Entrevista

Eduardo Kassuga: fim do poder de requisição geraria aumento astronômico de ações

STF começa a julgar nesta sexta-feira (12/11) se o poder de requisição da Defensoria fere isonomia e paridade de armas

Eduardo Kassuga poder de requisição
Eduardo Kassuga, presidente da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais (Anadef), / Crédito: Divulgação

Nesta sexta-feira (12/11), o Supremo Tribunal Federal (STF) começa a julgar no plenário virtual a ADI 6.852, em que o procurador-geral da República, Augusto Aras, questiona a constitucionalidade do poder de requisição da Defensoria Pública da União. Essa é apenas uma das 22 ADIs que o PGR ajuizou contra essa prerrogativa dos defensores públicos em todo o país. O julgamento transcorre até as 23h59 do dia 22 de novembro.

Na visão do defensor público federal Eduardo Kassuga, presidente da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais (Anadef), uma das consequências de uma eventual declaração de inconstitucionalidade do poder de requisição seria um aumento astronômico de processos ajuizados no Judiciário pela Defensoria.

Isto porque é necessária a expedição de requisição diante da vulnerabilidade econômica, técnica e informacional das pessoas atendidas pela Defensoria. Sem isso, o caminho natural, diante da demora ou da falta de resposta via Lei de Acesso à Informação, seria a judicialização.

“Logo, se a DPU já realizou, durante a pandemia, aproximadamente 3 milhões de atendimentos, é razoável estimar que teria então que propor 3 milhões de ações preparatórias somente para analisar, preliminarmente, a viabilidade do direito afirmado pelos seus assistidos e assistidas no atendimento”, afirma.

Na visão de Kassuga, o poder de requisição ameniza “disparidades que obstaculizam o acesso à justiça dos hipossuficientes econômicos, das pessoas e coletividades em situação de vulnerabilidade e insegurança social extrema” e uma eventual inconstitucionalidade impactaria justamente os mais vulneráveis.

Um exemplo recente no qual o poder de requisição foi fundamental, na visão de Kassuga, foi nos atendimentos de pessoas que tiveram o benefício do auxílio emergencial negado.

“Sucede que a plataforma de dados do Governo Federal não explicava os motivos de indeferimento dos benefícios. Diante disto, a DPU expediu, para cada caso, diversas requisições, de modo a obter a justificativa completa dos indeferimentos para, depois, contestá-los perante o Juízo e obter o benefício para todas as pessoas necessitadas que procuraram a DPU”, contou.

Leia a íntegra da entrevista:

Por que o senhor considera o poder de requisição essencial para o trabalho das Defensorias Públicas?

A prerrogativa de requisição da Defensoria Pública tem como escopo amenizar disparidades que obstaculizam o acesso à justiça dos hipossuficientes econômicos, das pessoas e coletividades em situação de vulnerabilidade e insegurança social extrema. Não é um privilégio, mas sim o instrumento que garante que tais pessoas e grupos alcem à relação processual minimamente em pé de igualdade com a parte adversa.

É uma prerrogativa inserida no modus operandi de funcionamento institucional da Defensoria, já consolidada há quase 3 décadas.

Quais seriam as consequências de uma eventual decisão favorável ao entendimento da PGR?

É importante entender que a prerrogativa não é do Defensor ou da Defensora, nem da Defensoria. É da população em situação de rua que demanda benefícios assistenciais, das pessoas idosas que demandam benefícios previdenciários, dos trabalhadores com direitos violados ou com alguma incapacidade ocupacional, das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, das crianças em situação de violação de direitos, das pessoas com deficiências buscando inclusão, da população negra na luta contra o racismo. É do grupo LGBTQIA+ contra a homofobia, dos militares de baixa patente que tem algum litígio contra a Administração, das comunidades indígenas, das comunidades quilombolas, das comunidades ribeirinhas e demais comunidades tradicionais, das pessoas injustamente processadas criminalmente.

Enfim, de todas as pessoas que enfrentam tudo quanto é tipo de obstáculo para acessar à justiça e somente consegue quando acolhidas na Defensoria Pública. Ou seja, são essas pessoas e coletividades que, fundamentalmente, perderão se o STF acolher a pretensão da PGR.

A PGR argumenta que este poder fere a isonomia em relação a advogados e a advogados públicos em geral, que não têm essa prerrogativa. Este argumento faz sentido? Por quê?

