

Toda democracia constitucional contém válvulas para o acaso. No estado de sítio, é comum haver limitações extensas ao direito de ir e vir, à liberdade comercial e até à livre manifestação do pensamento. No limite, na guerra, até a pena de morte tem sede constitucional.
Situações menos gravosas, mas também inesperadas, suscitam igualmente saídas excepcionais. São casos de crise, como a ameaça da Covid-19, que podem justificar mecanismos menos drásticos do que o estado de sítio, como o estado de emergência ou de calamidade pública. Restrições orçamentárias e fiscais são relaxadas. Arranjos temporários de gestão são criados.
Nestas circunstâncias de alto risco e instabilidade, a própria democracia reconhece não ser razoável esperar que se siga o script ordinário, pensado para uma época de paz. Abre-se uma janela temporal de “exceção”, e o rito do poder é invertido: primeiro se enfrenta o problema, depois se apuram responsabilidades.
A exceção constitucional concentra poderes nas mãos do Executivo. Por isso também, ela costuma ser temida e identificada com o autoritarismo, com ditaduras sanguinárias ou com abusos a direitos fundamentais. E por isso mesmo, quando ela passa, é sobre o Executivo que o ônus da prova recai, para justificar seus atos.
Nas democracias, quando uma medida de exceção é tomada, quem primeiro costuma resistir são estados (muitas vezes de partidos de oposição), lideranças congressuais, a imprensa livre e a sociedade civil organizada. Ou seja, quem tem direitos ou poderes tolhidos é quem primeiro reage. Afinal, a exceção tolhe a liberdade.
O que ocorre no Brasil hoje, contudo, é uma espécie de “exceção às avessas”. Quem mais quer a adoção ou o reforço das medidas excepcionais pelo Executivo são intelectuais liberais, o Congresso, os governadores, a mídia em peso e a maioria aparente da população. E quem não quer é o Presidente.
Até a Justiça entrou na briga, a favor da exceção. No Rio de Janeiro, o Judiciário caçou a campanha do Executivo para retorno à normalidade: “fica demonstrado o risco… da campanha ‘O Brasil não pode parar’, que confere estímulo para que a população retorne à rotina…”. Em Goiás, a Justiça não só suspendeu o direito de manifestação para evitar aglomerações, como determinou “uso da força, se necessário”.
O Brasil vive um impasse democrático raro e perigoso. Os livros de direito e de política nos ensinam como lidar com a instabilidade, quando o Executivo busca a exceção, para restringir direitos e ampliar seus poderes. Mas, no nosso caso, a instabilidade vem com a defesa do Presidente de “volta à normalidade”.
O Direito Constitucional se desenvolveu, em grande parte, para tolher abusos de um Poder Executivo ambicioso, inclinado a impor à sociedade um “toque de recolher”. O que assistimos, contudo, é diverso: as instituições públicas (quase) pedem a paralisia completa do país para evitar, justificadamente, o alastramento do vírus, mas o Presidente quer o funcionamento normal da sociedade.
Além de inusitado, este cenário também é perigosíssimo para o país.
É verdade que democracias se rompem, na emergência, quando se negam ou se flexibilizam, indevidamente, valores fundamentais. Mas também é verdade que sociedades inteiras podem morrer ou se esfacelar, quando não se decide o que fazer.
Não nos enganemos: em uma sociedade pobre, desigual e altamente instável como a brasileira, há algo mais perigoso para a democracia que “intervir” na política para sacar o Presidente ou calar o Congresso.
Não fazer nada.