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Liminar do STF é bem-vista por governadores, mas aval à Sputnik depende de dados

Anvisa continua diligências para a obtenção de informações sobre a vacina e inspeção em fábricas na Rússia terá peso significativo

STF Vacina Sputnik V, da Rússia
Vacina Sputnik V, do Instituto Gamaleya da Rússia (Foto: Divulgação)

A falta de dados sobre a Sputnik V continua sendo um entrave para a liberação do uso da vacina russa para Covid-19 pela Anvisa. Apesar de governantes terem comemorado a liminar do STF que determina que a reguladora decida sobre o pedido de importação excepcional feito pelo governo do Maranhão até o dia 28 de abril, caso a busca por informações adicionais não seja bem-sucedida até a data, há risco de rejeição pela diretoria colegiada. 

Mesmo com aspectos regulatórios a serem superados, governadores e prefeitos têm apostado nessa via e contam com o êxito nos pedidos de importação feitos à Anvisa para acelerar a vacinação no Brasil. São esperadas entregas de 60 milhões de doses da vacina desenvolvida pelo Instituto Gamaleya, da Rússia. À parte, há um pedido de uso emergencial, feito pela farmacêutica União Química, para a liberação de 10 milhões de doses contratadas pelo Ministério da Saúde.

O governo federal também está interessado em negociar com o governo russo, motivo pelo qual o presidente da República, Jair Bolsonaro, telefonou para o presidente Vladimir Putin, na última semana. A Sputnik é vista pelo novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, como reforço necessário no planejamento nacional de imunização. 

O pedido feito pelo governo do Maranhão foi para que o STF obrigasse a Anvisa a autorizar a importação. Ainda que a liminar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski não tenha atendido ao pleito principal, a fixação do prazo de 30 dias, como prevê a Lei 14.124/2021, foi vista com bons olhos por gestores locais. Caso a agência não se manifeste, o uso ficará autorizado pelo Supremo sem o aval regulatório. Os governos do Ceará e do Amapá fizeram pedidos semelhantes ao tribunal e Piauí, Pará e Bahia também estudam seguir o mesmo caminho. 

Em entrevista ao JOTA, o governador do Maranhão, Flávio Dino, avaliou que a decisão do Supremo fortalece a relação com o Fundo Soberano da Rússia, responsável pela venda a estados do Nordeste e da Amazônia. 

“Agora nós temos uma data. Isso é o mais importante. Não é ficar no limbo, numa coisa insolúvel e sem horizonte concreto, até para dar segurança jurídica aos próprios vendedores porque como tem uma super demanda, o vendedor pode se desanimar. Se ele achar que não vai conseguir vender, ele vende para outro”, afirmou.

A decisão final da diretoria colegiada da Anvisa, composta por cinco integrantes, levará em consideração os pareceres das áreas técnicas de Medicamentos, de Monitoramento e de Fiscalização. Por enquanto, segundo relatos feitos à reportagem, nenhuma delas possui informações suficientes para a recomendação da vacina Sputnik.

Brecha na regulamentação

Nota divulgada pela agência no dia 7 de abril informa que o documento apresentado para atestar o registro da vacina russa foi enviado sem o relatório técnico, previsto na legislação vigente, e iniciou diligências junto aos pleiteantes e às autoridades internacionais, incluindo a Organização Mundial da Saúde (OMS). 

O imbróglio que levou o caso ao Supremo está relacionado ao texto da norma da Anvisa que regulamenta a Lei 14.124/2021. A Resolução de Diretoria Colegiada 476/2021 trata de forma distinta as vacinas que possuem registro concedido por autoridade estrangeira (arts.10 a 14) e aquelas que possuem apenas autorização para uso emergencial (arts.15 a 17). 

A legislação, na qual os dois tipos de autorização são colocados de igual forma, faz menção ao envio de relatório técnico produzido pela reguladora responsável pela liberação fora do país para a comprovação de qualidade, segurança e eficácia de acordo com padrões internacionais (art. 16, § 3º). 

