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Regulação

Lei dos aplicativos de mobilidade urbana e o bode regulatório

Lei nasceu anacrônica e com chances de ter sua constitucionalidade questionada por violação de competência federal e ofensa à livre iniciativa e à concorrência

Beto Vasconcelos, Marina Lacerda e Silva
31/07/2018|11:08
Atualizado em 31/07/2018 às 18:49
Crédito: Pixabay

A Lei n. 13.640, de 26 de março de 2018 – ou Lei dos aplicativos de mobilidade urbana – ao tentar resolver a questão do transporte oferecido por aplicativos como 99, Uber e Cabify, acabou por colocar na sala um imenso bode regulatório. Um bode que possibilitará a existência de mais de 5.500 diferentes regulamentações sobre a atividade, ao permitir que cada Município implemente suas regras para a atividade.

A Lei nasceu anacrônica e com consideráveis chances de ter sua constitucionalidade questionada por violação de competências da União dos Estados e ofensa à livre iniciativa e à concorrência.

Em 2014, os aplicativos destinados ao transporte privado individual de passageiros iniciaram suas operações no Brasil. A isso se seguiu forte tensionamento por parte dos taxistas, que alegavam concorrência desleal e ilegalidade do serviço, por ausência de regulamentação e exercício ilegal da profissão de taxista. Em resposta, as desenvolvedoras dos aplicativos argumentavam tratar-se de empresas de tecnologia, e não de transporte, tendo por finalidade facilitar a prestação de transporte privado individual, e não público individual. Qualquer que fosse o fundamento, entendiam não caber a regulamentação específica da atividade de taxista.

Em 2015, o debate chegou ao Judiciário de São Paulo, que determinou a suspensão de aplicativo de transportes, por não haver autorização ou permissão do Poder Público competente. Em meio ao debate, a Prefeitura de São Paulo regulamentou, por Decreto, a atividade, em medida inovadora entre os Municípios no Brasil.

Em 2017, a questão chegou ao Supremo Tribunal Federal, tanto por meio de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 449, quanto mediante Recurso Extraordinário n. 1054110, da Câmara Municipal de São Paulo face à decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que declarou a inconstitucionalidade da mencionada legislação proibitória.

Na tentativa de se antecipar à decisão do STF, o Congresso Nacional passou a discutir a matéria. Durante o intenso debate, não sem antes ferrenhas tentativas, foram afastadas a hipótese de proibição da atividade e as restrições que poderiam inviabilizar por completo o modelo. O resultado do debate parlamentar foi a Lei n. 13.640, 26 de março de 2018, que regulamenta o transporte remunerado privado individual de passageiros, em alteração à chamada Política Nacional de Mobilidade Urbana – PNMU (Lei n. 12.587, de 2012).

A primeira inconstitucionalidade desponta quando a Lei dispõe que “compete exclusivamente aos Municípios e ao Distrito Federal regulamentar e fiscalizar o transporte remunerado privado individual de passageiros (...) no âmbito de seus territórios” (redação dada ao art. 11-A, da Lei n. 12.587, de 2012).

A Constituição Federal prevê, em seu art. 22, incisos IX e XI, que compete privativamente à União legislar sobre diretrizes da política nacional de transportes e sobre trânsito e transporte. A única exceção a tal restrição está contida no parágrafo único deste artigo, que prevê que lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas dessas matérias.

A Lei n. 13.640/18 trata de regulamentação de transporte e deveria, portanto, seguir as diretrizes constitucionalmente previstas. Isto é, poderia prever as normas do transporte remunerado individual privado exaustivamente ou, se consistindo em lei complementar, poderia conferir competência aos Estados para questões específicas cabíveis. Todavia, não foi o que ocorreu. A lei ordinária conferiu aos Municípios e ao DF competência indelegável da União, violando frontalmente a Constituição.

A previsão de que somente será autorizado ao motorista prestar o serviço se conduzir veículo que atenda aos requisitos de idade máxima e às características exigidas pela autoridade de trânsito e pelo poder público municipal e do Distrito Federal (art. 11-B, II, da Lei n. 12.587, de 2012) é um exemplo evidente da questão que se coloca. Deveria a União ter previsto os requisitos necessários, cabendo ao Município apenas as regulamentações referentes à fiscalização. Do contrário, admite-se que a instância municipal legisle sobre transporte, contrariando o texto constitucional.

