Pandemia

Empresas adequam produção e encontram saídas para crise

Fábricas passaram a produzir máscaras e álcool 70 INPM para sobreviver. Especialistas recomendam atenção

Empresas
Crédito: Arquivo Kidy

A calamidade pública provocada pela disseminação do coronavírus colocou em alerta e em risco real muitos setores da economia. Algumas empresas, no entanto, conseguiram reorganizar a produção e incluir em seus catálogos produtos hoje essenciais, como álcool e máscaras. O movimento possibilitou às empresas reduzir os impactos da crise ou mesmo colocá-las no curso oposto, com o aumento de faturamento e de contratações.

Empresas que já tinham operações de alguma forma semelhantes à necessária para o momento atual puderam fazer a adaptação de maneira facilitada. É o caso de exemplos reunidos pelo JOTA, como uma companhia de sapatos infantis que passou a produzir máscaras ou uma de produtos de higiene e beleza que deu início à produção de itens de assepsia com álcool 70.

Para fábricas que trabalham com materiais muito diferentes, segundo especialistas, é preciso ter um cuidado extra na área regulatória, tributária e trabalhista. Segundo advogados e empresários ouvidos pelo JOTA, a empresa deve observar esses aspectos para agir com segurança total.

Sabonetes e álcool gel

Segundo informações da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), uma rede coordenada por ambas as entidades já mobilizou 380 indústrias de diversos portes, suas respectivas entidades representativas e federações estaduais em ações de combate ao coronavírus. Até o momento, essa rede já investiu cerca de R$ 336 milhões em ações em todas as regiões do país. Uma das principais iniciativas é a manutenção e o conserto de centenas de respiradores mecânicos que estavam desativados.

Além disso, a indústria já produziu milhões de equipamentos para hospitais, trabalhadores e para população em geral – a maioria destinada a doações. São quase 20 milhões de máscaras cirúrgicas, 15,3 milhões de máscaras de uso comum e 365 mil protetores faciais (face shields). Na conta também entram 505 mil litros de álcool antisséptico (gel, líquido e glicerinado), 300 mil pares de luva e 495 mil vestimentas para profissionais de saúde (aventais, capotes, toucas e propés).

Nessa toada, algumas dessas empresas transformaram essas mudanças em definitivas. Uma delas é a Cottonbaby, que produz lenços umedecidos para bebês, algodão, curativos e cotonetes. O CEO da companhia, Leandro Silveira, conta que o coronavírus não os pegou completamente de surpresa, ainda que a emergência sanitária tenha superado o que se esperava.

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“Quando foi decretado estado de emergência para nós não era novidade. Nos relacionamos com a China e já vínhamos tentando entender como [o país] estava lidando. Sentíamos que o que produzimos ia atender parte do que é orientado pela OMS, com produtos como sabonetes, lenços umedecidos, linha líquida infantil e produtos de higiene. Sentíamos que ia ajudar de alguma forma”, lembra.

O primeiro lote de álcool em gel 70 INPM foi destinado à doação. A partir do segundo, a Cottonbaby passou a comercializar. Agora, o produto entrou para o portfólio fixo. “Tivemos as duas primeira semanas de susto. Mandamos colaboradores para casa, demos férias para alguns. Aí entendemos que a crise para nós não era a mesma que para outros segmentos. Passamos a olhar para as oportunidades. Tínhamos um grupo no WhatsApp chamado de gestão de crise. Na terceira semana, mudamos o nome para gestão de oportunidade”, conta.

A companhia passou a observar as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e olhar além. Como a orientação é lavar as mãos, resolveu fortalecer os produtos de higiene. Se o álcool virou item indispensável, pensaram em produtos que ao mesmo tempo protegem,  limpam e não ressecam a pele, podendo ser usados no couro da cadeira e nos celulares. O produto foi lançado há duas semanas e um novo deve ser lançado no início de julho.

