SUPRA

Moraes e o rito das Medidas Provisórias: mais poder para o Supremo?

Liminar monocrática está em tensão direta com decisão anterior do próprio Supremo

juri, multa
Crédito: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Ao conceder medida cautelar na ADPF 663, ajuizada pelo Presidente da República, o Ministro Alexandre de Moraes ratificou diversas mudanças que o Congresso Nacional havia estabelecido para o trâmite de medidas provisórias (MPs). As mesas da Câmara dos Deputados e do Senado decidiram que, enquanto perdurar o estado de calamidade pública e de emergência em saúde pública, as MPs terão um rito simplificado, mais célere e bastante diferente do que vinha sendo adotado até aqui.

As principais mudanças são (i) a redução do prazo de validade das MPs de 120 para 16 dias e (ii) a dispensa de instalação de Comissões Mistas para análise das MPs, que passam a ser relatadas por um(a) Deputado(a) e um(a) Senador(a) diretamente nos Plenários da Câmara e do Senado. Após prazo de dois dias para apresentação de emendas, as MPs serão encaminhadas por meio eletrônico para tramitação na Câmara e votadas até o 9º dia de sua vigência. Se aprovadas, seguem para o Senado, que terá até o 14º dia de sua vigência para aprová-las.

Em decisão monocrática, o ministro Moraes chancelou, ainda que provisoriamente, essas mudanças. Formalizou como direito constitucional vigente mudanças na tramitação de MPs para o contexto emergencial de pandemia. Essa transformação se deu a partir de uma ação ajuizada pelo Presidente da República, mas não se limita aos termos dela. A dispensa de MPs passarem por Comissão Mista e as mudanças de prazos não faziam parte do objeto da ação ajuizada por Bolsonaro, constando apenas das informações anexadas pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado como interessadas no processo1.

O Presidente da República restringia seu pedido à suspensão de prazo das MPs editadas anteriormente e que estavam, ou ainda estão, prestes a perder a eficácia dado o prazo máximo de 120 dias para a deliberação do Congresso.

A decisão do STF atende, assim, a uma preocupação do Congresso com a demora na tramitação de MPs e o trancamento recorrente da pauta legislativa, devido ao congestionamento provocado pelo número excessivo de MPs editadas pelo Executivo. Preocupação verbalizada há cerca de um mês pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que observou que os projetos de lei com urgência constitucional propostos pelo Presidente da República poderiam ter um processo mais célere que medidas provisórias.

Segundo Maia, “[o] que vai a voto é um texto da comissão, diferente de um projeto de lei, cujo relatório pode ser construído no Plenário. Se o governo está com essa pressa, e quer votar amanhã, então, seria melhor encaminhar o projeto de lei, que eu posso votar amanhã. Voto a urgência e, depois, o projeto”.

Neste caso, portanto, Moraes não decidiu sobre os termos da disputa constitucional provocada pelo Executivo. Atendeu a um imperativo prático de funcionamento do Congresso que, embora já publicamente expresso, não havia sido de fato judicializado.

A decisão monocrática de Moraes é extraordinária em outro aspecto. Há cerca de oito anos, o STF já tinha decidido sobre outra tentativa congressual de flexibilizar a exigência constitucional das Comissões Mistas. A Emenda Constitucional n.32, de 2001 (EC32), havia definido a obrigatoriedade do exame de MPs em Comissões Mistas antes que elas fossem para o Plenário de cada Casa do Congresso.

Contudo, os parlamentares editaram Resolução criando um prazo improrrogável de quatorze dias para as Comissões emitirem seu parecer, após o qual a MP seria encaminhadas para o exame na Câmara dos Deputados. Na prática, essas regras afastaram a exigência constitucional de instalação das Comissões, que, na vigência da Resolução, de fato não foram instaladas na maior parte dos casos. As Comissões só voltaram a ser parte necessária do rito por decisão do Supremo no caso “Instituto Chico Mendes” (ADI 4.029/2012).

Ou seja: a liminar monocrática de Alexandre de Moraes não apenas decide algo que não foi levantado pelo requerente na ADPF, como está em tensão direta com decisão anterior do próprio Supremo.

Em certo sentido, essa decisão acaba ampliando o poder do tribunal. Ao decidir questões relacionadas ao trâmite de MPs, desde os anos 90, o tribunal vinha expandindo seu poder de interferir em decisões ou práticas relacionadas ao processo legislativo.

Ao se colocar como etapa indispensável para a formalização uma mudança nas regras de tramitação, o tribunal indica que alterações futuras teriam que passar pelo seu crivo (e eventual veto). Seria possível dispensar a passagem de MPs em Comissões mesmo neste contexto atípico de pandemia sem o aval do STF? Será que o Congresso se antecipou a eventual contestação ou veto ao anexar sua proposição na ADPF?

