Riscos globais

Os impactos da agenda climática do Banco Central para o crédito

Riscos de mudanças ambientais e de reputação entrarão na análise de empréstimo dos bancos

mercado de carbono
Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A política monetária e a estabilidade financeira podem ser abaladas pela crise climática: ondas de calor extremo, geadas, seca e chuvas intensas afetam preços de produtos e disparam a inflação. Esses choques já impactam índices inflacionários – uma prova é a bandeira “crise hídrica”, que sobretaxa a energia na estiagem – e, com o planeta mais quente, eles se tornam preocupantes para o sistema financeiro. O Banco Central tem se movimentado para mostrar consciência disso – e deixar a vaga ideia de atenção socioambiental para entrar de vez na agenda climática.

Presidente da autarquia, Roberto Campos Neto, na posição desde 2019, tem abordado em suas falas os eventuais danos da “inflação verde” (a greenflation, que já recebia atenção de autoridades de diferentes países). Além de quebras de safra e empecilhos à produção por eventos antes atípicos, essa inflação seria produto do aumento dos preços por conta de novas exigências, regulatórias ou de demanda. A troca por produtos sustentáveis, enquanto estes forem mais caros, é um exemplo.

Enquanto o governo brasileiro, sob a liderança de Jair Bolsonaro (sem partido), é criticado por suas políticas e discursos que repelem compromissos climáticos, o Banco Central busca manter um histórico de atenção ao meio ambiente. “Precisamos arrumar nossa narrativa nessa área”, disse Campos Neto, no final de agosto, em seminário da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e da Esfera, do Santander. E afirmou que deve comparecer à COP26, próxima Conferência do Clima das Nações Unidas, no início de novembro em Glasgow.

A ameaça inflacionária ajudou a justificar, em 2020, o lançamento da agenda de sustentabilidade do regulador. O passo mais concreto foi o conjunto de medidas anunciadas pelo BC na semana passada para a agenda no tema: elas obrigam instituições financeiras a incluir os riscos ambientais, sociais e climáticos em suas análises; estabelecem novas métricas para a divulgação de informações pelos bancos; e adiantam ações futuras, como a criação do chamado “bureau verde” para crédito rural sustentável.

Apesar da dianteira e do realce que ganha ao ser um contraste com políticas de governo, a iniciativa não é um gesto exatamente inédito para o regulador. Em 2012, durante a Rio +20, conferência sobre desenvolvimento sustentável das Nações Unidas na capital fluminense, o Banco Central apresentou o que vinha fazendo e destacou a necessidade de a regulação impulsionar atividades econômicas mais sustentáveis.

Na ocasião, começou a apresentar ainda o que, em 2014, seria a Resolução CMN 4.237, com critérios sustentáveis para as instituições e que foi substituída agora. No documento anterior se falava de “custos socioambientais”, enquanto agora o clima se torna foco central. Na prática, isso muda completamente as regras do jogo para as integrantes do sistema – já que elas terão que pensar não apenas em impactos ambientais delas e das empresas em carteira, mas também em intempéries do clima global.

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“A regulação anterior exigia pouco. Agora é que o Banco Central faz o que havia tentado, colocando tanto riscos advindos de não conformidade legal, mas também de performance e transição, em linha com o espírito dos tempos e de forma pioneira entre países emergentes. Será muito mais difícil para os bancos apenas preencher requisitos e, no campo climático, a maioria ainda está no começo da jornada”, avalia Gustavo Pimentel, diretor executivo da Sitawi, organização social que pensa finanças sustentáveis.

O que esperar na agenda climática do Banco Central

Na última semana, junto com as novas normas, o Banco Central publicou o “Relatório de Riscos e Oportunidades Sociais, Ambientais e Climáticas”, que será anual. Ele dá um panorama mais detalhado do que, no papel, podemos esperar da instituição. No documento são mencionados desde os riscos operacionais da própria autarquia, como o descarte inadequado de cédulas (que hoje são usadas como insumo energético para produzir cimento), até o perfil de carbono da carteira de investimentos das reservas internacionais.