Para vacinas registradas, a norma diz: “Os produtos importados devem ter qualidade, segurança e eficácia atestadas por meio da comprovação do registro pelas autoridades sanitárias internacionais definidas” (art. 10, § 4º). 

Em relação ao prazo de resposta, a lei diz que a Anvisa terá até 30 dias para tomar uma decisão em caso de ausência do documento (art.16, § 4º). A resolução, por sua vez, estabelece que a agência tem prerrogativa para solicitar informações adicionais sobre segurança, qualidade e eficácia da vacina objeto do pedido de importação (art. 12, § 3º). Enquanto são feitas diligências, o prazo máximo de sete dias úteis deixa de correr (art. 12, § 4º).

Ao decidir sobre o pedido feito pelo Maranhão, Lewandowski afirmou que a agência “relativizou a necessidade da apresentação de relatório técnico”. 

Na avaliação do ministro do STF, com a publicação da norma, a Anvisa permitiu que o registro concedido por autoridade estrangeira seja considerado suficiente para a comprovação de qualidade, segurança e eficácia da vacina. “O diploma regulamentador, ao que tudo indica, acabou se contrapondo ao disposto nos §§ 3º e 4º do art. 16 da Lei 14.124/2021″, escreveu.

Na ação, a Anvisa informou que deixou de elencar o relatório técnico entre os documentos obrigatórios para o pedido de importação de vacina com registro no exterior porque a documentação costuma ser pública. A agência relatou, ainda, a dificuldade de obtenção de dados no caso da Sputnik V, mesmo após fazer contatos com autoridades estrangeiras e o início de diligências. 

Na interpretação de Flávio Dino, ao publicar a resolução, a Anvisa criou uma espécie de equivalência entre o registro concedido pelas autoridades reguladoras elencadas, incluindo a da Rússia. 

“Se tem registro, a resolução da Anvisa criou uma espécie de presunção em relação aos três atributos: eficácia, segurança e qualidade. Isso está escrito na resolução. O registro prova segurança, qualidade e eficácia”, afirmou.

Padrão Anvisa

Na última semana, integrantes da agência pediram a colaboração de governadores para obtenção das informações consideradas necessárias para a análise. O diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, afirmou em entrevista ao JOTA no dia 7 de abril que a votação dependia do envio de dados complementares pelos governos locais, mas indicou que isso ocorreria em até 30 dias a partir da data do protocolo.  

A reguladora tem feito uma busca ativa por informações desde o recebimento do primeiro pedido de uso emergencial do imunizante feito pela farmacêutica União Química, em janeiro deste ano. Diante da dificuldade, a nível mundial, a agência se movimentou para realizar uma inspeção para a certificação das fábricas da cadeia produtiva da vacina russa. 

Considerando a primeira votação para a decisão sobre importação excepcional de imunizantes para Covid-19, que resultou na negativa para o pedido de importação de 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin, a verificação das condições das plantas fabris por inspetores da Anvisa terá um peso significativo. No caso da Covaxin, a inspeção de boas práticas que reprovou as condições da planta da farmacêutica Bharat Biotech, em Telangana, foi decisiva para o resultado.

A apresentação da certificação não é obrigatória para o pedido de importação excepcional, mas o resultado será considerado pela área técnica de Fiscalização, que ainda não obteve as informações esperadas por outros meios. Na prática, indo até a Rússia, a Anvisa pode encontrar informações que melhorem a situação de falta de dados da vacina, mas que sozinhas talvez sejam insuficientes para uma autorização, ou pode encontrar inconsistências que podem inviabilizar a liberação. 

Até a última semana, essa inspeção seria iniciada nesta quinta-feira (15/4), mas a pedido do Fundo Soberano Russo houve adiamento da viagem para a próxima semana. Neste momento, a previsão é de verificação na empresa que produz matéria-prima e na empresa que embala o produto, concomitantemente, do dia 19 ao dia 23 de abril.

Para o governador do Maranhão, tanto o relatório técnico quanto as inspeções nas fábricas russas são dispensáveis para a autorização do uso da vacina no Brasil.

