

O indulto concedido por Jair Bolsonaro a Daniel Silveira coloca o presidente da República ao lado de um indivíduo condenado por atacar instituições democráticas e o próprio Supremo Tribunal Federal (STF). Para muitos que se preocupam com a disseminação de atos como esses, ou de outros ainda mais graves, o indulto nesse caso é um sério erro político e moral.
Inegável, no entanto, que há também membros de nossa comunidade política que, seja por concordarem com as críticas de Daniel Silveira, seja por acreditarem que, independentemente de estar correto, ele não deveria ser punido criminalmente por as ter feito, discordam de sua condenação. Esse ponto é fundamental. Em casos como esse, quem tem o direito de errar por último?
Uma das funções do indulto individual é exatamente permitir que o chefe do Executivo retire a punibilidade de um ato cometido por um indivíduo por discordar de sua condenação judicial. O presidente pode ter ou não boas razões para discordar, mas é essa a realidade intrínseca ao próprio instituto. Sem discordância, o indulto não faz sentido. Não existe indulto de inocentado.
Evidentemente, isso não torna o indulto especificamente concedido “correto” – mas esse é um erro que a Constituição atribuiu ao presidente o poder de cometer. Se existe indulto, não cabe ao Supremo errar por último. Se cabe ao Supremo errar por último, não pode existir indulto.
Isso pode soar estranho para quem se acostuma a repetir o chavão de que, em uma democracia, a última palavra é sempre do Judiciário. Mas não deveria. Esse chavão tem na verdade dois sentidos possíveis: um falso, o outro, meramente formal.
Em um primeiro sentido, substantivo, a ideia de que ao Supremo cabe sempre o direito de errar por último não descreve a realidade de nosso sistema constitucional. Por mais ampla e profunda que seja a possibilidade de controle judicial de atos normativos estabelecida por nossa Constituição, há razoável consenso de que certos atos, desde que cumpridos os requisitos formais, não são materialmente controláveis pelo Judiciário.
Em nosso sistema atual, talvez seja possível controlar judicialmente a indicação para o Supremo de alguém com menos de 35 anos de idade. Mas, hoje, não seria possível juízes anularem uma indicação por alegada falta de notável saber jurídico ou reputação ilibada.
Da mesma forma, hoje, não é possível controlar o mérito da condenação, pelo Senado, de um presidente da República por crime de responsabilidade, por mais que seja possível exigir, junto ao Supremo, que o procedimento legalmente estabelecido seja estritamente seguido.
Igualmente, mesmo sendo possível que o Supremo autorize a extradição de um indivíduo a quem se concedeu o status de refugiado, não é possível exigir que o presidente de fato o extradite. Foi o que decidiu o Supremo, aliás, no caso Battisti.
No caso específico do indulto, existe algum espaço para controle judicial, nas hipóteses do inciso XLIII, do artigo 5º, da Constituição – sendo expressamente vedada a sua concessão em relação a crimes de tortura, terrorismo, tráfico de entorpecentes e aqueles definidos como crimes hediondos. Fora desses limites e de requisitos formais, para bem ou para mal, a Constituição atribuiu diretamente o poder de indulto ao presidente da República. Será ele, e não o Supremo, a eventualmente errar por último.
Em todos esses exemplos, a Constituição atribui a autoridade final para exercer um determinado poder político a uma instituição diferente do Judiciário. Por isso, seria mais adequado dizer que, em uma democracia constitucional com separação de Poderes, o Judiciário erra por último apenas nos casos em que a Constituição assim o decidiu. Ou melhor: quem erra por último é a Constituição, na alocação de poder entre diferentes instituições.
Há um segundo sentido, esse puramente formal, do chavão em questão: se há mecanismos processuais para contestar um ato na justiça, caberá sempre ao Judiciário a possibilidade de dar a última palavra.
Assim, diante de ADPF que questiona a concessão do indulto a Silveira, distribuída à relatoria da ministra Rosa Weber, caberá ao Supremo decidir conhecer ou não essa ação e, no mérito, pela sua procedência ou improcedência. Aqui, porém, o STF terá que decidir se a Constituição dá ou não ao presidente o poder de errar por último neste caso. O tribunal pode ser o último a falar sobre o tema, mas pode fazê-lo apenas para reconhecer que, no caso, a decisão do presidente – certa ou errada – não está sujeita ao controle do tribunal.
Se é verdade que, em um sentido formal, o Supremo pode ser aquele a falar por último, o que ele pode acertadamente ter a nos dizer é que, em certas hipóteses, a Constituição não lhe atribuiu o poder de errar por último. Não fosse assim, esse repetido chavão teria um sentido absurdo: o Supremo teria direito de “errar” atribuindo a si poderes que a Constituição não lhe atribuiu. Na prática, isso esvaziaria de qualquer relevância as normas constitucionais. Mas de onde poderia vir esse poder do Supremo, se não da própria Constituição e das competências que ela estabelece?
Crises constitucionais testam nossos compromissos com o sistema que temos. Daniel Silveira é um personagem ofensivo a todos e todas com apreço pelas nossas instituições democráticas e pela civilidade do discurso político. Mas a defesa da Constituição, da democracia e do Estado de Direito também exigem de nós respeitar normas de cujo uso ou existência discordamos – ao contrário, aliás, do que pregava Daniel Silveira.
Se esse indulto parece gerar incômodos específicos e mais graves, há soluções democráticas e constitucionalmente possíveis para eles que não exigem a intervenção do Judiciário.
Um primeiro incômodo seria com a própria possibilidade do mecanismo de indulto individual. Pode ser ele uma cauda vestigial de prerrogativa monárquica já extinta, ou manifestação de uma ideia radical de democracia majoritária em que um ator eleito precisa dar sempre a última palavra; mas, independentemente de seus fundamentos, talvez ele faça pouco sentido em nosso sistema. E a própria ausência de casos recentes de indulto individual por presidentes da República pode indicar isso. Se é assim, esse “corpo estranho” na separação de Poderes poderia ser eliminado por uma Emenda Constitucional.
Um segundo incômodo enfoca o uso do indulto no caso de crimes como os cometidos por Daniel Silveira. Há duas soluções possíveis. Seria possível emendar o inciso XLIII, do art. 5º, da Constituição para incluir dentre aqueles crimes insuscetíveis de graça ou anistia a “incitação da prática de tentar impedir ou restringir, com emprego de violência ou grave ameaça, o exercício dos Poderes constitucionais”. Ou, o que seria ainda mais fácil, incluir esse tipo penal dentre aqueles definidos como crimes hediondos – categoria em relação a qual já é constitucionalmente vedada a concessão de indulto – bastando uma alteração legislativa.
Essas hipóteses têm a vantagem de não colocar o Supremo na problemática posição de deus ex machina constitucional. Levam a sério a ideia de que, mesmo que a Constituição nem sempre estabeleça normas com as quais concordemos, ela estabelece caminhos democráticos para a sua revisão. Afinal, se em uma democracia constitucional quem erra por último é a Constituição, ao povo resta sempre o poder de democraticamente corrigir tal erro.