Para as instituições financeiras, o cerne das mudanças, anunciadas desde o ano passado, são as novas regras de riscos (presentes na Resolução CMN 4.943). Elas trazem mais elementos para a conta de perdas em potencial de bancos, e os integram aos tradicionais riscos de crédito, mercado, liquidez e operacional. Assim, no apetite por riscos de concessão de empréstimos, por exemplo, entrariam a eventualidade de violações de direitos humanos, práticas de degradação ambiental e ocorrência de intempéries do aquecimento global, para citar alguns exemplos.

Além disso, nos testes de estresse, grandes bancos terão de traçar cenários considerando prognósticos de mudanças climáticas e transição para a economia de baixo carbono. A reputação da instituição também será um risco a considerar, na medida em que percepções negativas moldadas pelos novos tempos possam impactar seus negócios significativamente.

O Banco Central também prepara como incluir esses cenários em seus modelos de testes de estresse. Esse novo parâmetro de supervisão fica para o ano que vem.

Para já, mudou também a Política de Responsabilidade Social, Ambiental e Climática (PRSAC), documento que, desde 2014, deve ser elaborado pelas instituições reguladas para apresentação ao público externo. Agora, foram modificados requisitos de implementação de ações visando que o documento se torne mais efetivo e para evitar que ele seja apenas retórico – as alterações fazem parte da Resolução CMN 4.945.

O destaque, em matéria de transparência, é a exigência das recomendações da Taskforce on Climate-Related Financial Disclosures (TCFD), parâmetros criados em 2015 no comitê de estabilidade financeira do G20 para mensurar os impactos das mudanças climáticas nos negócios. Esse é hoje o principal escopo de análise globalmente. No começo, os aspectos qualitativos de governança e gerenciamento de riscos serão abordados; no ano que vem, métricas e metas.

“Os desafios de métricas são globais e será um enorme ganho ter mais informações que ajudem a criar uma taxonomia para os investimentos. Aqui, o ponto chave é a questão climática ter sido bem incorporada, seguindo a tendência internacional”, afirma Maria Christina Gueorguiev, especialista em Direito Ambiental e sustentabilidade, sócia do escritório Veirano, em São Paulo.

O objetivo da TCFD é padronizar e quantificar os impactos climáticos, o que possibilitaria a credores precificar o risco na hora de conceder empréstimos, por exemplo, e que investidores tivessem noção de oportunidades e perigos financeiros da piora climática. Uma das recomendações são que empresas definam um preço interno de carbono, por exemplo.

“A partir disso, se tornará mais tangível como os riscos climáticos afetam as taxas. Pela primeira vez teremos uma radiografia desses problemas, que ajudará a orientar quais setores devem ou não ser incentivados, inclusive por investimentos públicos e subsídios tributários”, diz Gustavo Pinheiro, coordenador do portfólio de economia de baixo carbono do Instituto Clima e Sociedade.

A adoção pelo Banco Central ainda é relevante na medida em que, até agora, a adoção era voluntária. Alguns bancos já haviam começado o processo. Itaú e Bradesco se tornaram signatários em 2017, ano em que nasceram os pilares usados até hoje pela TCFD. E, em 2019, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) lançou orientações aos seus membros para adotar as métricas, em relatório produzido pela Sitawi.

Apesar das iniciativas, as instituições vinham apresentando dificuldades para colocar os riscos das mudanças climáticas na ponta do lápis – enquanto estão mais avançadas em analisar impactos ambientais das empresas em carteira. Essa é a realidade para boa parte dos bancos latino-americanos, segundo pesquisa da Iniciativa Financeira do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Unep) publicada no ano passado.

Dentre 78 instituições da região consultadas (sendo 11 brasileiras), apenas 12% disseram ter conhecimento avançado para implementar as diretrizes da TCFD. Ainda, apenas 17% afirmaram ter preço interno de carbono e 29% dos que contam com metas ambientais fazem isso pensando no impacto da própria empresa, e não dos riscos da carteira.  Bancos maiores (isto é, sobretudo instituições brasileiras) foram avaliados como tendo mais planos de ação nos tópicos climáticos, mas ainda não implementavam toda a TCFD.

“Como os bancos brasileiros já participam da força-tarefa, esse não é um assunto novo. Nesse sentido, o prazo para começar a reportar apenas em 2022 é longo, porque ainda não se têm metas de portfólio de baixo carbono, como já acontece em países como a França, então ainda há um atraso”, afirma Sergio Leitão, diretor executivo do Instituto Escolhas, organização que produz estudos sobre impactos socioambientais e climáticos.

