Pandemia

O direito ao erro do administrador público é compatível com o dever de precaução?

O que a precaução, afinal, permite? O que não pode ser considerado erro grosseiro?

Coronavírus
Crédito: Fotos Públicas

A resposta é negativa. Pelo menos se o dever de precaução assumir a sua feição mais difundida, correspondente a um dever de proibição de adoção de qualquer medida que possa afetar a saúde ou o meio-ambiente.

O administrador público, de um lado, nem sempre decide sob condições de certeza a respeito dos efeitos que as suas escolhas produzirão na realidade ou é capaz de reunir as informações necessárias para privilegiar uma decisão ótima sem incorrer em custos muito altos ou mesmo proibitivos.

No contexto atual, a urgência que justifica a adoção de medidas rápidas para lidar com a pandemia de Covid-19 submete ao teste da realidade qualquer pretensão de que a atuação administrativa se desenvolva sem equívocos. Daí o reconhecimento pelo ordenamento jurídico brasileiro, como bem argumentam Binenbojm e Dionisio, a um direito ao erro do administrador.

Admitir espaços de tolerância ao erro não significa, de outro lado, que qualquer escolha administrativa deve ser considerada definitivamente blindada contra juízos críticos, especialmente de controladores. Mas a simples possibilidade de controle não deve levar o gestor público à adoção de posturas permanentemente conservadoras ou, no limite, à inação por medo de assumir riscos.

Erros devem ser considerados toleráveis pelo direito. Fora das hipóteses de atuação dolosa ou não diligente que leva a “erros grosseiros”, como dispõe o artigo 28 da LINDB, o erro deve ser considerado parte do processo de tomada de decisões complexas.

Aceitá-lo em algum grau, na verdade, funciona como condição de possibilidade para que a atividade de controle não termine por inibir a busca por soluções experimentais ou inovadoras pela Administração. Apenas em circunstâncias excepcionais, por isso, alegam com razão os aludidos autores, o gestor público poderá ser pessoalmente responsabilizado. Nos demais casos, o reconhecimento a um direito ao erro deve conduzir, em regra, a maiores níveis de deferência, ainda que não absolutos, por parte de controladores.

O reconhecimento desse direito, no entanto, encontra desafios práticos quando se tenta harmonizá-lo com determinados parâmetros tradicionais de controle. A crítica baseada em soluções ideais, com o consequente descarte de decisões do tipo second-best, e o recurso a princípios vagos de compreensão rígida são os principais adversários do tipo de pragmatismo que inspirou as recentes reformas no direito público brasileiro e que justifica a existência de espaços de tolerância ao equívoco no agir administrativo.

Nesse quadro de tensões, especial atenção deve ser dada ao papel da precaução como mecanismo de controle. Isso porque a defesa da existência de um direito ao erro do administrador encontra limites severos na aproximação do dever de precaução a um dever de proibição, que impede a implementação de quaisquer medidas que possam trazer algum risco para a saúde ou o meio-ambiente.

Se em vez de a norma implicar um dever de administrar riscos, ela impuser uma proibição de correr riscos quando pelo menos um daqueles direitos estiver em jogo, sobra pouco espaço para medidas específicas passarem por teste tão rigoroso. No atual cenário de pandemia, em que a ciência ainda tem ainda pouco a dizer sobre a Covid-19, o que a precaução, afinal, permite? O que não pode ser considerado erro grosseiro?

Se a leitura extrema da norma – que não pode ser considerada um princípio jurídico, mas uma meta-regra destinada a resolver problemas de tomada de decisão sob condições de incerteza radicalnão é inédita na jurisprudência do Supremo, ela retorna na recente manifestação do ministro Barroso em favor da concessão de medida cautelar na ADPF 669/DF com uma nova roupagem – diferente, mas, independentemente da sua aplicação adequada no caso específico, igualmente problemática para o futuro. Afirma o ministro:

“Ainda que assim não fosse: que não houvesse uma quase unanimidade técnico-científica acerca da importância das medidas de distanciamento social e mesmo que não tivéssemos a agravante de reunirmos grupos vulneráveis em situações de baixa renda, o Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência consolidada no sentido de que, em matéria de tutela ao meio ambiente e à saúde pública, devem-se observar os princípios da precaução e da prevenção. Portanto, havendo qualquer dúvida científica acerca da adoção da medida sanitária de distanciamento social – o que, vale reiterar, não parece estar presente – a questão deve ser solucionada em favor do bem saúde da população” (ênfases acrescidas).

Nessa nova versão, a precaução parece deslocar para o tribunal – ou qualquer outro controlador – o poder de definir qual solução em favor da saúde da população deve ser privilegiada nos casos de dúvida científica. E essa pode ser uma mensagem problemática para pautar o agir da Administração no atual contexto. Se ela, por um lado, deixa de impor necessariamente um dever de proibição, por outro, segue questionável por duas razões.

Em primeiro lugar, a prescrição parece substituir, como centrais para a decisão, as incertezas relacionadas ao conhecimento de fatos pelas incertezas típicas que afetam a justificação de juízos de valor relacionados à promoção do bem “saúde da população”. Isso mexe radicalmente com os ônus de argumentação que precisam ser superados para a justificação de uma decisão administrativa, ao recolocar os “valores jurídicos abstratos” contra os quais se insurge a reforma da LINDB na posição de protagonismo.

Em segundo lugar, ela é potencialmente exigente até que seja complementada por uma teoria sobre o erro administrativo. Isso porque o melhor para a saúde da população, segundo o juízo futuro do tribunal, poderia, ou não ser detectável no momento da decisão administrativa, ou, ainda que o fosse, depender da superação de custos muito altos ou proibitivos, sobretudo em função da urgência da decisão exigida do gestor público.

Em qualquer dos casos, sem que se defina quando a precaução pode acomodar erros que só se tornam claros ex post, o controlador pode, em nome da norma, rever qualquer escolha administrativa. Com a posição privilegiada de ter acesso a informações eventualmente novas, incluindo a prerrogativa de já poder considerar algumas consequências produzidas pelo ato que é chamado a avaliar, a precaução se torna instrumento para a onipotência do controlador e, assim, no limite, incompatível com deferência.

Ademais, em qualquer uma das interpretações do sentido de precaução atribuído pelo ministro fica difícil diferenciar o erro acomodável do erro que pode gerar a responsabilidade pessoal do administrador. Influenciado por um viés retrospectivo, nada impede que o controlador tenda a considerar efeitos perversos produzidos por determinada decisão administrativa como mais antecipáveis do que realmente eram no momento da decisão.

Sob essa perspectiva que superestima as capacidades dos administradores de anteciparem efeitos que nem sempre poderiam ser previstos, a avaliação ex post do controlador pode acabar se tornando mais rigorosa do que deveria.

Evitar que essas conclusões acabem prevalecendo na prática exige um repensar das relações entre erro tolerável, incerteza científica e precaução que impeça os extremos da deferência acrítica e do ativismo retórico sustentado por palavras de impacto, mas vazias. O contexto de crise aguda, se não é o melhor momento para o desenvolvimento sereno dessas relações, é o cenário que impõe, também com urgência, a necessidade de enfrentá-las.