
O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), confirmou nesta quinta-feira (9/9) seu voto pela inexistência da tese do marco temporal e, portanto, a favor do direito de os indígenas usufruírem as terras por eles ocupadas, independentemente do tempo em que estão no local. Ele é o relator do Recurso Extraodinário (RE) 1.017.365.
Fachin repetiu o entendimento que já havia proferido em plenário virtual, anulando a decisão do Tribunal Federal da 4ª Região (TRF4). O julgamento começou no dia 26 de agosto e será retomado na próxima semana, com a continuação do voto do ministro Nunes Marques.
Em 116 páginas de voto, o relator destacou o histórico das lutas indígenas no Brasil e lembrou que os direitos das comunidades indígenas consistem em direitos fundamentais, que garantem a manutenção das condições de existência e vida digna aos índios.
“Mais importante que o equacionamento jurídico da questão, está em julgamento a tutela do direito à posse de terras pelas comunidades indígenas, substrato inafastável do reconhecimento ao próprio direito de existir dos povos indígenas, como notoriamente se observa da história dos índios em nosso país”, afirmou durante a leitura do voto.
O relator também refutou que o julgamento do caso da Raposa Serra do Sol, na Pet 3.388, tenha delimitado o marco temporal. Afinal, para ele, embora a decisão tenha a eficácia de coisa julgada, ela não incide automaticamente às demais demarcações de áreas de ocupação tradicional indígena no país.
Assim, em sua análise, a decisão não se limitou a reconhecer a existência de um marco temporal para a configuração da tutela constitucional à posse indígena, mas compreendeu que esse direito não se perderia quando configurada constante perda de posse praticada contra a comunidade, que impedisse essa de estar na terra tradicionalmente ocupada.
“Dizer que Raposa Terra do Sol é um precedente para toda a questão indígena é inviabilizar as demais etnias indígenas. É dizer que a solução dada para os Macuxi é a mesma dada para Guaranis. Para os Xokleng, seria a mesma para os Pataxó. Só faz essa ordem de compreensão, com todo o respeito, quem chama todos de ‘índios’, esquecendo das mais de 270 línguas que formam a cultura brasileira”, afirmou.
Quanto à posse da terra, Fachin entendeu que a posse indígena sobre as terras não é a mesma posse civil, isto é, aquela em que existe um direito patrimonial particular em regra transmissível que recai sobre uma coisa ou um bem, como assim operam os direitos reais, e tem finalidade econômica, como venda, doação ou permuta. “A posse indígena, portanto, não se iguala à posse civil; ela deságua na própria formação da identidade das comunidades dos índios, e não se qualifica como mera aquisição do direito ao uso da terra”.
“A terra para os indígenas não tem valor comercial, como no sentido privado de posse. Trata-se de uma relação de identidade, espiritualidade e de existência, sendo possível afirmar que não há comunidade indígena sem terra, num ponto de vista étnico e cultural, inerente ao próprio reconhecimento dessas comunidades como povos tradicionais e específicos em relação à sociedade envolvente”, complementou.
Fachin propôs a seguinte tese:
“Os direitos territoriais indígenas consistem em direito fundamental dos povos indígenas e se concretizam no direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sob os seguintes pressupostos:
I – a demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;
II – a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional;
III – a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988, porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal;
IV – a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição.
V – o laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.776/1996 é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições;
VI – o redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório nos termos nas normas de regência; comunidade, cabendo aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;
VIII – as terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;
IX – são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a posse, o domínio ou a ocupação das terras de ocupação tradicional indígena, ou a exploração das riquezas do solo, rios e lagos nelas existentes, não assistindo ao particular direito à indenização ou ação em face da União pela circunstância da caracterização da área como indígena, ressalvado o direito à indenização das benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé;
X – há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente
Entenda o marco temporal
Esse é o mais importante processo sobre demarcação de terras indígenas que tramita na Corte. O que se discute na ação é se, para o reconhecimento de uma área como território indígena, é necessária a comprovação de que os indígenas ocupavam a terra no momento da promulgação da Constituição de 1988.
Fux informou que 82 processos sobre a matéria estão sobrestados até o fim do julgamento do processo — o recurso extraordinário, que tem repercussão geral.
O processo tem a participação de diversas entidades de proteção aos direitos indígenas e de entidades ligadas ao agronegócio. As primeiras sustentam que este julgamento tem o condão de garantir ampla proteção aos direitos dos índios e defendem a derrubada do marco temporal.
Já o setor do agronegócio, principalmente, defende que os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Defendem também que seja mantida a jurisprudência do STF de 2009, na qual o STF fixou regras para o processo de demarcação para a terra Raposa do Sol, com um marco temporal de ocupação indígena.
O recurso extraordinário em análise versa sobre a controvérsia de uma reintegração de posse requerida pela Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Fatma) de uma área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC), declarada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) como uma tradicional ocupação indígena.
O Tribunal Regional da 4ª Região (TRF4), ao julgar o processo, entendeu que não havia elementos que demonstrem que as terras seriam tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e confirmou a sentença que determinou a reintegração de posse ao órgão ambiental. O recurso foi parar no STF. A Funai sustenta que o caso trata de direito imprescritível da comunidade indígena, cujas terras são inalienáveis e indisponíveis.
Em maio de 2020, Fachin determinou a suspensão da tramitação de processos sobre áreas indígenas até o fim da pandemia da Covid-19. Para ele, medidas como a reintegração de posse poderiam agravar o risco de contágio do coronavírus.