hume são apenas aparentes. E mais: em sua opinião, aqueles que aí os veem padecem do mal de confundir “normas” e “proposições normativas”. O princípio de que “Dever implica Poder”, para von Wright, não enuncia uma relação de implicação entre “norma” e “proposição normativa”, e sim entre “proposições normativas” e “proposições a respeito da habilidade humana”. No antecedente (ou premissa), encontra-se a menção de que há uma norma de tal caráter e conteúdo; e, no consequente, a menção de que o conteúdo da norma “pode” ser feito.
Na interpretação de von Wright, não se pode afirmar a existência de uma norma antes de examinar os fatos relativos à habilidade humana. Assim, as normas seriam “logicamente dependentes” dos fatos relativos à habilidade humana; ou melhor, aquelas, logicamente, pressuporiam estes; ou, ainda, estes seriam um pressuposto daquelas. Nas palavras do filósofo finlandês, “… las normas no pueden existir, o mejor, no pueden llegar a existir, a menos que se cumplan (ya) ciertas condiciones relativas a la habilidad humana”. E, após esse raciocínio, formula o princípio kantiano, para as “prescrições”, da seguinte forma: “Que haya una prescripción que encarece o permite una determinada cosa, presupone que el sujeto (sujetos) de la prescripción pueda hacer lo que se encarece o permite” (sic). Mas surge, então, a pergunta: o que significa “poder fazer”? Refere-se à habilidade ou ao êxito? Melhor dizendo: significa e o agente “poder” fazer a espécie de coisa que a norma estabelece ou permite, ou significa que o agente em questão “pode”, em determinadas ocasiões, fazer a coisa determinada ou permitida? De acordo com von Wright “… parece bastante óbvio…” que o “pode” refere-se à habilidade, relativa a atos genéricos, pois, caso adotada a outra interpretação, estar-se-ia diante de um paradoxo.
“Consideremos una persona a la que se le ha ordenado hacer una determinada cosa en una determinada ocasión. Esta persona intenta ahora hacerla, pero fracasa. Puesto que no pudo hacer la cosa en cuestión, tendríamos que decir que, hablando estrictamente, ni siquiera se le ordenó hacerla. Siempre que una persona intentara seguir, sin éxito, una prescripción, dicha prescripción no existiría (para él). El fracaso en obedecer una norma, la aniquilaría. Pero es evidente que no es así como deseamos conformar nuestra noción de prescripción o norma. Por lo tanto, si queremos hacer del principio Debe entraña Puede un ingrediente de nuestro concepto de norma, tenemos que comprender su ‘puede’ en un sentido que sea compatible con el ‘no puede’ del fracaso, es decir, debemos entender ‘puede hacer’ de forma que implique la habilidad, pero no el éxito, en cada caso individual”. (Norma y acción, 1970, p. 124-127)
Após essa análise, que podemos chamar de “preliminar”, von Wright passa ao exame da aplicação do princípio kantiano de que “Dever implica Poder” às “prescrições”, em relação às quais enuncia que sua existência, ordenando ou permitindo determinada coisa, pressupõe a habilidade do sujeito da norma de fazer a espécie de coisa ordenada ou permitida. Para verificar se essa é uma interpretação aceitável da relação entre prescrição e habilidade, von Wright vale-se do exemplo no qual um oficial ordena a um soldado que atravesse um rio a nado e o soldado, por sua vez, nega-se a entrar na água, valendo-se do argumento que não “poderia” atravessá-lo a nado.
“Supongamos que nuestro soldado es juzgado militarmente y acusado de desobediencia. Si no puede justificar su pretensión de no ser capaz de atravesar a nado el río, entonces claramente puede ser sentenciado y castigado por desobediencia. Pero si puede justificar su pretensión, ¿es cierto que ‘no’ puede entonces ser sentenciado y castigado? El soldado puede, naturalmente, ser tratado de la forma que es característica del castigo y que supone la imposición de algún tipo de dolor o cosa desagradable. Este trato puede incluso describirse correctamente como castigo. Sería un castigo por la manera en que contestó al oficial o a un castigo porque no probó en el momento que no podía ejecutar el acto requerido, es decir, meterse en el agua y permitir así al oficial poner a prueba su habilidad. O puede ser castigado porque no ha aprendido a nadar, cuando se suponía que debía haber aprendido a hacerlo durante su adiestramiento. Pero en cualquier caso, para que podamos llamar castigo al trato que recibe y no simplemente maltrato, aquello por lo que se castiga tiene que ser algo que podría haber hecho, pero no lo hizo. Y dado que, en nuestra hipótesis, el soldado no puede hacer lo que la orden de atravesar el río a nado exige, no puede ser ‘castigado’ por haber desobedecido ‘esta’ orden. No puede haberla ‘desobedecido’, porque solo hay ‘lugar’ para la desobediencia cuando la obediencia es posible. Y la obediencia es posible solamente cuando hay habilidad de hacer lo que se exige”. (Norma y acción, 1970, p. 130)
Esse exemplo, em sua opinião, revela duas “tendências conceituais conflitantes”. Por um lado, poder-se-ia dizer que, uma vez que o soldado não poderia fazer aquilo que dele era exigido, nem sequer “se poderia” mandá-lo fazer. De outro lado, é possível dizer que existia a ordem, na medida em que se exigiu do soldado fazer algo. Entretanto, von Wright defende que essas tendências podem ser conciliadas pela observância da distinção entre o “dar” e o “receber” (“tomar”) prescrições. Apesar de se poder dar uma ordem a outro, independentemente de sua habilidade de a realizar, não é possível receber uma ordem de quem quer que seja, a não ser que aquele que a recebe tenha habilidade para a realizar. O mesmo ocorre com a permissão.