Na avaliação de Leandro Silveira, a empresa se mobilizou rapidamente para aproveitar a estrutura e o conhecimento disponíveis. Para além disso, diante da crise econômica gerada pela pandemia, a empresa suspendeu o reajuste de preços previsto para março, política que segue por pelo menos mais um mês, e também o processo de automação, com compra de maquinário específico, para manter empregos.

Sapatos e máscaras

Diretor comercial, industrial e técnico da Kidy, indústria de calçados infantis situada no pólo calçadista de Birigüi (SP), Adriano Pires conta que a empresa readequou o parque fabril há dois meses para a produção de máscaras de proteção. Fez um primeiro lote para doação, e tendo recebido feedback positivo quanto à qualidade do produto, passou a vendê-lo. Agora as máscaras se tornaram um novo braço de negócios, que dá sustentabilidade neste momento e deve seguir importante posteriormente.

Em 19 de março, Pires estava na Europa para a pesquisa de moda que faz duas vezes por ano. Voltou de Londres, tendo cancelado viagem a Itália, que já estava em situação crítica pela pandemia. A empresa tem 60 representantes e vende para 42 países. No retorno, começou a receber questionamentos e preocupações sobre como ficaria a operação. De início, pararam as atividades. Naquele momento, o crescimento chegava a 18,74% no ramo dos sapatos em relação a 2019, considerado o período de janeiro à data de retorno da equipe ao Brasil.

“O decreto de fechamento aqui da cidade veio no dia 31 de abril, mas já estávamos pensando nos 2 mil funcionários que temos. E aí pensamos em produzir máscaras para doação. Quando fomos fazer, tivemos o cuidado de pesquisar as normas ABNT [Associação Brasileira de Normas Técnicas] para entender o que é uma máscara correta antes de pegar um material de almoxarifado e produzir. Nós percebemos que fazer máscara para o rosto das pessoas é tão sério quanto fazer sapato para os pés de crianças. Levamos três dias a mais do que a concorrência para entender a matéria-prima correta”, contou.

De início, fizeram as primeiras 35 mil máscaras para doação. Depois, chegaram a 70 mil. Com o cuidado que tiveram com o produto e entrega, passaram a receber ligações com elogios e também pedidos. “Nos reunimos e começamos a estudar isso. Passamos a fazer máscara dupla, tripla, N95, com desenho, fashion, virou um negócio. Fornecemos hoje para a Unimed Brasil, hospitais, para o Carrefour”, diz. Hoje, a Kidy produz 1 milhão de máscaras por dia e já investiu R$700 mil em automação, além de R$ 40 mil para testes em laboratório para avaliar a qualidade do produto. A empresa também passou a contratar no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e em Sergipe.

Medicamentos

A indústria farmacêutica Blanver, de Indaiatuba (SP), direcionou todos os seus esforços de pesquisa e desenvolvimento de medicamentos, antes voltados ao tratamento de doenças crônicas, para o combate aos efeitos e causas da Covid-19. Ao todo, são 27 pesquisadores buscando fármacos com esse objetivo, em especial os problemas respiratórios. A Blanver também fez álcool em gel para doações.

De acordo com o diretor-presidente da companhia, Sérgio Frangioni, a empresa está em contato com laboratórios na China para licenciar alguns produtos. Ele, que também é presidente do conselho da Associação Brasileira da Indústria de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina), relata que a crise evidenciou a dependência do Brasil de mercados externos.

“O fator crítico de sucesso do medicamento é o princípio ativo. E, no Brasil, 95% é importado. Você não tem controle da cadeia total. Falamos isso há 30 anos, mas muitos laboratórios só perceberam agora”, disse. Isso porque mercados como China e Índia se voltaram, neste momento, para a demanda interna. Frangioni explicou que o movimento ganhou, então, força no país. “Não vai dar para fabricar tudo, mas vamos tentar fazer uma matriz de produtos críticos, essenciais, capacitações com as empresas que hoje existem”, diz.

