Efeitos da pandemia

Com telemedicina e healthtechs, nova economia se firma no atendimento de saúde

Setor segue movimento por serviços digitais personalizados e de baixo custo

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Leito para atender pacientes de Covid-19 em Recife, Pernambuco / Crédito: Heudes Regis SEI

A flexibilidade da atenção de saúde foi testada na pandemia, que colocou à prova a demanda por telemedicina e digitalização de procedimentos – a reivindicação era pré-existente, mas estava cercada por questionamentos sobre necessidade versus confiabilidade. O período serviu para testar modelos e, ao mesmo tempo, acabou consolidando o caminho da nova economia na saúde.

Esse enraizamento da escolha e até priorização de serviços oferecidos digitalmente e nos moldes dessa tendência econômica – como personalização, foco na experiência do usuário e custos mais acessíveis – foi observado em diferentes setores desde o início da pandemia. Consumidores que não compravam online aderiram ao e-commerce e quem nunca teve conta bancária passou a deixar seu dinheiro em aplicativos.

A transição comportamental não passou ao largo da saúde. Empresas da nova economia do setor, as healthtechs, se firmaram, especialmente as que apostavam na digitalização do atendimento de saúde ou que já previam um mundo em que o usuário quer se ver longe do ambiente de clínicas e hospitais.

A urgência do momento contribuiu para elas recebessem aportes. Há, atualmente, cerca de 900 healthtechs no Brasil, que receberam US$ 183,9 milhões em investimentos no primeiro semestre deste ano, ultrapassando os anos de 2020 e 2019, que juntos somaram US$ 177,6 milhões. Os números são do centro de inovação Distrito, divulgados em julho no jornal Estado de S. Paulo.

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“Até o ano passado, tínhamos negócios inovando, mas eram mais serviços digitais para outras estruturas. A telemedicina foi o principal definidor para fortalecer esse processo de mais serviços digitais, como tem acontecido no setor financeiro”, diz Bruno Pina, diretor de inovação da Distrito. Ex-diretor da Astrazeneca, ele próprio viu essa transformação em diferentes pontas do setor de saúde.

No caso da medicina online, a teleconsulta era permitida e usada em algumas situações há mais de uma década, porém de maneira quase extraordinária. Logo no início da pandemia, em março do ano passado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) enviou ofício ao Ministério da Saúde ampliando as possibilidade de uso da telemedicina na pandemia. O mais provável é que não se volte atrás, mesmo após o fim desse período.

Essa mudança foi um divisor sobretudo ao equacionar, em certa medida, impasse em relação ao modelo. Em fevereiro de 2019, o CFM havia publicado a resolução 2.227/2018, definindo e disciplinando a telemedicina; dias depois, após manifestações de entidades de médicos criticando a norma, os conselheiros revogaram o texto.

Em um ano, contando desde abril de 2020, cerca de 2,8 milhões de atendimentos do tipo em diferentes modalidades foram realizados no Brasil, sendo que nove em cada dez foram finalizados via teleconsulta, sem demandar idas a estruturas físicas, segundo levantamento da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge).

Na Alice, healthtech que promove gestão de saúde e funciona como um plano individual regulado pela Agência Nacional de Saúde (ANS), o atendimento é prioritariamente digital com profissionais da própria rede. Anunciada em junho de 2020, a empresa tem como perfil principal de usuários pessoas de 20 a 40 anos que, por serem profissionais liberais ou não terem carteira assinada, tinham dificuldade de contratar plano de saúde.

“Reduzir custos da saúde passa por ampliar a digitalização no que for possível. Com isso, no futuro, o que esperamos é seja possível oferecer acesso a especialistas dos grandes centros a quem mora em regiões mais afastadas no Brasil”, afirma André Florence, CEO e co-fundador da healthtech. Na esteira da pandemia, a ideia, além de atendimento, é promover o acompanhamento muito de perto, de modo a reduzir comorbidades e custos.

A ambição de, por meio da tecnologia, ampliar o acesso à saúde interessa quando olhamos a distribuição da oferta de atendimento no mapa brasileiro. De acordo com o anuário Demografia Médica de 2020, produzido pelo CFM e pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, cerca de 60% dos médicos se concentram em apenas 39 municípios (dentre os 5.570 que compõem o país).

Além disso, enquanto nas capitais a taxa de médicos por mil habitantes é de 5,65, esse número cai para apenas 1,49 em outras regiões. Democratizar a saúde passa por, entre outros elementos, cobrir essa lacuna regional e financeira de acesso a atendimentos de saúde.