Há um segundo aspecto preocupante do arranjo encontrado pelo Congresso. A Lei define o transporte remunerado privado individual de passageiros como: “serviço remunerado de transporte de passageiros, não aberto ao público, para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede” (art. 4º, X, da Lei n. 12.587, de 2012).

Tenta disciplinar, portanto, não somente matéria relacionada a transporte, mas também sobre tecnologia e inovação, prevista no inciso IX do art. 24 da Constituição Federal como competência legislativa concorrente da União, Estados e Distrito Federal. Abriu, de certa maneira, janela ampla demais para a atuação legiferante dos Municípios sobre atividade desenvolvidas por meio de aplicativos ou outras plataformas.

Caminhar em avenida permissiva tão larga, seria admitir a pulverização da regulação de matéria sensível, permitindo disciplinas conflitantes entre Municípios, inclusive conurbados. Previsões dessa natureza são desincentivos à inovação prevista e protegida pela Constituição Federal e ignoram a escala nacional na qual novas tecnologias se consolidam e se justificam, inclusive com relação ao seu papel de desenvolvimento socioeconômico.

É bem verdade que o inciso V, do art. 30 da Constituição Federal, atribui aos Municípios competência para “organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”.

No entanto, o transporte remunerado privado individual de passageiros não é serviço público de interesse local ou de caráter essencial. Ao contrário, é, por natureza, um serviço privado, como indica o próprio nome. É privado não somente porque é preciso cadastro prévio dos usuários em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede. É privado porque a lei assim o define. E o faz porque para o transporte individual de âmbito público, o interesse é distinto, assim como a regulação estatal. Não há somente obrigações diferentes, como aquelas exigidas para a prestação de um serviço universal, mas também benefícios e incentivos diversos, como são as isenções fiscais e corredores exclusivos.

Cabe lembrar, ainda, que a atividade de transporte privado individual de passageiros também não está reservada à esfera de monopólio do Estado, como seria o caso dos serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, monopólios de exploração da União, passíveis de concessão à iniciativa privada.

Aplica-se ao setor, assim, a plenitude dos princípios da liberdade de trabalho, livre iniciativa, livre concorrência e da não submissão à autorização do Estado, incluído aí os entes municipais.

Tratando-se de relações jurídicas individuais de transporte, o Estado deve dispensar respeito à atividade econômica previsto no art. 170, parágrafo único, da Constituição Federal. A isso não corresponde a exigência de pertinência e proporcionalidade na regulamentação imposta, para que não haja esvaziamento da livre iniciativa, a partir da inibição de criações tecnológicas.

É claro que o art. 170 prevê exceções nas quais o Poder Público competente poderia disciplinar, ainda que em reduzida carga regulatória, atividades decorrentes de modelos tecnológicos disruptivos privados. Mas não se vê, no caso, qualquer justificativa razoável para o avanço da competência municipal, para além das balizas já estabelecidas quanto ao modelo de transporte privado.

A Lei ainda chega a caracterizar como transporte ilegal de passageiros situações de não observância aos requisitos estabelecidos pelos Municípios e o Distrito Federal (art. 11-B, parágrafo único). E mais! Cria situação anômala, no caso de não regulamentação pelo Município, pois as condições previstas na Lei para a autorização da atividade aos motoristas cabem apenas aos “Municípios que optarem pela sua regulamentação” (art. 11-B, caput). Nesse sentido, o que valeria naqueles Municípios que optarem por “não regulamentar”? A proibição inconstitucional da atividade?

É relevante que se reveja a recente Lei n. 13.640, de março deste ano. Ela carrega os vícios de um processo legislativo conturbado, social e economicamente irracional. Parte do Congresso pretendeu impor restrições efetivas à consolidação da tecnologia e seus serviços inerentes, e não, propriamente, buscar sua melhor regulação.

A Lei dos aplicativos de mobilidade prepara terreno para um problema permanente e multiplicado pelo número de Municípios existentes no país, atentando contra a constituição, o interesse social, a mobilidade urbana e a inovação.logo-jota

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