É um trabalho de médio e longo prazo. “Algumas pessoas do governo imaginavam que fossemos poder fabricar o princípio ativo de um dia pro outro. Muitos tinham desconhecimento dos cronogramas regulatórios e sanitários para isso. Para desenvolver um princípio demora dois anos, e para melhorá-lo e ter competitividade, mais três. São cinco anos para otimização. Se não tiver um comprometimento dos nossos clientes é difícil entrar nesse desafio”, explica o presidente da Abifina.

Atenção ao risco trabalhista, tributário e regulatório

Sobre o setor regulatório, Veridiana Police, advogada especialista na área trabalhista e previdenciária e sócia do escritório Finocchio & Ustra, explica que é o primeiro passo para que empresas que desejem readequar a produção possam avaliar as possibilidades.

“São três prismas que as empresas devem estar atentas, a começar pelo regulatório. Quais são as condições para o produto que eu desejo produzir? Não são todas as empresas que podem fabricar álcool em gel, por exemplo. Aí continuamos pensando nos impactos tributários que derivam desse movimento. [Os produtos] estão sendo feitos para doação? Tenho desoneração para produtos que são da ordem do dia? Por fim, as empresas devem dar bastante atenção ao aspecto trabalhista”, enumera.

Veridiana Police explica que é indispensável ter zelo especial nesta seara. “Todas as medidas relacionadas à segurança e saúde do trabalhador não estão à margem, ao contrário, ganham especial relevo. Se uma operação passa a ter produção com maquinário diferente e matéria-prima que a empresa não usava, pode ter agentes físicos e químicos ali que podem impactar o trabalhador”, aponta.

Os cuidados devem ter em vista a saúde do trabalhador e da própria empresa. Passar a produzir novos produtos exige transparência da companhia para ficar em conformidade com o regramento trabalhista, e isso precisa ser pactuado com o trabalhador. Esta é, segundo a advogada, a lição de casa interna.

“Não adianta produzir máscara ou álcool para doar e não cuidar do trabalhador. A judicialização tende a aumentar, e as empresas podem se prevenir para não gerar um passivo trabalhista. Já são mais de 35 mil processos relacionado à Covid na Justiça do Trabalho. É preciso ter aderência à normativa trabalhista sobretudo em relação à segurança do trabalho. Hoje estamos sensibilizados quanto à urgência do momento, mas talvez daqui há um ano e meio, quando os processos forem ser julgados, não estejamos com o mesmo sentimento”, alerta.

Da mesma forma ressalta Lys Sobral Cardoso, procuradora do Trabalho e integrante do Grupo de Trabalho Nacional Covid-19 do MPT. De acordo com ela, qualquer transição exige revisão do plano de proteção de riscos, o documento que vai detalhar quais os riscos para cada função exercida dentro da empresa.

“Mesmo em tempos de pandemia, esse requisito prevalece. E isso inclui também as medidas médicas. O MPT entende que, mesmo com a MP 927, é preciso realizar exame médico com as pessoas que vão mudar de função, até para saber se ela pode ou não trabalhar naquela posição, se é grupo de risco ou não. O exame é basilar. Além disso, o ideal é que elas tenham uma adaptação do plano de cargos e salários, porque pode ser que exista essa demanda diferente”, explica.

A procuradora afirma que o MPT está atento ao movimento, mas que essa vai ser uma demanda a ser acompanhada. Ainda não há, por exemplo, problemas levados ao órgão relacionados a isso, mas o retorno das atividades econômicas pode potencializar essas questões.

“O ponto central de qualquer alteração que seja feita é que tudo seja negociado com o sindicato da categoria. Alteração de função e de demanda atinge a categoria como um todo. O ideal é que as empresas busquem o sindicato para chegar ao consenso, para fortalecer o diálogo e chegar a uma resposta consensual”, diz.