Análise

Criticar sim, ameaçar nunca: a reação de Bolsonaro contra o Supremo

Se Bolsonaro puder escolher quais decisões cumpre, e quais não cumpre, o que terá acabado será a democracia

Bolsonaro Supremo: presidencialismo às avessas?
Presidente da República, Jair Bolsonaro na rampa do Palácio do Planalto. Crédito: Isac Nóbrega/PR

Coautores e a coautora deste texto, temos por profissão analisar criticamente as decisões e o comportamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Apontamos, há anos, o que nos parecem erros e perigos no uso do poder judicial e nas condutas públicas de quem o detém.

Essa tarefa da crítica é parte da democracia – tanto quanto o funcionamento de tribunais independentes. Apontar para as falhas do tribunal que temos é necessário para construirmos, passo a passo, o tribunal que queremos e deveríamos ter.

Nos últimos dias, vê-se no país algo que não é crítica. É ameaça ao Supremo como instituição, e ao que essa instituição representa de limite ao próprio governo. É ameaça à própria democracia, que não sobrevive com juízes coagidos ou subordinados.

“Acabou, porra”, disse o Presidente Jair Bolsonaro, comentando as recentes buscas e apreensões contra parlamentares e militantes investigados, por decisão do ministro Alexandre de Moraes, no inquérito da desinformação. Pouco depois, completou: “ordem absurda não se cumpre”.

Como muitas outras decisões do tribunal, o inquérito da desinformação instaurado pelo Presidente do Supremo é controverso. Pode e deve ser submetido a constante escrutínio, como aliás tem sido o caso. E, na medida em que as críticas sejam convincentes, há meios lícitos para se alterar a legislação processual, caso se considere que o dispositivo do regimento do tribunal que o autorizou não poderia existir; ou contestar a compatibilidade desse inquérito com a Constituição, como alegou um partido político em uma ação que hoje tramita no tribunal.

Enquanto espera o desenrolar desses mecanismos, o que resta a Bolsonaro fazer? Aceitar, para então criticar. A Constituição só admite a crítica desarmada. “Traidor da Constituição é traidor da pátria”, disse Ulysses Guimarães na promulgação do texto de 88. Além dos recursos internos ao próprio tribunal, há mecanismos constitucionais para um presidente insatisfeito lidar com posições do Supremo que lhe pareçam erradas.  São, porém, mecanismos que exigem tempo, respeito a procedimentos e negociação com o Congresso – por exemplo, na indicação de novos ministros para o tribunal, ou na aprovação de emendas que alterem o texto constitucional, dentro dos limites das cláusulas pétreas. Não há na Constituição o poder presidencial de decidir que “acabou”, nem de escolher as decisões que vai cumprir. Esse poder unilateral habita apenas a fantasia de Bolsonaro, de alguns de seus eleitores, e de muitos dos seus ministros.

Tampouco existe previsão constitucional de recurso às forças armadas contra decisão judicial – estranha invenção de quem não entende ou não aceita a diferença entre força e direito. Pelo contrário: segundo a Constituição, são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra o livre exercício do Poder Judiciário e contra o cumprimento das decisões judiciais.

O que devemos ao Supremo e seus ministros e ministras não é um conjunto de regras de protocolo, ou etiqueta. Muito menos deixar de criticar o que nos parece errado. Devemos, sim, apoiar uma instituição que, falível como todas as outras, é parte indispensável de um regime democrático em que o vencedor de eleições não pode fazer o que quiser, e precisa respeitar certos limites. Devemos isso não ao Supremo e seus integrantes, mas a nós mesmos, cidadãos e cidadãs.

Foram crescentes as críticas feitas à instituição por analistas, advogados e acadêmicos nas últimas duas décadas. O escrutínio da imprensa ao Supremo e ao judiciário como um todo é constante. Mas, aqui, não há engano possível: tais críticas e tal escrutínio são aliadas do regime democrático. São a cobrança legítima de quem aceita as derrotas inevitáveis que todo processo, judicial ou eleitoral, sempre trará para algumas das partes ou causas envolvidas.

Tivemos presidentes e ex-presidentes removidos do cargo, investigados, presos preventivamente, condenados à prisão, impedidos de se candidatar. Em processos, muitas vezes, altamente controversos. Cumpriram as decisões, enquanto as contestavam.

Juízes podem errar, assim como políticos eleitos. E é fundamental que haja mecanismos institucionais para evitar, controlar e corrigir esses erros. Mas o fato de políticos não poderem ignorar ou intimidar juízes, e vice-versa, é uma proteção constitucional a todos nós, cidadãos e cidadãs sem toga, tanque ou mandato eleitoral.

“Acabou, porra” poderia ser apenas mais um espasmo, de um presidente acostumado a se comunicar toscamente.  Mas o contexto, o histórico de Bolsonaro e sua declaração posterior, no mesmo dia, não deveriam deixar dúvida. Ao ameaçar não cumprir decisões, Bolsonaro não está fazendo uma crítica: está anunciando um crime. Nem estão apenas fazendo críticas ao Supremo os seguidores do presidente que embarcarem nessa alucinada e deliberada escalada de conflito com o tribunal e as instituições.

Seu alvo não é a decisão, mas o próprio Supremo e seus ministros. “Acabou”: se Bolsonaro puder escolher quais decisões cumpre, e quais não cumpre, o que terá acabado será a democracia.

Assista à análise da crise entre os poderes no podcast SEM PRECEDENTES:

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