Discriminação

Por que direitos trabalhistas podem ser garantias prioritárias para minorias

Historicamente um espaço de violência, o trabalho é onde pessoas pessoas LGBTQIA+ conseguem afirmação socioeconômica

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Juíza Bárbara Ferrito, do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região / Crédito: Erica França/Divulgação

Embora a Justiça tenha sido espaço de reconhecimentos em favor de populações marginalizadas – nos últimos anos, ao garantir direitos à população LGBTQIA+ quando não há lei própria, por exemplo –, ela ainda se mantém como espaço de pouca diversidade e, frequentemente, de reforço de desigualdades.

“Encontramos movimentos contraditórios no Poder Judiciário. A mesma corte que não permite o casamento homoafetivo em certo momento, aceita a mudança de nome e gênero nos documentos. É um horizonte heterogêneo”, disse Camila Silva Nicácio, professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), durante o Congresso Nacional dos Magistrados do Trabalho (Conamat) nesta semana.

Para quebrar essa lógica, há a urgência de incluir de forma proporcional representantes  de grupos alijados desse espaço bem como julgar levando em consideração fatores como gênero, raça, sexualidade e classe – para citar alguns. No caso dos direitos trabalhistas, com especial atenção, defendem Nicácio e outros especialistas.

“Não há outra possibilidade para a magistratura do que ser antirracista e ser feminista”, disse a juíza Bárbara Ferrito, do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT1), no Rio de Janeiro. Na prática, isso significaria a Justiça colocar em ação estratégias para julgar com perspectiva que leve em conta marcadores sociais.

Uma das principais ferramentas para isso é explorar o conceito de interseccionalidade, que começou a ser usado por intelectuais feministas negras nos Estados Unidos a partir da década de 1990. “Interseccionalidade é o reconhecimento de que cada pessoa é atravessada por marcadores sociais, que as colocam, muitas vezes, em posições únicas de opressão. As vulnerabilidades interagem entre si, são opressões simultâneas”, explicou.

Ferrito defende que essa seja uma prática dos agentes da Justiça: “Esse é um exercício contra a universalização das experiências. Quando não se pensa a partir de interseccionalidade, não se vê certos pontos de vista e não se percebe a profundidade das situações. Uma posição de privilégio não zera as vulnerabilidades, por exemplo”.

Nesse sentido, é relevante ainda que, além da sensibilidade dos julgadores, essa diversidade de experiências exista também nos quadros da Justiça. E sobretudo nas mais altas posições, em que há mais uniformidade – de homens e brancos, em sua maioria.

“Não ter negros e mulheres em proporção mostra um déficit democrático no Poder Judiciário. Isso significa que nós praticamos no nosso país uma subdemocracia; uma parcela da população tem uma cidadania diferenciada”, afirmou Ferrito.

A prática também revela o desafio de, além de fazer valer o que determina a lei expressamente, observar questões menos claras e que um tratamento neutro – isto é, com tratamento universal a todos, sem considerar as desigualdades – não necessariamente garantirá um resultado imparcial e justo.

Esse é o caso da garantia de direitos trabalhistas, em que, de forma neutra, não se falaria de proteções específicas para populações marginalizadas – com exceção de questões biológicas do sexo feminino. Porém, para muitas populações, esses são os principais direitos que elas têm dificuldade de acesso.

“O trabalho tem sido, historicamente, um espaço de violência para as pessoas LGBTQIA+, mas é por meio do trabalho que essas pessoas conseguem afirmação socioeconômica para viver mais livremente”, afirmou o professor Pedro Augusto Gravatá Nicoli, também da Faculdade de Direito da UFMG, autor de livros sobre sexualidade e Justiça. “Por isso, direitos trabalhistas podem ser direitos LGBTQIA+”.

Ele entende que o trabalho regulado é essencial a formas de ser LGBTQIA+, mas essa população encontra nesse ambiente estigmas e sofrimento. “A LGBTfobia pode se expressar em diferentes momentos do trabalho, que se torna muito relevante na experiência da discriminação”, explicou.

Nicoli exemplifica com o caso das ocupações de teleatendimento, frequentemente terceirizadas e com exposição a situações estressoras, que tem grupos LGBTQIA+ como parcela significativa de sua força de trabalho. “Ao mesmo tempo em que o setor acolhe essa população também o faz em uma posição de precariedade. E a precarização afeta os corpos preferenciais de sempre”, disse.

E se é preciso citar quais são esses corpos preferenciais, cabe mencionar as pessoas trans e travestis. Ter garantias de trabalho digno contribuiria para preservar a vida delas, conforme apontou a advogada e deputada estadual por Pernambuco Robeyoncé Lima (Psol).

“Estamos na luta pelos direitos mais básicos, desde o direito à vida até conseguir ir ao banheiro no trabalho”, disse. Um dos principais obstáculos é a própria inserção das pessoas trans no mercado formal de trabalho, além da própria permanência dele, diante de ambientes violentos e pouco inclusivos.

“Muitas mulheres trans e travestis não têm outra opção de trabalho fora da prostituição, que ainda tem o problema de não haver a regulamentação no Brasil, então elas envelhecem e ficam sem seguridade social”, apontou.

Ela defendeu que a Justiça exerce papel fundamental em assegurar que atitudes discriminatórias sejam vistas como tal: “A boa notícia é que há na Justiça muitas posições favoráveis, como a questão do uso dos banheiros por pessoas trans, que já é pacificada em muitas decisões na esfera do trabalho”.

A reportagem viajou a convite da organização do Conamat. O evento é realizado pelas Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) e Associação dos Magistrados do Trabalho (Amatra) da 6ª Região. 

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