Economia compartilhada

Para professora da Califórnia, aplicativos criaram ‘economia imoral de trabalho’

Veena Dubal defende que pagamento por tarefas, e não por horas, remonta a formas coloniais de organização laboral

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Professora da Universidade da Califórnia, Veena Dubal / Foto: Erica França

No mundo todo, países se debatem sobre como regular o trabalho em plataformas – frequentemente, de transporte e entregas, mas também de outros serviços. A discussão principal se dá sobre assumir que os trabalhadores são empregados dos aplicativos, portanto devem ter todos os direitos de contratado, ou se seriam autônomos, com menos obrigações às empresas.

O estado americano da Califórnia – onde está o Vale do Silício, berço de gigantes da tecnologias –, lida com uma nova legislação para esses casos, que pode dar lições sobre a regulação do trabalho mediado por aplicativos, inclusive para o Brasil.

Para a professora de Direito da Universidade da Califórnia, Veena Dubal, pesquisadora da relação entre tecnologia e trabalho precário, o atual conflito entre as novas relações de emprego e os direitos trabalhistas consolidados historicamente nada mais é do que uma repetição de padrões antigos de exploração.

Ainda, o serviço ligado a plataformas da economia compartilhada não diferiria tanto daquele feito no colonialismo, em que impérios exploravam trabalhadores vulneráveis em países subjugados. “Foi a possibilidade de produzir algodão barato a partir da exploração do trabalho nas colônias que permitiu a revolução industrial”, disse, em palestra na Conferência Nacional dos Magistrados do Trabalho (Conamat). “Hoje, os impérios são empresas privadas, com investidores estrangeiros”. Para ela, aplicativos criaram uma ‘economia imoral de trabalho, mascarada como liberdade, flexibilidade e oportunidade”.

De origem indiana, os avós de Dubal eram eles próprios esses trabalhadores vulneráveis no momento em que a Índia era dominada pelo Império Britânico, no início do século XX. Naquele momento, o pagamento não era por hora de trabalho, mas por produção, o que é hoje só é possível em casos específicos e com garantias delimitadas de pagamento de um salário mínimo na maior parte das principais economias.

“A economia do algodão era baseada no pagamento por peça; agora, o trabalho nas plataformas é dito que é feito por donos de negócio, sem hierarquia, em que elas podem trabalhar quando querem. Essa é uma narrativa sedutora, mas as empresas insistem em pagar pelas tarefas, e não pelo trabalho, transferindo a insegurança para os trabalhadores”, afirmou.

Nesse sentido, nesse tipo de trabalho, embora se diga que os trabalhadores têm autonomia e flexibilidade para trabalhar o quanto quiserem e fazer os próprios horários, haveria, na visão da pesquisadora, o controle invisível dos algoritmos ditando o contrário.

“A Uber, por exemplo, diz que permite que os motoristas dirijam quando querem, mas a empresa dá direcionamento aos motoristas, diz o quanto eles podem esperar por um passageiro, o máximo de tempo em que podem cancelar, as conversas que eles podem ter, para não ouvir música, quanto podem receber de gorjeta, que devem manter o carro limpo”, criticou.

Sobre o caso da Califórnia, ela contou que em maio de 2020 o procurador-geral do estado, Javier Becerra, anunciou que estava processando a Uber para que a empresa assegurasse direitos trabalhistas aos motoristas. A decisão no tribunal estadual veio meses depois, entendendo que a Uber era um empregador.

“Mas dias depois dessa decisão, após a mais cara campanha da história dos Estados Unidos, Uber e outras empresas da economia compartilhada obtiveram apoio para um referendo que acabou derrubando a decisão judicial pelo voto popular”, disse. Isso teria sido obtido por meio de publicidade com foco em negros, latinos e imigrantes, que compõem grande parte da força de trabalho nesse setor.

A proposta referendada criou uma categoria para o cálculo de salários baseada no “tempo de engajamento”, que seria baseado nos minutos em que o motorista é alocado para o serviço, o que não inclui tempo de espera entre uma corrida e outra ou intervalos para descanso. O pagamento acima do salário mínimo seria para essa parcela de tempo dedicado.

“O tempo engajado é completamente imprevisível, baseado não apenas na demanda dos consumidores mas na caixa-preta da decisão dos algoritmos”, disse Dubal. “E todos os benefícios, como assistência médica, só valem se os trabalhadores cumprirem um certo tempo. O que eu ouvi dos motoristas é que, ao chegar perto desse patamar, eles paravam de receber trabalho”, completou.

*A reportagem viajou a convite da organização do Congresso Nacional de Magistrados do Trabalho (Conamat). O evento é realizado pelas Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) e Associação dos Magistrados do Trabalho (Amatra) da 6ª Região. 

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