Discriminação

STF retoma julgamento sobre possibilidade de doação de sangue por homossexuais

Já são quatro os votos pela inconstitucionalidade total das normas da Anvisa e do Ministério da Saúde

PEC do Plasma
Foto: Venilton Küchler

O Supremo Tribunal Federal (STF) retomará o julgamento da validade de uma norma do Ministério da Saúde de 1991 que impede a doação de sangue por homens gays a partir desta sexta-feira (1/5). O caso, que está na pauta do plenário virtual, tem previsão para ser concluído no dia 8 de maio. Embora esteja na Corte desde 2017, um novo argumento foi apresentado para pedir celeridade no julgamento: a Covid-19 reforçaria a necessidade de retirar a restrição diante das quedas dos estoques dos bancos de sangue. 

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5543 foi ajuizada em junho de 2016 contra normas do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que restringem a doação de sangue por homossexuais. 

Os dispositivos questionados da Portaria nº 158/16 do Ministério da Saúde e da Resolução RDC nº 34/14 da Anvisa estabelecem critérios de seleção para potenciais doadores de sangue, excluindo, dentre outras hipóteses, os “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes” nos 12 meses antecedentes.

A ação começou a ser julgada em outubro de 2017, o relator, ministro Luiz Edson Fachin, votou contra os dispositivos legais. Ele julgou as normas inconstitucionais por considerar que elas impõem tratamento não igualitário injustificável. Para ele, os critérios para a seleção de doadores de sangue devem favorecer a apuração de condutas de risco, não uma “restrição desmedida com o pretexto de garantir a segurança dos bancos de sangue”. Os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux também se manifestaram pela procedência da ADI.

O ministro Alexandre de Moraes votou pela procedência parcial da ação, por entender que é possível a doação por homens que fizeram sexo com outros homens, desde que o sangue colhido nesses casos somente seja utilizado após o teste imunológico, a ser feito depois da janela sorológica definida pelas autoridades de saúde.

Um dos advogados que representa o PSB, Rafael Carneiro defende que o caso está amadurecido para ser concluído, tendo já cinco votos proferidos, todos pela inconstitucionalidade, ainda que com a divergência de Moraes. Neste momento de pandemia, então, seria ainda mais importante que a questão fosse pacificada. O PSB entrou com uma petição pedindo urgência no julgamento com base neste argumento. 

“A gente colacionou várias manifestações de autoridades públicas de saúde preocupadas com a baixa de sangue, de doações. É uma ação antiga, que já tem cinco votos, todos pela inconstitucionalidade da norma. Na medida em que o ministro vistor já devolveu desde o ano passado, não faz sentido se aguardar mais, especialmente no momento de pandemia”, aponta. 

Carneiro afirma que, a segunda corrente firmada, que foi proposta pelo ministro Alexandre de Moraes, não apresentaria uma solução para a questão da discriminação. “Ele continua dando tratamento desigual pela orientação sexual”, disse.  

Para Carneiro, o ministro desloca o momento da discriminação, não fixando a relação de uma conduta individual de risco, mas continuando a estabelecer o risco a todo um grupo de pessoas. Além disso, a solução proposta pelo ministro é que o sangue seja separado e que se aguarde a janela imunológica. 

“Eu conversei com vários médicos e eles disseram que você testar um sangue imediatamente após a coleta ou após dias dá no mesmo, porque a produção de anticorpos é pelo corpo, não pelo sangue independentemente. A sugestão não faz sentido. Além do mais, pode-se criar também um problema prático. Vai se colocar na bolsa do sangue a referência, a orientação sexual da pessoa? Uma gaveta para os héteros e outra para os homossexuais?”, apontou o advogado.  

Luiz Felipe Centeno Ferraz é sócio do escritório Mattos Filho e líder do grupo de afinidade MFriendly, que discute internamente questões relativas ao público LGBTI+. Ele acompanha o caso e também aguarda pela conclusão do julgamento. “Seria uma inconveniência completa sair de pauta no momento em que mais se precisa”, diz. De acordo com ele, há uma parcela importante da população que poderia doar sangue, mas que não pode fazê-lo unicamente pela orientação sexual. 

Ele defende a importância da pauta tanto de forma absoluta como especificamente para este momento de pandemia. “A questão vem se arrastando desde 1991, com a portaria do Ministério da Saúde. O HIV era uma grande ameaça, muita gente não sabia como era a contração. De lá para cá, a medicina evoluiu e é difícil vincular a transmissão a um grupo específico. As necessidades de cuidados e proteção valem a todos. Não faz sentido, só sobrou o preconceito”, analisa.

A Advocacia-Geral da União (AGU), por outro lado, mantém a posição pela improcedência do pedido. Ou seja, pela manutenção da restrição a homens que fazem sexo com outros homens. Em memorial enviado à Corte nesta semana, assinado ainda pelo AGU substituto Renato de Lima França, além da secretária-geral de Contencioso, Izabel Vinchon, e do advogado da União Júlio de Melo Ribeiro, o órgão enfatiza a necessidade de “assegurar a qualidade do sangue”.

“Para garantir a qualidade do sangue, além da triagem laboratorial, sorológica, imunoematológica e dos demais exames laboratoriais do doador, é indispensável a triagem clínica, já que, de acordo com o Ministério da Saúde, ‘os testes laboratoriais possuem limitações para a detecção de infecções transmissíveis por transfusão, em decorrência da sensibilidade dos testes utilizados e do período de janela laboratorial (período em que um indivíduo já é portador do vírus, mas os testes sorológicos e do NAT ainda não são capazes de detectá-lo)’.”

Tendo por norte a qualidade do sangue, a proteção do receptor e a janela imunológica, homens gays ficam impedidos de doar sangue, o que, segundo a AGU, está de acordo com a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS).

“Não consiste em ato discriminatório. É que o critério diferenciador não está na orientação sexual das pessoas, mas no fato objetivo de homens terem relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes, o que caracteriza um fator de risco de contaminação, presente a realidade brasileira”, diz a AGU, passando a citar casos de infecção por HIV.

Consultada por um amicus curiae na ADI 5543, a reconheceu, em julho de 2018, que suas “guidelines” sobre doação de sangue para homens que fazem sexo com homens estão desatualizadas. Em resposta à Aliança Nacional LGBTI, a diretora-geral adjunta do departamento de Cobertura Sanitária Universal da OMS, Naoko Yamamoto, afirmou que as diretrizes foram elaboradas num momento em que as pesquisas sobre o risco nas transfusões ainda estavam evoluindo, de modo que nos últimos anos houve um avanço considerável com relação à coleta de dados seguros.