Regulação

Sinuca de bico: efeitos da pandemia de Covid-19 no microcosmo dos contratos

É plausível supor que será tarefa dura indicar qual dos contratantes é a parte mais afetada pelo que está ocorrendo

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Crédito: Pixabay

Muitos, e em todas as línguas, têm sido os adjetivos usados com referência à pandemia da Covid-19, no esforço de ressaltar o seu caráter único. São tentativas de definição que convergem para qualificá-la como uma anormal anormalidade.

A pandemia espanta e incute pavor, seja por sua abrangência (todos os continentes), seja pela rapidez com que o vírus e as severas medidas de contenção e isolamento avançam pelo mundo, seja pela gravidade de suas consequências (mortes, estresse do sistema de saúde, paralisação inédita da atividade econômica no planeta). Quase que literalmente, todo o mundo está ameaçado e parado. Tem razão quem disser que nunca antes na história da humanidade algo assim aconteceu.

Um aspecto notável que evidencia a excepcionalidade desse episódio foi colhido por André Esteves, em entrevista ao site Migalhas[1]. O Senior Partner do BTG-Pactual – que jurista não é, mas que também entende de crises por ofício – fez notar que, diferentemente de outros acontecimentos que se abateram sobre nós (como a débâcle de 2008, por exemplo), no caso da pandemia da Covid-19 não temos um “salvador” à vista, alguém ou alguma nação que, não tendo sido afetada severamente pelo infortúnio, disponha de condições para funcionar como o motor da retomada.

Guardemos por um instante a nota de André Esteves e vamos agora aterrissar essas observações gerais e abstratas no microcosmo de contratos de que o mundo e o Brasil também são feitos.

Do ponto de vista econômico – senão de saúde –, todos nós fomos, estamos sendo e seremos afetados pela pandemia, de modo rápido e grave.

E, de consequência, todos os nossos negócios jurídicos, dos mais singelos aos mais sofisticados, de direito público e de direito privado, foram, estão sendo e serão impactados.

Temos agora o vírus e teremos também o que vem na sua esteira, a complexa cadeia causal tão ao gosto dos causídicos: medidas estatais gerais e concretas de paralisação ou redução de atividades, atos ou omissões de parceiros de negócios, atos de terceiros etc. todos devidamente classificados em “causa remota”, “causa próxima”, “causa intermediária”, “causa acessória”, “causa provável” etc. Enfim, pelas mais diversas razões e nas mais diversas circunstâncias, sobrou para todo mundo e para todos os contratos.

E sobrou com um detalhe: ressalvadas exceções, é plausível supor que será tarefa dura indicar, com precisão e certeza, qual dos contratantes é a parte mais afetada pelo que está ocorrendo.

É quase como se tivéssemos que assumir uma presunção iuris tantum de que somos todos companheiros de desdita, de que estamos todos em pé de igualdade nesta situação que se afigura como uma verdadeira banalização de uma espécie de “Onerosidade Excessiva Universal e Transitiva”. (É certo que talvez se possa dizer, neste ou naquele específico contrato, que esta ou aquela parte está em pior situação. Mas até onde vai uma análise assim fragmentada?)

Nesse cenário tão pouco animador, são lançadas, como pedidos de socorro, notificações, comunicações e correspondências declarando genéricas ocorrências de “caso fortuito”, “força maior” e quejandos, tudo para “prevenir direitos” (está muito cedo para sofisticações que, depois, serão interminavelmente discutidas por juristas e tribunais).

Teorias velhas de mais de século e outras mais novas são invocadas para explicar o que se passa com o contrato. Teoria da Imprevisão, Quebra da Base do Negócio, Fato do Príncipe, Onerosidade Excessiva, Hardship, Frustration, até a vetusta Pressuposição de Windscheid, entre outras tantas teses, são arregimentadas e ordenadas (às vezes de modo meio aleatório, na pressa de convocar o batalhão pego de surpresa na calada da noite) para tecer uma narrativa que ainda não tem enredo definido, e muito menos capítulo final.

Matrizes de risco contratual são esquadrinhadas e Teorias da Álea são interrogadas para que apontem, inclusive sob tortura, quem será o infeliz responsável por segurar a batata quente que está sendo assada no interior do contrato. Tudo isso para se sacar, ao final, o remédio (ou arma) que será usado: recompor, revisando, o contrato ou terminá-lo (de preferência, à custa da outra parte).

Essas condutas são absolutamente legítimas e bastante previsíveis (eis aí, enfim, algo de previsível em todo este imbróglio). As partes, tendo em mira os seus interesses, estão pondo para funcionar todo o arsenal disponibilizado pelo Direito para lidar com as anormalidades que podem advir durante o curso de um contrato. Alistam os normais mecanismos para lidar com as normais anormalidades.

Retorna, agora, a advertência de André Esteves: o problema é que esses engenhos – à semelhança dos remédios usuais ministrados para as crises usuais – foram concebidos para guerras convencionais, em que se assume que uma das partes está “pior” ou “melhor” do que a outra, ou em que uma delas “ganha muito” com a desgraça da outra, ou que “se aproveita” da situação da outra.

Mas, e quando essa não é uma premissa da qual se possa razoavelmente partir? Aqui o epíteto de anormal anormalidade ganha sentido jurídico. Parece ser possível antever que esses tradicionais mecanismos ou não vão funcionar bem, ou simplesmente não vão funcionar.

Com efeito, a onerosidade excessiva ameaça cortar para os dois lados, e com gume afiado. Nesse cenário, como fazer com a possibilidade de uma revisão que, embora requerida e objetivamente adequada sob a perspectiva tradicional, pode produzir uma onerosidade excessiva “ao contrário”?

 


[1] https://www.migalhas.com.br/quentes/322893/crise-do-coronavirus-andre-esteves-aborda-riscos-e-desafios.

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