“Se a Anvisa considera que tem de fazer diligências adicionais, que o faça, agora o faça dentro de um prazo, que é o que a decisão [do STF] estabelece. Se eles querem ir, boa viagem”, disse.

De acordo com Flavio Dino, o governo do estado vai aguardar até 28 de abril. Caso a Anvisa não se manifeste, vai agir para concretizar a importação no dia seguinte. Ele compartilha da visão expressa por alguns governadores, prefeitos e parlamentares de que a agência tem colocado entraves burocráticos no caso da Sputnik.

“Acho que há uma aparentemente má vontade com essa vacina Sputnik e não há nenhuma razão objetiva para tanto porque é uma vacina que vem sendo largamente utilizada, em vários países do mundo”, afirmou.

As autorizações concedidas pelos outros países, contudo, não tiveram os mesmos critérios utilizados pela Anvisa para a liberação de vacinas para Covid-19 no Brasil. 

Para solicitar a importação excepcional e distribuição da vacina russa Sputnik V no Brasil, governadores apresentaram à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) uma tradução juramentada do registro emitido pela Rússia em agosto de 2020. 

A tradução, que foi verificada pelo JOTA, foi finalizada por um profissional matriculado na Junta Comercial do Estado de São Paulo, no dia 20 de março. O tradutor certifica ter tido acesso a uma cópia do documento original em duas folhas no idioma russo reconhecido como “Registro Estatal de Medicamento”. Em seis páginas, há informações básicas sobre a composição da vacina e seus locais de fabricação.

A reportagem também teve acesso ao documento enviado para a comprovação da liberação de uso na Índia, em inglês. Em termos de conteúdo, a decisão da autoridade indiana é semelhante à da Rússia, com poucas informações.

Quando a Anvisa negou o pedido de importação excepcional da Covaxin, no dia 31 de março, o parecer da área técnica de Medicamentos foi no sentido de impossibilidade de realização da análise sobre qualidade, segurança e eficácia da vacina. 

Em coletiva de imprensa realizada após a decisão da diretoria, o gerente-geral de Medicamentos da Anvisa, Gustavo Mendes, afirmou que a expectativa da área técnica era de recebimento de um conteúdo semelhante ao produzido para as autorizações concedidas no Brasil. 

“A gente esperava informações detalhadas sobre os estudos conduzidos, dados de segurança observados, informações sobre quais foram os fundamentos que levaram a agência indiana a conceder o uso emergencial”, explicou.

As análises da Anvisa para a aprovação do uso emergencial das vacinas CoronaVac, da AstraZeneca e da Janssen, assim como para o registro da vacina Comirnaty, da Pfizer em parceria com a BioNTech, e da Fiocruz, estão disponíveis no site da agência

Governadores chegaram a prometer publicamente o envio de informações da Argentina para reforçar os dossiês de pedidos de importação excepcional, mas essa tentativa já tinha sido feita pela Anvisa. 

O parecer para a liberação da Sputnik V pelo país vizinho é público e não traz dados detalhados sobre segurança, eficácia e qualidade da vacina. A decisão é do Ministério da Saúde, com base em um parecer da agência reguladora. 

Apesar de a Argentina ser membro do Esquema de Cooperação em Inspeção Farmacêutica (PIC/s, na sigla em inglês), assim como a Anvisa, em reuniões realizadas entre a autoridade regulatória argentina e a brasileira, constatou-se que não houve inspeção de boas práticas de fabricação na Rússia, mas apenas uma visita sem caráter técnico, na qual os padrões internacionais de verificação foram descumpridos.

O registro da Sputnik V, a primeira vacina contra a Covid-19 autorizada no mundo, em agosto de 2021, foi concedido na Rússia antes da realização de uma fase 3 de estudos clínicos, quando há testes em larga escala com voluntários humanos. A revista científica The Lancet publicou, no dia 2 de fevereiro, artigo que relata a eficácia de 91,6% do imunizante.

A vacina foi aceita para submissão contínua pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês), no mês de fevereiro deste ano. A reguladora planeja realizar uma inspeção de boas práticas clínicas para avaliar se a realização dos testes seguiu padrões internacionais.

