Crise política

A Câmara dos Deputados online e a responsabilização do presidente

Câmara poderia receber, analisar e decidir um pedido de impeachment ou denúncia criminal remotamente?

Sessão deliberativa remota. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Com dois processos de impeachment e duas denúncias criminais oferecidas, desde 1988, contra presidentes da República, o Brasil deveria estar juridicamente preparado para esse tipo de episódio. Mas não está.

Em parte, porque, além de problemas jurídicos novos, cada tentativa de responsabilização do presidente tem gerado respostas novas para questões antigas. Algumas dessas novidades não foram ainda discutidas pelo Supremo Tribunal Federal; outras, especificamente no caso do impeachment, foram introduzidas pelo próprio tribunal, quando revisitou as regras anteriores do jogo.

O contexto da pandemia de crise de saúde pública, porém, coloca um elemento genuinamente novo, que ainda que não foi objeto de decisão, nem sequer discussão. Desde o dia 25 de março, a Câmara dos Deputados vem deliberando e votando remotamente, sem reuniões presenciais.

Mas essas regras valeriam também para processos de responsabilização de um(a) presidente? Os deputados e as deputadas poderiam receber, analisar e decidir um pedido de impeachment ou denúncia criminal sem se reunir presencialmente?

A pergunta coloca duas ordens diferentes de problemas. A primeira diz respeito à legalidade da deliberação remota nesse tipo de procedimento – as regras legislativas e regimentais vigentes preveem uma versão “digital” do processo de autorização para impeachment ou julgamento do presidente, pelo Senado ou pelo STF, respectivamente?

Há também problemas de constitucionalidade – ainda que essas regras de procedimento legislativo regulem a “autorização remota” nos dois casos, elas são compatíveis com a constituição?

Considere a questão da legalidade. O recebimento inicial, pelo presidente da Câmara, da denúncia do PGR ou de qualquer cidadão não exige presença física; nem a formação da comissão especial que analisará a denúncia. A partir desse ponto, os problemas começam. As regras recentemente adotadas pela própria Câmara para lidar com a pandemia parecem incompatíveis com a tarefa de autorizar o julgamento de um(a) presidente.

Apesar do nome, o sistema de deliberação remota (SDR) da Câmara é, na sua versão atual, apenas um conjunto de regras para votação. Não há, de fato, especificação de procedimentos de deliberação mais detalhados. Não há, na verdade, qualquer menção ao funcionamento remoto de Comissões.

Contudo, por força de lei, o processo de impeachment exige a instauração de comissão específica, que analisará a denúncia e elaborará parecer para ser apresentado ao plenário. No caso de denúncia por crime comum, não é necessária a formação de uma comissão, já que o processo passa pela Comissão de Constituição e Justiça, que é uma das comissões permanentes da Câmara.

Nos dois casos, no entanto, a participação de comissões é indispensável.

O SDR só trata de deliberação em plenário, e suas regras de votação não podem ser simplesmente aplicadas às comissões. Quanto se trata da responsabilização do presidente, a comissão não é apenas mais uma unidade de deliberação parlamentar – um acessório especializado do plenário, digamos.

A comissão é um espaço onde a lei determina que o presidente exercerá seu direito de defesa. O exercício desse direito precisa de uma regulação clara e específica, e o caráter remoto parece colocar dificuldades para as singelas regras vigentes do SDR.

Nas comissões, ocorrem os principais debates que informarão o relatório e a posterior deliberação pelo plenário. O juízo da Câmara sobre a autorização será marcadamente político, e a análise minuciosa, exaustiva e final das provas e argumentos ocorrerá no Senado.

Contudo, a prática nacional e de outras experiências na América Latina mostra que um presidente suspenso do cargo (após a autorização da Câmara, se e quando o Senado receber a denúncia) não costuma voltar. Se a acusação passa pela Câmara, o destino do presidente está selado.

Mais ainda, na experiência brasileira, quando o conflito chegou no Plenário da Câmara, o resultado – favorável ou não – já estava praticamente dado. Nas duas denúncias contra Temer, e nos impeachments de Collor e Dilma, o plenário confirmou o parecer da comissão, por ampla margem.

É nas sessões da comissão que o resultado do conflito está efetivamente sendo disputado. É lá que o presidente tem a chance de apresentar seus argumentos, sua narrativa, suas eventuais provas para mobilizar apoio contra a eventual autorização. Por isso, as regras do SDR para deliberação no plenário são insuficientes para o funcionamento das comissões no caso de impeachment ou denúncia pelo PGR.

