Pandemia

STF: autoridades que não observarem critérios científicos podem ser responsabilizadas

Corte restringiu MP 966, que isenta agentes públicos por erros ou omissões em atos relacionados à crise da Covid-19

Sessão plenária por videoconferência do STF / Crédito: Rosinei Coutinho/SCO/STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) restringiu, nesta quinta-feira (21/5), a Medida Provisória 966/2020, que isenta agentes públicos por erros ou omissões na tomada de decisões para o combate à pandemia da Covid-19. O colegiado acompanhou o relator, ministro Luís Roberto Barroso, para definir que “erro grosseiro”, como consta no texto da MP, é não observar critérios científicos e de organizações reconhecidas nacional e internacionalmente, especialmente a Organização Mundial de Saúde (OMS). 

Dentro desses critérios, o plenário, por maioria, estabeleceu que o agente público deve observar o que estabelecem as organizações e entidades reconhecidas para tomar medidas de combate à pandemia para não ensejar violação ao direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado. Além disso, os ministros assentaram a valorização dos princípios da prevenção e da precaução. Os ministros Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux, Gilmar Mendes (leia o voto) e Dias Toffoli formaram a corrente majoritária. 

O ministro Alexandre de Moraes votou por ampliar o escopo da decisão e foi acompanhado pela ministra Cármen Lúcia. Ambos seguiram o relator na interpretação conforme para conceituar a expressão “erro grosseiro”, mas também excluíram a palavra “somente” do texto porque entenderam que desta forma não iriam restringir as possibilidades de responsabilização mais do que seria devido.

O ministro Marco Aurélio ficou vencido por entender que as ações que questionam a MP são inadequadas e por votar, na sequência, pela suspensão da norma até o julgamento final da matéria. O decano da Corte, ministro Celso de Mello, não estava presente na sessão realizada por videoconferência.

A MP 966/2020, editada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e publicada no Diário Oficial da União na última quinta-feira (14/5), prevê que os agentes públicos somente serão responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro nas medidas de combate à pandemia. Antes da sessão plenária, Barroso não chegou a dar uma decisão liminar monocrática no caso.

As ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) 6421, 6422, 6424, 6425, 6427 e 6428 foram apresentadas pelos partidos Rede Sustentabilidade, Cidadania, PSL, PCdoB, PDT, e pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que apontam que a medida do governo federal seria, para além de um relaxamento da responsabilização, um salvo conduto à administração pública. Os termos usados, inclusive nas sustentações orais, apontam para uma anistia, uma blindagem a toda e qualquer atuação estatal no âmbito das medidas contra o coronavírus.

A tese do julgamento foi fixada da seguinte forma:

“1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção”.

2. “A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades, internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.”

Inicialmente, o segundo ponto incluía a expressão organizações médicas e sanitárias, como a Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas, depois de intervenção do ministro Ricardo Lewandowski, que apontou a relevância de organizações de outras áreas, como Unicef, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), FAO, e que também devem ser levadas em conta por administradores, o trecho foi retirado que todas elas fossem englobadas implicitamente.

Ao acompanhar o relator, a ministra Rosa Weber disse que as medidas de saúde emergenciais a serem adotadas em casos de crise por agentes públicos devem sempre ter como base as orientações da OMS. “Isso tendo em vista a validade dos acordos internacionais. Os dados hão de ser determinantes seja da ação seja na inação dos gestores, que hão de ser motivadas de forma vinculante. Também a jurisprudência desta casa indica a necessidade de adoção de padrões científicos”, disse.

O ministro Luiz Fux enfatizou que a MP não abona todo e qualquer ato público. “A MP 966 não é uma válvula de escape para gestores mal intencionados, contrários à ciência e também não abrange delitos de corrupção, lavagem e nem atos de improbidade administrativa. O poder sancionatório em estado de calamidade é aferido de maneira um pouco diversa considerando-se exatamente essa necessidade de pronta atuação”, afirmou em referência ao que havia dito sobre a necessidade de tomada de decisões rápidas em momentos de crise.