O argumento é equivocado e, tanto que não foi nenhuma entidade da Advocacia que propôs as 22 ADIs contra o poder de requisição da Defensoria (foi a PGR, órgão superior do MPU).

A Advocacia pública defende o Estado, que é o ente mais forte da sociedade, dotado de diversas outras prerrogativas processuais quando litiga em Juízo que a Defensoria e os cidadãos não têm. No mais, o poder de requisição é para obter informações e provas detidas pelo Estado. Ora, se o Estado já detém essas provas, por que o órgão que o representa juridicamente teria interesse em requisitar essas informações? Afinal, é do interesse do Estado fornecer todos os elementos necessários para que se providencie a sua melhor defesa. Portanto, o poder de requisição sequer tem sentido quando se pensa na Advocacia pública.

A Advocacia privada, por sua vez, tem limitador de demandas que começa com o valor dos honorários cobrados. Isto determina a capacidade econômica da clientela que, em regra, não sofre vulnerabilidade informacional e situacional, diante do grau de escolaridade e demais elementos que mostram inclusão social. Para essas pessoas, não é tão difícil obter as informações e provas básicas para instruir uma demanda a ser ajuizada.

Por sua vez, o público-alvo da Defensoria é aquele composto por pessoas e grupos hipossuficientes, expostos a toda sorte de vulnerabilidades (situacional, circunstancial, técnica, informacional etc.). Tendem a ter baixo grau de escolaridade, por pertencerem a extratos sociais marginalizados. Devido a essa exclusão social, há verdadeiros hiatos e limitações comunicacionais. Como esperar então que tais pessoas, sem dinheiro, vão até os órgãos públicos atrás de informações e provas? Como esperar que, diante deste cenário, saibam o que pedir, a quem pedir e como pedir?

Outro argumento da PGR é o de que as requisições desequilibram a relação processual porque conferem poderes exacerbados a apenas uma das partes. Assim, haveria violação à isonomia e à paridade de armas. A vulnerabilidade dos assistidos pela Defensoria compensaria essa “exacerbação de poderes” apontada pela PGR?

A prerrogativa de requisição, nesse contexto, não fere isonomia alguma. Pelo contrário! É justamente o instituto que impede a discriminação indireta na relação processual, que permite que tais pessoas mais vulneráveis, através de poucos Defensores e Defensoras públicas, possam instruir e articular demandas com qualidade mínima para serem apreciadas pelo Poder Judiciário e deferidas.

Para a pessoa pobre, tudo é mais difícil. E é para ela que se exerce a prerrogativa de requisição, para postular para ela, guiando-se pelo seu melhor interesse. Então, quando litiga contra o Estado ou contra particular com capacidade econômica, somente há expectativa de respeito à isonomia se a Defensoria tiver as ferramentas necessárias para amenizar a disparidade social. Entre tais instrumentos, destaca-se justamente o poder de requisição.

É importante salientar que a Defensoria Pública sofre com uma deficiência estrutural e humana histórica. Para ilustrar o cenário, na esfera federal, é preciso lembrar que há apenas 644 Defensores e Defensoras para se contrapor a 1.151 membros e membras do MPF e mais de 5.000 da AGU.

Além disso, a Defensoria presta um serviço que tem que ser gratuito para quem demonstre hipossuficiência econômica. Logo, não há “clientela” nem controle sobre o fluxo da demanda. Conforme se procura, se é atendido, de maneira que a sobrecarga é um fator internalizado na prestação da assistência jurídica integral e gratuita.

E é aqui que, mais uma vez, se encontra toda a necessidade de que a Defensoria Pública tenha a prerrogativa do poder de requisição. Ora, outras prerrogativas se justificam no mesmo fundamento, a exemplo do prazo em dobro para todas as manifestações processuais e a intimação processual de todos os atos.

Então não há de se falar em quebra da paridade de armas ou violação da isonomia. Em verdade, é a prerrogativa de requisição que garante a isonomia em favor da pessoa necessitada e da instituição, no campo processual.