“É possível o setor privado contribuir, como acontece há alguns anos com empresas que souberam entender como oferecer saúde de qualidade a preços baixos. Porém, poderíamos pensar em como instituições públicas de excelência expandem sua atenção para fora do entorno”, avalia Pina. Nesse sentido, o Hospital das Clínicas de São Paulo, maior complexo hospital da América Latina, tem desde 2018 o InovaHC, em parceria com a Distrito e abrigando startups de saúde. A ideia é unir pesquisa científica com inovação.

Evidentemente, a expansão e o sucesso das soluções de saúde à distância variam a depender da especialidade e demandas dos tratamentos. O contexto pandêmico, que reverberou em problemas de saúde mental, somado à pouca exigência de presença física para atenção psicológica foi terreno fértil para que empresas digitais atuantes na área crescessem. Nesse caso, o Conselho Federal de Psicologia já permitia o modelo virtual desde 2012

De Belo Horizonte, a Psicologia Viva, que oferece atendimento psicológico online, tem 10 milhões de pacientes cadastrados e cerca de 50 mil profissionais. A pandemia acelerou a empresa: em abril de 2020, atingiu o volume de atendimentos esperado para meses adiante, conforme noticiou o jornal mineiro Diário do Comércio. Contratos corporativos aumentaram e a startup recebeu aporte de fundo da Eurofarma para soluções de saúde, até neste ano se unir com outra empresa do setor, a Conexa Saúde.

Em áreas médicas dependentes de diagnósticos mais complexos, as soluções exigem modelos híbridos do físico com o virtual. A empresa Beep Saúde começou no Rio de Janeiro oferecendo aplicação de vacinas em domicílio, e passou para outros serviços, como a coleta de exames laboratoriais. Também chegou a novos estados e hoje diz atender em casa em mais de cem cidades, além de aceitar planos de saúde.

As mudanças desafiam pacientes e profissionais de saúde de especialidades mais tradicionais. Em abril de 2020, logo após a nova normatização da teleconsulta pelo CFM, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) ouviu 340 ginecologistas sobre o tema. Dentre eles, 90% já haviam utilizado a telemedicina. Porém, na maior parte das vezes o atendimento não era realizado por plataformas específicas.
Aprimorar o acompanhamento de gestantes, por meio da digitalização do atendimento de saúde da mulher, é o objetivo da clínica Theia, baseada em São Paulo. “O digital não elimina a necessidade do cuidado presencial, mas ele complementa e potencializa, seja pelas consultas por telemedicina e monitoramento remoto de dados seja por ser um canal de informação e acolhimento”, diz a cofundadora Flavia Deutsch Gotfryd.
Fundada e liderada por mulheres, a empresa presta atendimentos presenciais em São Paulo e online no restante do Brasil. Neste ano, viu a base de usuárias crescer cinco vezes em relação ao ano passado. E aposta no diferencial de, além de equipe multidisciplinar disponível, garantir que cada paciente tenha acompanhamento de um profissional pessoal que a “pega pela mão”, como apresentam.

Ao mesmo tempo que os atendimentos presenciais tendem a não ser mais a regra, o ambiente de trabalho físico também deve mudar. Desde junho de 2020, a Livance, startup de consultórios compartilhados para profissionais da saúde que atua em São Paulo e Campinas, passou a ter ritmo de crescimento mais forte do que nos níveis pré-pandemia. A tendência veio com a chegada de novos profissionais que fecharam consultórios fixos e da busca por atender longe dos hospitais.

A empresa, fundada em 2017, funciona em esquema de assinatura por profissionais de saúde, que, por R$ 236 mensais, tem acesso à plataforma de agendamentos, site próprio, além de números de telefone e WhatsApp atendidos por secretárias da startup que identificam o profissional.

É possível, com o contrato e pagamento por demanda, que o profissional atenda presencialmente em qualquer uma das nove unidades espalhadas pela capital – em setembro, outra será inaugurada na região do Morumbi. “Para médicos, que geralmente atuam em diferentes hospitais, ter a possibilidade de atender onde é mais perto de onde ele está, facilitando a mobilidade, é um fator essencial no valor que oferecemos”, diz Claudio Mifano, sócio-fundador da empresa.

Durante a pandemia, cresceu também o uso das cabines para teleconsulta, disponibilizadas nas unidades, e dos agendamentos para consultas online, que podem ser feitas onde o profissional estiver. Assim, se firma a proposta de assegurar infraestrutura física e serviços digitais no mesmo modelo.