Crédito rural sustentável

É aguardado ainda o lançamento do chamado Bureau de Crédito Rural Sustentável, em que informações sobre beneficiários do crédito rural estarão disponíveis a qualquer um. A ideia é que ele funcione para a gestão de risco pelas instituições financeiras, além de dar um empurrão ao mercado de títulos verdes. Com mais transparência, as condições de crédito poderiam ser distintas para tomadores mais ou menos sustentáveis.

Já há um sistema do BC para registro de operações de crédito rural, que cruza bases de dados e sistemas externos ao regulador, para validar se há conformidade com as regras para se caracterizar como crédito rural. De acordo com o Banco Central, são registrados anualmente cerca de dois milhões de operações de
crédito rural (ou R$180 bilhões). Nos registros, há 1,3 mil verificações e a ideia é que isso aumente e fique mais evidente quando há ou não boas práticas ambientais.

Até hoje, antes da concessão de crédito pelas instituições, há normas legais e infralegais que devem ser conferidas por elas, como legislação ambiental. O BC fará um segundo filtro (estabelecido na Resolução BCB 140). Inicialmente, consulta pública para discutir esse tipo de crédito, a proposta do Banco Central recebeu críticas e adendos por ser considerada muito permissiva.

Ele trouxe as recomendações para dentro e estabeleceu entre impeditivos empreendimentos localizados em Terras Indígenas ou Quilombolas; em unidades de conservação; por desmatamento ilegal; com cadastro ambiental rural (CAR) cancelado; e autuados por trabalho escravo. Resoluções de 2008 e 2010 sobre o crédito rural já traziam esses impedimentos, a ser considerados pelos bancos, portanto nada absolutamente novo.

“É evidente que o Banco Central não pode impedir o que não é ilegal em outros setores, mas há um ponto crítico nessa lista em relação às Terras Indígenas, ao mencionar apenas áreas homologadas”, diz Pinheiro, do Instituto Clima e Sociedade. A explicação é que já na primeira fase desses processos, com a identificação da área, são produzidos pareceres e evidências de que há ali uma Terra Indígena. Assim, há o risco de, no final do processo, haver disputas de posse de terras com riscos financeiros.

Pelo texto, além dos impeditivos, ficam em situação de alerta aqueles em áreas embargadas pelo Ibama por desmatamento ilegal e com registro de trabalho infantil. Por outro lado, haveria incentivos para agricultura de baixo carbono, uso de energia renovável e com certificação independente. A questão é que, em muitos casos, um empreendimento pouco ético pode cumprir formalidades e, assim, obter o crédito subsidiado.

“Em outras situações, precisaria, senão impedir o empreendimento, colocar em uma posição de cautela e observação. A maior parte das restrições são para decisões finais, em processos que podem ficar engavetados por anos: são os caso do CAR, que só resulta em perda de crédito ao estar cancelado; e do trabalho escravo, em que apenas uma condenação valeria”, questiona Leitão, do Instituto Escolhas.

Quando a nova plataforma estiver disponível, o que é previsto para o fim do ano que vem, é esperado que ela exponha parâmetros associados à sustentabilidade do empreendimento rural cadastrado. Assim, segundo o BC, haveria balizas para emissão de títulos verdes (os green bonds), que já são lançados com condições especiais por conta da característica sustentável, mas teriam maior uniformização – e novas chances de se proliferar. A expectativa é contar com esse arranjo do mercado.

O movimento do BC poderia, em última análise, ser um gatilho a movimentações de outros reguladores, mas é improvável que outros tenham alcance sistêmico similar. É de se esperar. No caso do regulador do sistema financeira, há uma responsabilidade em evitar que a política monetária não colapse.

“Pode ser uma inspiração para outros reguladores, dado que muitas instituições financeiras também tem uma gestora de ativos ou uma seguradora, poderemos ver certa harmonização”, comenta Pinheiro, especialmente em referência à Comissão de Valores Mobiliários.

A autarquia que regula o mercado de capitais abriu, no fim do ano passado, consulta pública sobre a Resolução CVM 480, que trata dos formulários de referência obrigatórios às empresas abertas. O plano seria incluir informações sobre ESG das companhias. Por enquanto, nada de clima.