Para ele, ainda que o administrador precise de segurança para atuar rapidamente, “a MP não é uma carta de alforria”. “Evidentemente o administrador negligente, imprudente, que não respeita as regras e comete imperícia evidentemente terá caracterizada a culpa e o erro grosseiro”, disse.

O erro grosseiro é o negacionismo científico voluntarista. De sorte que o agente público que atua no escuro o faz assumindo o risco de produzir severos resultados e isso, para mim, se equipara muitíssimo ao dolo eventual”, destacou. Fux também fez referência à disputa política que se dá em torno do uso da hidroxicloroquina em pacientes da Covid-19. “O que foi destacado é a questão médico-científica. Ou seja, que nesse momento se pretenda utilizar fármacos que ao invés de curar doentes venha a matar.”

Maior limitação

Da mesma forma que o relator, o ministro Alexandre de Moraes, primeiro a votar na sessão desta quinta-feira, se restringiu à análise da MP 966. As ADIs questionavam a MP 966/2020, mas também a limitação da responsabilidade civil e administrativa dos agentes públicos às hipóteses de “erro grosseiro” e de “dolo”, com base no art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), com a redação dada pela Lei 13.655/2018, e, ainda, os arts. 12 e 14 do Decreto 9.830/2019, que regulamentaram o último dispositivo.

Mas Moraes entendia que a cautelar deveria ser concedida em maior extensão, ou seja, ele excluía trechos por considerá-los desproporcionais, classificando-os de “verdadeiros excludentes de ilicitude”. Ele defendeu, então, uma decisão mais ampla que a de Barroso. Para ele, seria necessário excluir o termo “somente” do artigo 1°, que afirma que “os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente”.

Além disso, o ministro votou para excluir o inciso 2 do mesmo artigo, que define esse modelo de responsabilização para o momento de pandemia também no âmbito do combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da crise. Moraes entendeu que o trecho é genérico demais. Como os efeitos econômicos da pandemia são incontestáveis, e não se sabe por quanto tempo podem seguir, apurar a responsabilização em relação a isso se tornaria tarefa impossível. “Como apurar a responsabilização em relação a isso? Essa cláusula é extremamente aberta, não guardando razoabilidade em virtude de ausência de proporcionalidade e pela ausência da própria prudência. Transformaríamos a responsabilização em exceção”, disse.

“Concedo a cautelar para suspender integralmente a eficácia do inciso 2° do art 1° da MP, uma vez que me parece que é extremamente grave e que não guarda compatibilidade com a regra constitucional da responsabilização do agente público, ao estabelecer verdadeiro excludente de ilicitude extremamente genérico. Transforma a excepcionalidade, que é a não responsabilização, em regra”, votou Moraes.

A ministra Cármen Lúcia comungou das colocações feitas por Moraes. Ela afirmou que mesmo nas Constituições do regime de exceção, da ditadura civil-militar, como a de 1967, estava expresso o dever de responsabilizar o Estado nos casos de dolo ou culpa. “A ponderação feita me parece de salutar conveniência e prudência. Não me parece que não tenha muito peso o termo ‘somente’. Que fique claro que a aferição de responsabilidade dos atos na pandemia se fará sem que se tenha a preocupação que somente nesses casos é que se vai dar a fiscalização”, disse.

Carmen Lúcia também se juntou ao colega na preocupação sobre o inciso 2. Também para ela o texto é demasiadamente genérico, sem especificar quais seriam os efeitos abarcados pela norma para que os atos sejam submetidos ao regime da MP. Além disso, a ministra ainda apresentou outra preocupação, em trecho que afirmou ser importante estarem atentos quando da votação de mérito. Ela afirmou que erro grosseiro só pode ser determinado pelo juiz. No entanto, o parágrafo 2° do artigo 1°, dispõe que o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público.

“A responsabilidade objetiva do Estado se dá nos termos da Constituição. Ela só se firma pela circunstância de termos nexo de causalidade. Portanto, afirmar que esse mero nexo não implica responsabilização seria excluir essa previsão. Mas estamos assentando que não há espaço de irresponsabilidade na República Federativa do Brasil”, disse.

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