Ainda que se possa dar uma permissão a alguém, independentemente de sua habilidade, esse alguém somente “terá efetivamente a permissão” se puder fazer aquilo que lhe é permitido. A questão que surge é a de se saber como essa divisão, entre “dar” e “receber”, afeta a existência das prescrições. Isso porque, como bem ressalta von Wright, é de certa forma tentador sustentar que a existência das prescrições dependeria apenas da emissão, prescindindo da habilidade do receptor. Segundo ele, entretanto, ainda que a existência da prescrição dependesse somente da emissão, disso não se pode concluir que essa existência é independente das habilidades do receptor.
Retomemos, aqui, a noção de “ação normativa”, que é justamente o nome que von Wright atribui à ação humana por meio da qual as prescrições começam a existir. Questiona-se von Wright se o “dar a prescrição” é um “ato” ou uma “atividade” e, ainda, se a existência dessa prescrição é o “resultado” ou é uma “consequência” da ação normativa. Em sua visão, o “dar a prescrição” é um ato cuja execução exitosa resulta na existência de uma prescrição. Esses atos terão por consequência os efeitos da prescrição sobre a conduta daqueles a quem ela (prescrição) é direcionada. Nesses “atos” – chamados de “normativos” – assim como em todos os demais, está implicada uma “atividade”, que, neste caso específico, é uma “atividade verbal”, a qual consiste em enunciar ou promulgar a norma, para os sujeitos normativos, por meio de formulações normativas.
Fica claro que, para von Wright, o “ato de dar a prescrição” é distinto da “atividade verbal implicada no ato”, concluindo que a “… mera emisión de oraciones imperativas y el uso de otras formas de lenguaje prescriptivo no establece que un mandato, permiso o prohibición se haya dado, no ‘constituye’ por sí mismo un acto de mandar, permitir o prohibir”. Além da atividade verbal, é necessária também a formação da chamada “vinculação normativa” ou, como prefere von Wrigh, “vinculación bajo norma” entre a autoridade e o sujeito normativo. Para o filósofo finlandês, somente com o estabelecimento dessa vinculação é que a norma passa a existir. A partir desse momento – e até o momento em que se dissolver a vinculação normativa – é possível dizer que a norma está em “vigor”. Ocorre que, com a dissolução da vinculação normativa, a norma, na visão de von Wright, deixa de existir. Para ele, portanto, a norma apenas existe enquanto estiver em vigor.
Na ação normativa, encontra-se ainda outro componente, qual seja, a “sanção”, que poderá ser eficaz ou não – definida por von Wright como “… una amenaza de castigo, explícito o implícito, por desobediencia de la norma (uma ameaça de punição, explícita ou implícita, por desobediência à regra)” – cuja função é constituir motivo de obediência da norma, nos casos em que ausentes outros motivos de obediência e naqueles em que presentes motivos de desobediência. Essa “sanção” não pode ser estabelecida por qualquer pessoa. Aquele que a estabelece, ou seja, a autoridade normativa deve ser “mais forte” que o sujeito normativo. Essa “força superior” está ligada à possibilidade de concretizar as ameaças de castigo que constituem a sanção da norma, caso ela seja desobedecida. Essa, na visão do filósofo finlandês, é a base fática sobre a qual a ordem legal do Estado se baseia.
Talvez essa tenha sido o voto mais inovador. Mas apenas talvez.
Visão de mundo de Maurício Dalri Timm do Valle
Qual é o papel do Estado e do seu trabalho como conselheiro no desenvolvimento da nação?
Para mim, o papel do conselheiro é a defesa da legalidade, maior representação da auto-imputação normativa.
Quem são as pessoas que te inspiram (pessoalmente e profissionalmente)?
Várias são as pessoas que me inspiram. Meus pais, sem dúvida por todos os ensinamentos. Minha esposa, por ser uma mulher forte. O grande professor José Roberto Vieira, meu orientador no mestrado e no doutorado.
Quais são os livros e referências que não saem de cima da sua mesa?
Não há um livro específico que não saia da minha mesa. O “Análisis Lógico y Derecho” e o “Sistemas Normativos”, de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, respectivamente, são livros que me influenciaram demais. Ultimamente, estou relendo o “As normas de competência tributária”, do Guilherme Broto Follador, um livro belíssimo que faz parte da coleção “Direito Tributário”, que é uma parceira entre a Editora Almedina e a Universidade Federal do Paraná.