Esse problema pode ser regimentalmente resolvido. Basta a Câmara regular de forma explícita o procedimento remoto nas comissões, de maneira a garantir o exercício do direito de defesa do presidente.

Aqui surge a segunda questão: como regular esses temas, no regimento da Câmara, de maneira compatível com a Constituição? Seria constitucional realizar essas importantes deliberações na forma remota?

A pergunta é particularmente importante no caso de denúncias contra o presidente, em contraste com outros procedimentos legislativos adotados durante a pandemia. Um vício de inconstitucionalidade procedimental na aprovação de uma lei ou emenda à constituição sempre poderá ser apreciado pelo Supremo no futuro.

O resultado de um processo de impeachment, porém, termine ou não com a destituição do presidente, será na prática um fato político consumado. Não há possibilidade realista de controle judicial de constitucionalidade do resultado após a conclusão do procedimento.

No artigo constitucional que trata do processo de responsabilização do presidente (Art. 86), apenas as linhas gerais do procedimento são indicadas. O texto constitucional define apenas os órgãos responsáveis pelo processo (Câmara, Senado e Supremo) e o quórum exigido para condenação (2/3 em cada casa, para a condenação por impeachment; 2/3 na Câmara, para autorizar o processo por crime comum).

Respeitados os órgãos e quóruns, o processo remoto não seria necessariamente incompatível com a Constituição. A lei e as regras regimentais teriam apenas regulamentado o procedimento, valendo aqui as considerações realizadas acima sobre as regras regimentais.

De maneira mais geral, porém, é importante investigar se uma deliberação remota seria suficiente para garantir ao presidente o direito à ampla defesa. Nenhum dos dois procedimentos em discussão é um processo penal em sentido estrito. Mesmo no caso de denúncia pelo PGR, a análise da Câmara é política, apenas para decidir se é possível e adequado prosseguir com o processo (aqui, sim, de natureza penal) no Supremo.

No entanto, a responsabilização de um presidente da República eleito pelo voto, durante seu mandato, tem consequências graves para a democracia. A necessária defesa do presidente é tanto pessoal, quanto do seu mandato democrático.

Mas isso não torna necessário que o direito de defesa, nesses procedimentos, possa ser exercido presencialmente.

Mais importante do que uma interação ao vivo, no mesmo espaço físico, com os membros da comissão, é a garantia de que o presidente poderá se defender, livre e oficialmente, diante do país.

O presidente (ou quem o representa nesses atos do processo) fala na comissão, mas não só para a comissão. Defende-se, na verdade, para toda a população. Essa oportunidade de apresentação da sua narrativa precisa ser protegida no processo.

O que ela exige, porém, é um certo tempo, e não um certo espaço. Ela prescinde, assim, da presença do presidente da República em um salão na Câmara dos Deputados, desde que esteja garantida a oportunidade de apresentação pública da defesa no âmbito temporal da Comissão.

(Dilma Rousseff e Michel Temer, aliás, sequer se defenderam presencialmente na Câmara, tendo optado por enviar representantes. E a desnecessidade da presença do presidente era vista como uma das vantagens do impeachment via Congresso, em comparação com processos judiciais, que exigiriam deslocamento constante do presidente e prejudicariam demais sua condução do governo).

Além disso, ainda que se opte por insistir na analogia com o processo penal, admite-se no direito brasileiro a inquirição de testemunhas e o interrogatório do réu por videoconferência há mais de uma década. Apesar de bastante criticado por parte da academia, esse tem sido o arranjo vigente no Brasil. Mais ainda, o CNJ editou ato que, na prática, viabilizou todo o processo penal por videoconferência durante a pandemia.

Como justificar que o mesmo arranjo utilizado para processar milhares de pessoas violaria o direito à ampla defesa apenas se aplicado ao presidente da República? Para forçar a analogia com o processo penal nessa direção, seria necessário enfrentar essa implicação.

Esses não são problemas especulativos. Existem hoje pedidos de impeachment aguardando encaminhamento pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Há também uma investigação em curso contra o presidente Jair Bolsonaro, movida pelo procurador-geral da República.

Dependendo do desenrolar dos eventos, é bastante possível que a Câmara precise iniciar nos próximos meses o procedimento para saber se autoriza ou não um julgamento de Bolsonaro, no Senado ou no Supremo.

Justamente porque esses procedimentos ainda não se iniciaram é que, agora, a Câmara tem a oportunidade ideal para se preparar para essas delicadas tarefas criando regras adequadas. Construir esses arranjos depois que a responsabilização estiver na ordem do dia só fará alimentar os inevitáveis conflitos políticos e jurídicos que surgem em processos desse tipo.