Análise

A importância da regulação em tempos de pandemia

Impactos da crise são abrangentes, mas as soluções devem ser setoriais, especializadas e processualizadas

Crédito: Pixabay

Em 22 de maio de 2020, o Supremo Tribunal Federal – STF se pronunciou a propósito da constitucionalidade da Medida Provisória n°966/2020, que disciplina a responsabilidade civil e administrativa dos agentes públicos nos casos de “erro grosseiro” e de “dolo” pelos atos praticados no cenário de calamidade pública provocado pela Covid-19. O julgado teve lugar em razão, dentre outras questões, da possibilidade de serem proferidas decisões administrativas que autorizem a utilização de “determinados medicamentos, de eficácia ou segurança ainda controvertidas na comunidade científica, para o combate à enfermidade, como é o caso da hidroxicloroquina”.[1]

O tribunal, lastreado em voto do Ministro Luís Roberto Barroso, decidiu que a interpretação conforme a constituição de tal MP predicaria que a autoridade pública “deve exigir que a opinião técnica observe standards, normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria…”.

O mesmo ocorreu, em sede de cognição sumária, por ocasião do julgamento da ADI n°5.501, que apreciou a constitucionalidade da norma que liberava a utilização da substância fosfoetalonamina, conhecida como “pílula do câncer”. Na ocasião, restou assentado que “o controle dos medicamentos fornecidos à população é efetuado, tendo em conta a imprescindibilidade de aparato técnico especializado, por agência reguladora supervisionada pelo Poder Executivo”.

Quanto ao direito à saúde, restou consignado que “não será plenamente concretizado sem que o Estado cumpra a obrigação de assegurar a qualidade das drogas distribuídas aos indivíduos mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano”.[2] E, especificamente, no que respeita à função reguladora, deixou assentado o entendimento de que, ao liberar a fosfoetanolamina, “o Poder Legislativo substitui o juízo essencialmente técnico da Anvisa, por um juízo político, interferindo de forma indevida em procedimento de natureza tipicamente administrativo”.[3]

Nos dois precedentes, a função reguladora prevaleceu sobre as escolhas políticas afetas aos interesses veiculados, de forma unilateral e expedida, pelo poder público (Executivo e Legislativo)[4].

Em temas de alta complexidade técnica, com efeitos sistêmicos e impactos prospectivos, especialmente os que envolvem a saúde, deve-se reconhecer a importância da função reguladora – e o dever de deferência à regulação – [5] que, para além de ter previsão no art. 174, caput, da CRFB, se encontra, há muito, delineada nas Leis-quadro de criação das agências reguladoras federais[6] em vigor desde os idos da década de noventa[7].

Com efeito, esses provimentos jurisdicionais, ao se relacionarem a temas sensíveis, para além de ter fundamento na constituição se lastreiam na recente legislação infraconstitucional, por intermédio da qual se vem estabelecendo a aferição das consequências e das capacidades institucionais como requisitos de validade da decisão administrativa. Nesse sentido, cite-se, como exemplos, os art.s 20, 21, 22 e 28 da LINDB[8], o art. 3° da Lei n°13.848/2019 (Lei das Agências Reguladoras Federais) e o art. 4° da Lei n° 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica).

Daí que, a partir desse arcabouço normativo e jurisprudencial, restarão maculados, por vício nos seus elementos “motivo” e “objeto”, nos termos do art. 2°, c e d, da Lei n°4717/1965 (Lei da Ação Popular), os atos administrativos “indeferentes” às decisões técnicas e processualizadas (v.g. aqueles que imponham o uso de substâncias que ainda não têm a sua eficácia comprovada no combate à Covid-19; alterem a data de exames nacionais para o ingresso em universidades; instituam requisições administrativas e medidas de polícia sanitária expropriatórias[9]).

Em resumo, a pandemia decorrente da Covid-19 provocou um colapso sistêmico de várias ordens (sanitária, fiscal, econômica, institucional e social). Tais impactos fazem emergir um aparente paradoxo: os impactos são abrangentes, mas as soluções devem ser setoriais, especializadas e processualizadas. Segue daí a importância da função de regulação no endereçamento dos diversos conflitos concretos em tempos de exceção, nos quais entram em colisão os distintos interesses enredados pela pandemia (saúde, livre iniciativa, federalismo, dentre outros).

Nesse quadrante, as decisões preponderantemente políticas de ocasião, unilaterais e verticalizadas, devem dar lugar às escolhas e decisões regulatórias responsivas[10], permeadas por uma metodologia reflexiva[11], que busque nos subsistemas jurídico-econômicos soluções equilibradas e prospectivas (foward-looking) para os problemas emergenciais.

 


[1] Voto do Ministro Luis Roberto Barroso nas ADIs 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 E 6431 MC.

[2] Voto do Ministro Marco Aurélio na ADI 5501.

[3] Voto do Ministro Luís Roberto Barroso na ADI 5501.

[4] GUERRA, Sérgio. Controle judicial das escolhas regulatórias: o fim do protagonismo do Superior Tribunal de Justiça? Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 6, n° 22, p. 525­553, abr./jun. 2012.

[5] V. VERMEULE, Adrian. Rationally Arbitrary Decisions (in Administrative Law). Harvard Public Law Working Paper n. 13-24. A doutrina da deferência (intelligible principles doctrine) advém da construção da Suprema Corte Americana, segundo a qual, se houve um processo administrativo e uma fundamentação adequada para a Administração escolher uma, entre várias interpretações plausíveis do ato normativo, o Judiciário não deve substituir a interpretação plausível da Administração pela sua própria, salvo se aquela não for razoável. (MERRIL, Thomas W. The story of Chevron: the making of and accidental landmark. In: STRAUSS, Peter. Administrative Law Stories. Foundation Press: NY, 2006).

[6] Com efeito, não se deve mais cogitar que o conceito de separação de poderes oitocentista interdite que determinadas matérias sejam deslegalizadas para entidades técnicas (insuladas de influências preponderantemente políticas). É que, como bem observado por Bruce Akermann, superando-se a teoria tripartite de Montesquieu, “devemos modificar o mantra para levar em conta um mundo institucional em que instituições independentes desempenham funções cada vez mais importantes — apesar de não poderem ser classificadas como legislativas, judiciais ou executivas”. ACKERMAN, Bruce. Good-bye, Montesquieu. Comparative Administrative Law, 2010.

[7] GUERRA, Sérgio. Regulação estatal sob a ótica da organização administrativa brasileira. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 11, nº 44, p. 229­248, out./dez. 2013.

[8] V. MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à Lei n° 13.655/2018. Editora Fórum: Belo Horizonte, 2019.

[9] FREITAS, Rafael Véras de. Expropriações Regulatórias. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2016.

[10] AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Nova York: Oxford University Press, 1992. Sobre o tema, No Direito brasileiro, V. VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

[11] GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, regulação e reflexividade: uma nova teoria sobre as escolhas administrativas. 5.ed., 1ª. Tir. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

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