Entrevista

‘Não vejo o STF como antagonista do governo Bolsonaro’, afirma Manoel Gonçalves

Fora dos autos é o cidadão que se pronuncia, ainda que de modo exagerado, diz o professor sobre Celso de Mello

STF Bolsonaro
O advogado Manoel Gonçalves Ferreira Filho, professor emérito da USP / Crédito: Divulgação

O advogado e professor emérito de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP) Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que também foi vice-governador do estado de São Paulo, acredita que o Supremo Tribunal Federal (STF) vem cumprindo sua função e não vê a Corte como antagonista do presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido).

“O STF cumpre a sua função, pois não pode ignorar pleitos a ele submetidos”, afirma. “Isto não significa que eu, como operador do Direito esteja de acordo com todas as decisões que tem tomado”. Ferreira Filho publicou nesta segunda-feira (1/6) um artigo no JOTA em que ele critica decisões monocráticas de inconstitucionalidade por liminares que perduram por tempo indefinido. Para ele, “sem dúvida, cabe também a discordância contra essas decisões por parte do governo”.

Ferreira Filho diz ter o maior respeito pelos votos judiciais sempre exaustivamente justificados do ministro Celso de Mello, e que a imagem de juiz do decano certamente perdurará no futuro. Mas quanto às últimas manifestações de Mello comparando o momento atual do Brasil à Alemanha nazista, ele afirma ser “do tempo em que se dizia que o juiz somente se manifesta nos autos. Fora dos autos é o cidadão que se pronuncia, ainda que de modo intempestivo e exagerado”.

“Não acredito que o Brasil esteja ameaçado pelo fascismo nem pelo nazismo, que ninguém de peso pretende, muito menos as Forças Armadas que se ilustraram combatendo-os”, diz Ferreira Filho.

Sobre a tese propagada pelo presidente Jair Bolsonaro e por Ives Gandra Martins de que poderia usar o artigo 142 da Constituição para chamar as Forças Armadas para resolver a crise entre os Poderes, Ferreira Filho diz que as Forças Armadas “não são poder moderador” e não as vê “dispostas a quebrar a ordem constitucional”.

Leia a íntegra de entrevista:

Gostaria que o senhor analisasse a relação do Supremo com o presidente Jair Bolsonaro, mais especificamente sobre as comparações feitas pelo ministro Celso de Mello da situação brasileira com o nazismo.

Não acredito que o Brasil esteja ameaçado pelo fascismo nem pelo nazismo, que ninguém de peso pretende, muito menos as Forças Armadas que se ilustraram combatendo-os.

O fim da República de Weimar se deveu – não ao seu mérito de consagrar uma ordem econômica e social adequada ao mundo industrial – mas ao mau agenciamento de suas instituições políticas (por exemplo, v. art. 48 da Constituição), como já escrevi – e à radicalização dos conflitos e lutas entre extremistas de direita e esquerda.

O presidente da República, costumeiramente, cita o artigo 142 da Constituição para embasar o discurso de que poderia chamar as Forças Armadas para resolver a crise. Como o senhor avalia esse discurso? E qual a sua visão sobre este artigo 142?

Não concebo as Forças Armadas dispostas a quebrar a ordem constitucional.

Nesta ordem, elas não são poder moderador, como interpreto o artigo 142 da Constituição, não ignorando os seus parágrafos. Isto consta de meus Comentários à Constituição.

Nesse final de semana, protestos contra e pró-governo se antagonizaram. Qual avaliação o senhor faz deste momento? E o que, na sua opinião, pode ser feito para solucionar esta crise política?

Acho que há inconformados com os resultados das eleições de 2018, que querem revertê-las em nome da democracia e da velha estratégia do quanto pior melhor. E como sempre bem intencionados que servem de “inocentes úteis”.

Entendo que manifestos satisfazem a intelectuais, mas nada solucionam, nem movimentos de rua que podem levar a conflitos e ser contraproducentes para a manutenção da ordem democrática.

Para mim, o momento é de concertação em torno de uma reforma do sistema de governo.

Qual sistema o senhor propõe como melhor solução para esses problemas?

Presidencialismo puro leva a um autoritarismo e a uma impotência governamental, porque, no Estado contemporâneo – um Estado de Direito que visa ao bem-estar – a ação governamental exige a colaboração, não a separação entre Executivo e Legislativo.

