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STF amplia o caos da vacina contra a Covid-19 no Brasil

Análise dos erros de contingência e de tendência

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Crédito: Unsplash

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu que seria constitucional a estados e municípios importarem e distribuírem vacinas para a COVID-19 sem registro na Anvisa, desde que já registradas por ao menos uma de quatro autoridades sanitárias internacionais. Uma primeira leitura coloca a atuação do tribunal como mais um episódio em uma sequência de decisões de contingência que fortaleceram competências de estados e municípios diante de falhas no planejamento e resposta do governo federal para a crise sanitária[1].

Uma segunda leitura, contudo, posiciona esta decisão como parte de uma história mais longa e estável de alta interferência do STF no processo regulatório e técnico da política de saúde brasileira. E tanto para a contingência quanto para a tendência, o tribunal geralmente erra, impactando negativamente o sistema de saúde.

A nova decisão foi tomada no âmbito da ADPF 770, proposta em dezembro pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Referenda, por unanimidade, decisão liminar de 17 de dezembro do ministro relator Ricardo Lewandowski autorizando estados e municípios a iniciarem a vacinação de suas populações no caso de omissão ou descumprimento do plano nacional de vacinação pela União, e possibilitando a importação e distribuição de vacinas sem registro na Anvisa, caso a agência não se manifeste em 72h e desde que a vacina já tenha registro em ao menos uma de quatro autoridades estrangeiras: o Food and Drug Administration (FDA) americano, a European Medicines Agency (EMA), Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (PMDA) japonês e a National Medical Products Administration (NMPA) chinês[2].

A decisão do ministro Lewandowski ocorreu em meio a provocações entre governo federal e governo estadual paulista ao redor da vacina CoronaVac e em um contexto de intensa pressão política sobre a Anvisa para que agilizasse seu processo regulatório de autorização emergencial. A liminar apenas reiterava o texto da Lei 13.979/2020 (art. 16, com alterações dadas pela Lei 14.006 de maio de 2020)[3] [4]. Entre esta decisão e a posição final do tribunal em plenário virtual, no dia 23 de fevereiro, o cenário mudou significativamente e só o STF não viu.

A disputa agora ocorre em um contexto de plano de vacinação em curso, que, mesmo aos trancos e barrancos, inclui vacinas que passaram pelos ritos regulatórios da Anvisa e foram aprovadas para uso. Mais que isso, o panorama regulatório também se alterou. A Lei 13.979/2020 foi detalhada por pelo menos duas Medidas Provisórias, a n. 1003 de setembro de 2020, e uma mais recente, n. 1026 de janeiro de 2021. A redação original das duas MPs não mencionava qualquer prazo para apreciação de pedidos pela ANVISA. Enquanto a primeira se destinava a aprovar a entrada do Brasil no Instrumento de Acesso Global de Vacinas Covid-19 – Covax Facility; a segunda especifica o programa de imunização para a pandemia.

No Congresso, as duas MPs sofreram emendas que estabeleceram cada uma prazos distintos para a aprovação emergencial. A MP 1003/2020 foi emendada no começo de fevereiro desse ano. O art. 16 da Lei 13.979 foi retomado pelas emendas para permitir a estados e municípios importarem e distribuírem imunizantes em casos de omissão do governo federal, ampliando o rol de quatro agências internacionais para nove e estabelecendo prazo de 5 dias dentro dos quais a ANVISA “concederá autorização temporária”[5][6].

A segunda MP, mais recente, já tratava dos limites entre as decisões da ANVISA e as competências de estados e municípios durante a pandemia, adotando linguagem mais deferente à Agência.  Enquanto a lei 13.979 determina que a aprovação da Anvisa “deverá” ocorrer em 72h, a MP 1096 dispõe que essa aprovação “poderá” ocorrer[7] de forma excepcional, desde que estas vacinas observem “o previsto no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19” (art. 13, caput), “atualizado e coordenado pelo Ministério da Saúde” (art. 13, par 1).

O texto da MP foi aprovado pela Câmara e seguiu para o Senado com muitas alterações. A linguagem, contudo, continuou mais deferente à agência que a da Lei, apesar de as emendas estabelecerem prazo maior, mas ainda curto, de 7 dias para que a Anvisa ofereça parecer sobre a autorização do uso experimental[8].

A decisão do STF não surpreende, é claro, ao conferir mais poderes aos estados e municípios, já que o tribunal desconfia, não sem razão, das respostas do governo federal para a pandemia.    O problema, no entanto, é que na tentativa de fortalecer iniciativas estaduais e municipais de contenção da COVID-19, o tribunal não só esvazia os poderes regulatórios da Anvisa, agência que, até o momento, tem atuado de forma técnica apesar das pressões políticas, como adiciona ainda maior confusão num processo que já é caótico pela constante interferência dos poderes legislativo e executivo.