Com a LC 132/2009 e, depois, com a Emenda 80/2014, a Defensoria Pública também passa a ter outro papel no sistema de justiça, constando na Constituição como expressão e instrumento do regime democrático, sendo responsável não só pela assistência jurídica integral e gratuita das pessoas em situação de vulnerabilidade, como ainda pela defesa dos direitos humanos, em caráter individual e coletivo. Assemelha-se hoje muito mais a uma grande agência nacional de promoção e tutela dos direitos humanos. Portanto, não há de se pensar em uma instituição com missões tão complexas, definidas pela Constituição, sem o poder de requisição.

No mais, vale lembrar que o MP tem poder de requisição, inclusive mais amplo do que o da Defensoria (e ninguém aponta violação à paridade de armas, apesar de ser uma situação simetricamente similar).

Um argumento de quem defende a constitucionalidade da possibilidade de defensores públicos exercerem o poder de requisição é que haveria uma redução de custos para o processo. De que forma ocorreria isso?

Atualmente, quando a Defensoria precisa de algum documento, informação, certidão, exame ou outra diligência de órgãos públicos, basta expedir a requisição. Sem o poder de requisição, resta então pedir, solicitar tais elementos, sendo certo que a Lei de Acesso à Informação garante a publicidade.

Acontece que a experiência bem demonstra (e isso não é só no âmbito jurídico), que a Administração dificilmente responde (quando responde) tais solicitações em prazo hábil. Logo, este fator já fulmina a eficiência dos atendimentos da Defensoria Pública.

Então, restará somente a via judicial: uma ação de perfil “preparatório” terá que ser ajuizada só para se conseguir aqueles documentos e informações que antes se conseguia com uma simples requisição. Depois de finalmente conseguir o provimento deste pedido, será possível analisar a viabilidade da pretensão da parte necessitada para, somente após, eventualmente, propor a ação na qual se tratará do direito efetivamente.

E a dinâmica de atendimento, naturalmente, perpassa pela expedição de requisição diante da vulnerabilidade econômica, técnica e informacional do público-alvo. Logo, se a DPU já realizou, durante a pandemia, aproximadamente 3 milhões de atendimentos, é razoável estimar que teria então que propor 3 milhões de ações preparatórias somente para analisar, preliminarmente, a viabilidade do direito afirmado pelos seus assistidos e assistidas no atendimento.

De outro lado, dentro dessa dinâmica de atendimento, a requisição em geral engloba também argumentação para reexame administrativo da postulação da parte assistida pela Defensoria. Assim, por conta do poder de requisição, a DPU conseguiu aproximadamente 40 mil conciliações extrajudiciais somente em 2020. Sem o poder de requisição, a ordem de reexame do pedido da parte pela Administração seria ignorada, violando a norma que manda ao Estado buscar sempre a solução negociada dos litígios (art. 3º, § 2º, CPC).

Ou seja, o número de judicializações cresceria astronomicamente, enquanto o número de conciliações extrajudiciais reduziria drasticamente. Isto aumenta os custos do acesso à justiça, além do número de demandas desnecessárias na Defensoria e principalmente no Poder Judiciário, o principal afetado neste aspecto.

Vale ressaltar que o custo de uma ação judicial, pela DPU, é de menos de 1/3 do que o praticado no mercado privado. Sem o poder de requisição, é possível que o custo dobre.

E para a pessoa necessitada, ainda, o principal custo é a violação irrestrita a razoável duração do seu processo (art. 5º, LXXVIII, CRFB/1988).

Em que casos concretos requisições feitas pela Defensoria Pública resultaram em benefício para a sociedade?

Um exemplo recente se refere às demandas de auxílio emergencial, benefício assistencial que garantiu que muitas pessoas não morressem de fome durante a pandemia. A DPU foi a protagonista nacional na contestação de milhares de indeferimentos administrativos do benefício.

Sucede que a plataforma de dados do Governo Federal não explicava os motivos de indeferimento dos benefícios. Diante disto, a DPU expediu, para cada caso, diversas requisições, de modo a obter a justificativa completa dos indeferimentos para, depois, contestá-los perante o Juízo e obter o benefício para todas as pessoas necessitadas que procuraram a DPU.

Entre março de 2020 a fevereiro de 2021, foram mais de 598 mil atendimentos realizados pela categoria inicial da DPU, composta então por aproximadamente 470 Defensores e Defensoras. Sem o poder de requisição, a DPU nunca conseguiria ter prestado a devida orientação e assistência jurídica. Se até requisitando foi complicado, somente podendo solicitar seria impossível dar conta da gigantesca demanda que bateu às portas da DPU.

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