No Brasil, os registros de vacinas para Covid-19 foram concedidos à Pfizer, em fevereiro de 2021, e à Fiocruz, em março. Uma das exigências, estabelecida em regulamentação, é a apresentação dos dados detalhados dos estudos clínicos em fase 3. Nos dois casos, houve submissão contínua de informações na Anvisa e voluntários foram testados no país. 

Doses esperadas da Sputnik

A expectativa dos governadores é de que as primeiras doses cheguem ainda no mês de abril. Em março, os integrantes do Consórcio de Governadores do Nordeste firmaram um contrato com o Fundo Soberano Russo para aquisição de 37 milhões de doses. 

Na época, com Eduardo Pazuello à frente da pasta, o Ministério da Saúde informou que assumiria o pagamento e a distribuição da vacina para todos os estados e ao Distrito Federal. Depois disso, ficou pendente a assinatura de um termo de compromisso para formalizar esse processo. O novo ministro da Saúde,  Marcelo Queiroga, ainda não indicou qual será o trâmite. 

O planejamento mensal informado pelos governadores do Nordeste com as doses da Sputnik V é o seguinte:

  • Abril: 2 milhões 
  • Maio: 5 milhões 
  • Junho: 10 milhões 
  • Julho: 20 milhões

A Anvisa divulgou a quantidade solicitada por cada gestor local, totalizando 30.053.800 de doses: 

  • Acre: 656.340 doses (pedido em 29/3)
  • Alagoas: não informou o número (pedido em 8/4)
  • Amapá: 450.000 doses  (pedido em 30/4)
  • Bahia: 9.770.280 de doses (pedido em 26/3)
  • Ceará: 5.581.610 de doses (pedido em 30/3)
  • Maranhão: 4.582.860 de doses (pedido em 29/3)
  • Maricá (RJ): não informou o número (pedido em 4/4)
  • Mato Grosso: 1.201.500 de doses (pedido em 29/3) 
  • Pará: não informou o número (pedido em 5/04) 
  • Pernambuco: 4.000.000 de doses (pedido em 31/3) 
  • Piauí: 2.173.610 de doses (pedido em 30/3)
  • Rio Grande do Norte: 300.010 doses (pedido em 29/3) 
  • Rondônia: 937.590 doses (pedido em 01/04)
  • Sergipe: 400.000 doses (pedido em 30/3)

Existe ainda uma tentativa de aquisição coordenada pela Frente Nacional de Prefeitos. São negociadas 5 milhões de doses que podem chegar entre maio e junho e outras 25 milhões até o fim do ano. Os primeiros embarques podem ser iniciados três semanas após a assinatura do contrato, previsto para ser formalizado ainda em abril. 

A intenção de compra da Sputnik foi apresentada pelo prefeito de Florianópolis, Gean Loureiro (DEM-SC), que é presidente do Consórcio Conectar, a representantes do Fundo Soberano Russo na terça-feira. O democrata irá se reunir com representantes do Ministério da Saúde nesta quinta-feira (15/4) para discutir a forma de aquisição e distribuição das vacinas.

Quase 2 mil municípios, que representam o equivalente a dois terços da população brasileira, aderiram ao consórcio. A iniciativa recebeu a doação de R$ 4 milhões vindos da iniciativa privada para aquisição de vacinas, medicamentos e insumos.

Outra negociação em curso com o Fundo Soberano Russo envolve 28 milhões de doses de Sputnik que seriam distribuídas a sete unidades da Federação que integram o Consórcio Brasil Central (BrC): Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão e Rondônia. A intenção é que cada integrante receba ao menos 2 milhões de doses, mas o calendário ainda não foi informado. Ainda não há data para o contrato ser formalizado.

Além dos pedidos de importação excepcional feitos por gestores locais, a Anvisa analisa um novo pedido de uso emergencial para 10 milhões de doses contratadas pelo Ministério da Saúde feito pela União Química no dia 26 de março. Em 31 de março, a empresa enviou uma complementação, incluindo a lista de todos os locais onde a vacina está ou será fabricada, mas pendências relacionadas a outros aspectos não foram sanadas.