
O julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que discute o marco temporal para demarcação de terras indígenas foi suspenso novamente na tarde desta quarta-feira (7/6), dessa vez por um pedido de vista do ministro André Mendonça. Os magistrados estão decidindo se, para o reconhecimento de uma área como território indígena, é necessária a comprovação de que os indígenas ocupavam a terra no momento da promulgação da Constituição de 1988. A discussão está ocorrendo no RE 1.017.365.
Mendonça tem até 90 dias para devolver o pedido de vista para apreciação em plenário. No entanto, o ministro afirmou durante a sessão que pode entregar em um prazo menor. No fim da sessão, a ministra Rosa Weber pediu para o colega devolver o processo para análise do colegiado a tempo dela votar, uma vez que se aposenta em outubro.
A paralisação do julgamento ajuda parlamentares da ala ruralista a conseguirem a aprovação do Marco Temporal no Congresso Nacional. O projeto de lei 490/07 foi aprovado na Câmara dos Deputados em 30 de maio, mas ainda precisa passar pelo Senado.
Até a interrupção do julgamento, o placar estava em 2 a 1 contra a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. O relator, Edson Fachin, votou contra o marco temporal e o ministro Nunes Marques divergiu ainda em 2021, antes do pedido de vista de Alexandre de Moraes.
Na sessão desta quarta-feira (7/6), Moraes votou contra a tese do marco temporal, acompanhando o relator. Mas trouxe alterações na tese, como a permissão para o redimensionamento da terra indígena, o direito à indenização aos proprietários rurais em caso de desapropriação e a possibilidade de compensação às comunidades indígenas, concedendo-lhes terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas, desde que haja expressa concordância, em terras onde tem, por exemplo, cidades instaladas ou adquirentes de boa-fé.
Durante o voto, Moraes destacou que a disputa agrária envolvendo terras indígenas é um problema em vários países e destacou que o Brasil tem problema na gestão de terras.
Lembrou ainda que a questão traz conflitos de direitos fundamentais tanto dos indígenas quanto dos posseiros de boa-fé. “Da mesma forma que as comunidades dos povos originários têm total direito de indignação de não terem suas terras demarcadas, os colonos de boa-fé que adquiriram, pagaram e trabalharam em sua terra, têm o direito de se indignarem ao terem uma indenização ridículo e irrisória, que não permita que eles comecem a trabalhar em outras terras”, disse o ministro.
“Vamos mudar de uma injustiça para outra, quando o grande culpado é o poder público que não regulamentou isso”, acrescentou.
A tese de Moraes prevê os seguintes pontos:
I – A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;
II – A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional;
III – A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição;
IV – Inexistindo a presença do marco temporal CF/88 ou de renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos o seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada que tem haver por objeto a posse, o domínio, ou a ocupação de boa fé das terras de ocupação tradicional indígena, ou a exploração das riquezas do solo, rios e lagos nela existentes, assistindo ao particular direito à indenização prévia, em face da União, em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, tanto em relação à terra nua, quanto às benfeitorias necessárias e úteis realizadas;
V – Na hipótese prevista no item anterior, sendo contrário ao interesse público a desconstituição da situação consolidada e buscando a paz social, a União poderá realizar a compensação às comunidades indígenas, concedendo-lhes terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas, desde que haja expressa concordância;
VI – O laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.776/1996 é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições;
VII – O redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório nos termos nas normas de regência;
VIII – As terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;
IX – As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;
X – Há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente.
Antes de finalizar a sessão, o ministro Luís Roberto Barroso não votou, mas deu a entender que não concorda com a tese do marco temporal. Quanto ao voto do ministro Alexandre de Moraes, ele ponderou que é preciso uma redefinição do conceito de esbulho renitente – conflito possessório de terra.
“Não se pode exigir das comunidades tradicionais que elas atuem da mesma forma que a cultura dominante usando ações judiciais, fazendo notificações judiciais, ou tomando providências que não são compatíveis com as culturas tradicionais. Ainda que se queira preservar a ideia de esbulho renitente, ela tem que ser reconceituada para uma permanente manifestação de inaceitação daquele desapossamento injusto”.
Atualmente 214 processos com temática similar estão sobrestados aguardando a decisão deste recurso em repercussão geral.
O processo tem a participação de diversas entidades de proteção aos direitos indígenas e de entidades ligadas ao agronegócio. As primeiras sustentam que este julgamento tem o condão de garantir ampla proteção aos direitos dos índios e defendem a derrubada do marco temporal.
Já o setor do agronegócio defende que os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição; defendem também que seja mantida a jurisprudência do STF de 2009, na qual o STF fixou regras para o processo de demarcação para a terra Raposa Serra do Sol, com um marco temporal de ocupação indígena.
Com a interrupção, não há nova data para a realização do julgamento.
Representantes indígenas lamentam nova interrupção
No fim da sessão, a ministra dos povos indígenas Sonia Guajajara, mostrou-se frustrada com a nova interrupção do julgamento. “Esse julgamento é esperado para reduzir a insegurança nos territórios indígenas. Porém, esse pedido de vista já era esperado, mas entendemos que o voto do ministro Alexandre de Moraes sinaliza um avanço e que a gente siga sensibilizando e conversando para conseguir outros votos favoráveis aos povos indígenas”.
A ministra afirmou ainda que os povos indígenas estão em articulação no Senado para evitar que o PL do marco temporal seja aprovado na Casa e para que os ritos legislativos sejam preservados e não haja uma aprovação a toque de caixa.
A deputada Joenia Wapichana (Rede-RR) também acompanhou o julgamento e, no fim, lamentou a nova paralisação. Ela ressaltou que a fala do ministro Barroso sobre o conflito possessório é importante de ser levada em consideração, uma vez que os indígenas não utilizam dos mesmos meios que os posseiros não-indígenas e isso deve ser levado em consideração.
Brasílio Pripra, membro da comunidade Xokleng, que deu origem à discussão sobre o Marco Temporal no STF, também criticou a paralisação. “Nós precisamos respeitar os direitos dos povos tradicionais. O povo não indígena vive em qualquer território, mas nós nos sentimos bem nas terras tradicionais, temos sentimentos de mãe, que o branco não tem. O branco prevê lucros. Mãe terra não se vende, não se compra. Portanto, o voto do Moraes trouxe uma preocupação, mas vemos também o direito de ressarcimento dos não-índios, que também foram enganados pelo governo. Mas queremos que o Supremo respeitasse os direitos tradicionais de todos os povos indígenas”, disse.
Tese do Marco Temporal
O marco temporal foi debatido em 2009 pelo Supremo. Na ocasião, os ministros analisavam a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, em disputa desde a década de setenta. Foi com base na tese que os magistrados decidiram a favor dos indígenas, ao dizer que tinham direito ao espaço porque já estavam ali antes da promulgação da Constituição.
Na ocasião ficou estabelecido que esse entendimento sobre o marco temporal só valeria para aquele território. Ainda assim, a decisão acabou abrindo um precedente para outros julgamentos. Em 2013, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) confirmou uma decisão da Justiça de Santa Catarina de 2009, que autorizou a reintegração de posse de uma área localizada em parte da reserva indígena Ibirama-Laklãnõ, onde vivem os povos Xokleng, Guarani e Kaingang.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) recorreu da decisão e ela foi parar no Supremo, onde ganhou status de repercussão geral.
A Constituição não determina uma data específica de ocupação a ser considerada nas demarcações. De acordo com o artigo 231, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.