A decisão nem sequer menciona qualquer uma das Medidas Provisórias. Afinal, qual regra deve ser aplicada? Os poderes amplos que a leitura do STF da Lei 13.979/20 conferiu a estados e municípios? A MP 1003/2020, e seu prazo de 5 dias, recentemente vetado pela presidência? Ou a MP 1096/2021, seu prazo de 7 dias para apreciação pela ANVISA, submetendo governos subnacionais a maior articulação como o governo federal?

Quem passou a prestar atenção à atuação do STF na área da saúde apenas agora, na pandemia, poderia pensar que esta decisão é só o resultado de um momento político conturbado. Mas na verdade ela não destoa de uma longa história marcada por relativo desprezo e muitas vezes ignorância do STF e do judiciário brasileiro sobre a complexidade regulatória do sistema de saúde.

A judicialização da saúde é em grande medida resultado desse fenômeno, no qual basta uma prescrição médica para que o juiz desconsidere todas as avaliações e escolhas técnicas que estão envolvidas no registro e incorporação de novas tecnologia ao SUS, tarefa que envolve não apenas a Anvisa, mas todo um aparato técnico e político  que inclui o próprio Congresso na aprovação do orçamento, e Conselhos de Saúde, a CONITEC, as secretarias municipais e estaduais e o Ministério da Saúde nas difíceis escolhas de como alocá-lo.[9]

A própria decisão da ADPF 770 menciona como precedente entendimento já firmado pelo tribunal em repercussão geral que permitiu a concessão judicial de medicamentos não registrados pela Anvisa, desde que já aprovados por outras agências internacionais (Tema 500, RE 657.718/MS-RG). Citar esse precedente demonstra que não se trata aqui de um erro de mera contingência, justificado pela situação emergencial em que o país se encontra, mas de uma tendência que se consolida em duas décadas de jurisprudência.

Como naquela ocasião, o STF perde a oportunidade de calibrar sua interferência nas searas técnica e política da saúde pela régua da legitimidade e capacidade institucional. O poder judiciário pode sim prestar um serviço importante no aprimoramento do processo regulatório e de formulação e implementação de políticas públicas na área da saúde. E o próprio STF já fez isso em decisões pontuais como o caso da fosfoetanolamina ou dos aditivos para cigarros.

Para decidir melhor, a Justiça precisa buscar entender com maior profundidade este complexo setor e interferir apenas quando haja vícios de caráter procedimental como falta de transparência, racionalidade, discriminação, ou quando haja falha substantiva claríssima dos entes técnicos e políticos a quem cabe constitucionalmente a condução da política pública. No caso específico da vacinação, trata-se de uma política pública de alta complexidade que envolve muito mais que determinar a eficácia e segurança de uma tecnologia em testes clínicos. Inclui tarefas como fiscalizar a produção e comercialização da vacina, como será distribuída e armazenada, monitorar sua eficácia e segurança.

O preço de decisões como essa, que ignoram a atividade legislativa dos outros poderes e desconsideram fatores técnicos e regulatórios causam ainda mais caos num processo já extremamente conturbado, comprometem ainda mais a autonomia e qualidade da atividade regulatória da Anvisa e põem em risco a própria saúde e segurança das pessoas. O STF precisa urgentemente corrigir esse erro que, reiteramos, não é apenas de contingência, mas de tendência, e lembrar da importante lição de análise institucional comparada: as instituições técnicas devem ter sua autonomia preservada mesmo em contextos que desafiam suas habilidades institucionais pois as alternativas, como demonstra o presente caso, são ainda piores.


O episódio 50 do podcast Sem Precedentes faz uma análise da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal nesta semana e que pode acelerar a aplicação de vacinas contra a Covid-19. Ouça:


[1] https://redepesquisasolidaria.org/videos/covid-19-federalismo-e-descentralizacao-no-stf-reorientacao-ou-ajuste-pontual/

[2] Confira a decisão: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6068402

[3] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.979-de-6-de-fevereiro-de-2020-242078735

[4] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/vacinacao-para-covid-19-e-o-stf-04012021

[5] Art. 5º da MP 1003, como seguiu para veto da presidência. Confira: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8923473&ts=1614660101525&disposition=inline.

[6] O prazo de 5 dias foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro e mantidos pelo Congresso Nacional Confira: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/03/bolsonaro-veta-norma-que-obrigava-anvisa-a-dar-aval-em-5-dias-para-vacinas-contra-a-covid-19.shtml e http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14121.htm .

[7] Confira a redação original da Medida Provisória 1026/2021, https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.026-de-6-de-janeiro-de-2021-297929846 .

[8] Confira a versão que seguiu ao Senado para a MP 1096/2021 – https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8934105&ts=1614354343913&disposition=inline.

[9] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/melhorar-o-processo-administrativo-aumenta-a-deferencia-judicial-19112020.