Vale notar que foram as próprias Mesas da Câmara e do Senado, como interessadas na ação de Bolsonaro, que apresentaram os atos normativos que alteravam regras do processo legislativo, “judicializando” (ainda que formalmente fora do pedido da ADPF) o que não havia sido contestado.

É como se o Congresso tivesse aproveitado a ADPF para, obliquamente, incluir na discussão algo como uma “Ação Declaratória de Constitucionalidade” informal, pedindo ao tribunal que confirme a constitucionalidade de uma medida legislativa ainda não contestada. Esse comportamento sugere que os atores políticos reconhecem a ameaça de veto futuro pelo Supremo, e procuram já se antecipar a ele. Na prática, isso expressa, consolida e aumenta o poder do tribunal sobre o processo legislativo.

Por fim, esse caso ilustra um certo padrão na mudança institucional das regras de tramitação de MPs, como discutimos em outro trabalho. O Congresso ou o Executivo instituem uma prática informal no trâmite de MPs, surgem disputas interpretativas sobre a correspondência da prática com as regras vigentes, a questão é judicializada, muitas vezes de forma intencional, e o STF formaliza ou veta a prática e sua interpretação correspondente. Tem sido assim desde 1988, com diversas outras questões sobre os ritos legislativos decididas pelo tribunal. Por exemplo, a Constituição permitia ou não a possibilidade reedição de MP? Quais atividades legislativas deveriam ser classificadas como “deliberações legislativas” e, por isso, estariam sujeitas ao trancamento de pauta instituído pela EC 92? Haveria ou não uma obrigação de instalação de comissões mistas para análise das MPs a partir da EC 92?

Em sua decisão, o próprio ministro Moraes relembra um capítulo importante dessa história. A reedição de MPs se iniciou como uma prática do Executivo, contestada inicialmente no Congresso e, posteriormente referendada pelo STF na ADI 295/1990. Tal prática conferiu grande poder de agenda ao Executivo e motivou, ao menos formalmente, a redefinição das regras de tramitação de MPs instituídas pela EC 32. A partir de então, definiu-se um prazo de 45 dias para aprovação de MPs, sob pena das deliberações legislativas da Casa em que a MP estivesse tramitando (Câmara ou Senado) serem sobrestadas.

Uma das consequências não previstas da nova regra foi o contínuo trancamento de pauta no Congresso, que suscitou interpretações a respeito das atividades consideradas “deliberações legislativas”. Os parlamentares questionavam se as pautas das Comissões do Congresso estariam submetidas ao trancamento (Questão de Ordem 688); se toda deliberação no Congresso estaria sujeita a trancamento, incluindo processos de cassação, escolhas de representantes do Congresso em outras instâncias institucionais (Questão de Ordem 536). Tais questionamentos permitiram aos Presidentes da Câmara definir o escopo do termo “deliberações legislativas”. No primeiro caso, decidiu-se que somente atividades do Plenário poderiam ser consideradas deliberação. No segundo, que somente atividades destinadas ao exercício da função legislativa se enquadrariam como “deliberação legislativa”.

Em 2009, o então Presidente da Câmara, Michel Temer, promoveu uma verdadeira inovação institucional ao responder à Questão de Ordem 411 restringindo o trancamento de pauta somente aos projetos de lei ordinária. Na ocasião, membros da oposição impetraram um Mandado de Segurança com pedido de liminar no STF contra a decisão. O Ministro Celso de Mello não concedeu a liminar e formalizou a interpretação de Temer. Acrescentou ainda em sua decisão que tal interpretação seria a única compatível com a Constituição. Somente oito anos depois o Plenário denegou o Mandado de Segurança. Essas decisões são citadas por Moraes como evidência do alcance do poder do STF para decidir – às vezes de maneira quase “consultiva”, em conflitos já anunciados e consentidos pelo Congresso – sobre intepretações do legislativo sobre seus ritos e procedimentos.

As mudanças atuais podem se justificar pelo contexto atípico de pandemia. O cenário atual de fato é excepcional. Elas guardam, no entanto, grande semelhança com padrões corriqueiros de alterações nas regras de tramitação de MP, incluindo o papel decisivo do STF – muitas vezes por decisões individuais – na formalização de (re)interpretações das regras feitas pelo Congresso e pelo Executivo. Ainda que atenda a necessidades práticas deste ou daquele ator político, porém, em qualquer hipótese o STF aumenta seu poder de interferir no processo decisório legislativo, de modo que as mudanças sejam – com maior frequência – judicializadas.

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1 As Mesas anexaram, entre outros, os seguintes documentos: a Resolução no 11 – que prevê a instituição do sistema de deliberação remota e a preferência de apreciação de matérias relacionadas à crise de saúde pública decorrente do coronavírus – e o Ato Conjunto no 1 – que prevê a desobrigação de instalação das Comissões Mistas durante o período de vigência do estado de calamidade pública e de emergência em saúde pública.