Não propugno um parlamentarismo que está fora de nossos hábitos, já foi repelido em referendo, significaria um golpe contra 2018, mas sim um sistema misto, como o que se pratica na França da Constituição de 1958 ou em Portugal com a Constituição de 1976.

Neste há um presidente eleito pelo povo, com poderes efetivos, mas a governança se faz por meio de um gabinete que tenha a confiança dele e do Congresso.

Este modelo, aliás, foi cogitado no governo Temer, sob os auspícios do ministro Gilmar Mendes.

Trata-se de um sistema que pode ser implantado por simples Emenda constitucional, preservando-se o mandato de todos os eleitos em 2018.

Claro está que a adoção desse sistema deve ser acompanhada de uma reforma eleitoral e partidária, porque o número excessivo de partidos os esvazia de doutrina e os faz meras máquinas de disputa do poder. E, dificultando a necessária coalizão, enseja a barganha e a corrupção.

Isso poderia exigir também uma mudança na cúpula do Poder Judiciário?

Poderia ele ser acompanhado da instituição de um Conselho Constitucional que zelasse apenas pela Constituição e não tivesse a sobrecarga do STF, como hoje existe na Alemanha, na França, na Itália, em Portugal, etc.

Este Conselho poderia ser investido de funções de Poder Moderador, suprindo uma lacuna nas nossas instituições.

Professor, nós temos visto, neste momento, muitas interpretações de que o Supremo é o antagonista ou o principal foco de oposição ao governo Bolsonaro, dadas as dificuldades por que passa o parlamento, desmobilizado em razão da pandemia da Covid-19. Como o senhor avalia essa interpretação e a situação atual de conflito entre os dois poderes?

Não vejo o STF como antagonista do governo Bolsonaro. O STF cumpre a sua função, pois não pode ignorar pleitos a ele submetidos.

Isto não significa que eu, como operador do Direito esteja de acordo com todas as decisões que tem tomado. Notoriamente sou contra o neoconstitucionalismo e sempre insisti – há pouco em artigos publicados pelo JOTA – nos limites do controle constitucionalidade e na minha discordância com o que chamei de decisões monocráticas de inconstitucionalidade por liminares que perduram por tempo indefinido.

Sem dúvida, cabe também a discordância contra essas decisões por parte do governo.

O ministro Celso de Mello deixa o STF neste ano, depois de mais de três décadas de judicatura. Novamente, o senhor que o conhece tão bem, como enxerga as últimas manifestações do ministro na relação com os militares e com o governo? E que marca Celso de Mello deixará para o STF?

Tenho pelo Ministro Celso de Mello o maior respeito por seus votos judiciais sempre exaustivamente justificados, conquanto nem sempre esteja de acordo com eles – o que é normal entre juristas. Tal imagem de juiz certamente perdurará no futuro.

Entretanto, sou do tempo em que se dizia que o juiz somente se manifesta nos autos. Fora dos autos é o cidadão que se pronuncia, ainda que de modo intempestivo e exagerado.

O senhor está com quase 86 anos, já viu e viveu muitas crises. Que futuro, olhando o passado e projetando os acontecimentos, tem a nossa democracia?

Esclareço que essas ideias – e outras – já constam há muito de meus escritos como meus alunos podem atestar.

Esclareço também que neste mês faço 86 anos, já tenho todas as minhas ambições satisfeitas, exceto a de conviver com minhas filhas, netos e o bisneto e alguns amigos idosos ou jovens.

Cheguei a Professor Emérito da Faculdade do Largo de S. Francisco, sou Doutor honoris causa da Universidade de Lisboa, sou Doutor pela Universidade de Paris, fiz política – de que me arrependo porque não tenho o talento necessário – tive experiência governamental, fui membro e Presidente do Conselho Federal de Educação.

Escrevi cerca de 20 livros e inúmeros artigos e não me retrato por nenhum deles, desagradem a quem desagradem.

Tenho numerosos inimigos. Errei muitas vezes, porque sou humano. Nunca violei direitos humanos.

E para que não percam tempo buscando com que me denegrir fui Vice-Governador de São Paulo e Secretário da Justiça e da Administração, sou Professor Emérito da Escola Superior de Guerra, sou 2º Tenente R/2 de Artilharia da turma de 1955 do CPOR/SP.

E escrevi, sim, o livro A democracia possível, porque a cria e creio possível.