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Indígenas pedem ao STF que governo adote medidas para proteger povos isolados

Em ADPF, Apib e seis partidos afirmam que 9166 indígenas tiveram Covid-19 e 378 faleceram em decorrência da doença

Indígenas / Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ingressou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) a fim de que a União seja obrigada a tomar medidas para conter e mitigar os efeitos da Covid-19 em comunidades indígenas isoladas. A entidade aponta graves lesões a preceitos fundamentais da Constituição, relacionadas a falhas e omissões no combate à epidemia do coronavírus entre os povos indígenas.

É a primeira vez que a Apib ajuiza uma ação no STF. A arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) foi feita pela entidade, representada por advogados indígenas, e por seis partidos políticos da oposição: PSB, PSOL,PCdoB, Rede Sustentabilidade, PT e PDT. Leia a íntegra da petição inicial.

Na petição inicial, os autores fazem um histórico de como doenças trazidas por brancos vêm impactando os povos indígenas desde a colonização, e são expostos dados sobre como a Covid-19 está afetando esses grupos agora, apontando para um possível extermínio de alguns grupos indígenas isolados.

“De acordo com o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da APIB, até o dia 27 de junho de 2020, o país registrava 378 indígenas falecidos, 9166 infectados e 112 povos atingidos pelo vírus. Existe – é certo – grande discrepância entre esses números e os dados oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígenas, em razão da enorme subnotificação de casos no âmbito do governo federal. É que a SESAI está contabilizando apenas os casos ocorridos dentro de terras indígenas, e, além disso, existem graves falhas e inaceitável morosidade na alimentação dos seus dados”, dizem os advogados na petição inicial.

A Apib e os partidos apontam que a taxa de mortalidade do vírus nos indígenas é maior do que na população geral. “Na verdade, o vírus está se alastrando com grande rapidez entre os povos indígenas. À medida que a epidemia se interioriza – como vem ocorrendo –, os números de contaminados e de óbitos tendem a aumentar drasticamente. Com base nos dados da Apib, verifica-se que o índice de letalidade da COVID-19 entre povos indígenas é de 9,6%, enquanto que, entre a população brasileira em geral, é de 5,6%”, diz.

De acordo com um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) citado pelos autores, dentre as terras indígenas com maior vulnerabilidade, figuram os territórios Yanomami e Vale do Javari, no oeste do Amazonas. Os autores citam também nota pública da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, que alertou para uma falta de política coordenada e integral do Estado e para a subnotificação de casos e pediu atuação para que “o contexto da pandemia da Covid-19 não se transforme em um episódio de genocídio consentido das populações indígenas pelo Estado brasileiro”.

Mas os autores dizem que, “lamentavelmente”, o Estado brasileiro vem falhando gravemente no seu dever de proteger a saúde dos povos indígenas diante da COVID-19, “gerando o risco de extermínio de muitos grupos étnicos”.

“São inúmeras e crescentes as invasões de territórios tradicionais – bem detectadas pela devastação ambiental nas áreas –, em que os não indígenas se tornaram o principal veículo de propagação do vírus nas comunidades autóctones. Na terra Yanomami, por exemplo, há cerca de 20.000 garimpeiros, que representam um risco enorme para a vida dos integrantes daquela etnia. O Estado vem se omitindo intencionalmente no seu dever de proteger esses territórios indígenas – inclusive aqueles em que vivem povos isolados ou de recente contato –, abstendo-se de impedir e de reprimir invasões, que tantos riscos ocasionam”, diz a entidade.

“O governo federal vem agindo de maneira absolutamente irresponsável no controle da pandemia do coronavírus em relação aos povos indígenas. As ações e omissões do Poder Público estão causando um verdadeiro genocídio, podendo resultar no extermínio de etnias inteiras. Há grave violação de preceitos fundamentais da Constituição Federal, como os direitos à vida e à saúde, bem como o direito dos povos indígenas de viverem em seus territórios, de acordo com sua cultura, seus costumes e tradições. A gravidade ímpar do quadro e a dificuldade de enfrentá-lo evidenciam a necessidade de intervenção do Supremo Tribunal Federal, no desempenho da sua função maior de guardião da Constituição”, diz a petição inicial.

Para a Apib, o governo não é apenas omisso em proteger os povos indígenas, mas também contribui para incentivar ativamente invasões criminosas em terras indígenas, “que cresceram exponencialmente na gestão do presidente Jair Bolsonaro”. Um desses incentivos, de acordo com a Apib, seria a Instrução Normativa 09/2020 da Funai, que permite a exploração e a comercialização de terras indígenas que ainda não foram homologadas pelo presidente da República.

“Por outro lado, a SESAI – como dito, órgão encarregado da saúde indígena no país – adotou o entendimento absolutamente discriminatório e inconstitucional de apenas prestar atendimento aos indígenas aldeados, que vivem em terras indígenas homologadas. Isso exclui tanto os índios que habitam terras em processo de demarcação – e convém lembrar que o governo paralisou todos os processos demarcatórios, cumprindo sua hedionda e inconstitucional promessa de campanha de não demarcar mais “nem um centímetro de terras indígenas” –, como também os que vivem em contexto urbano, mas que não se despem da sua identidade étnica por conta disso. É preciso afastar essa orientação, para proteger todos os indígenas brasileiros, especialmente no contexto da pandemia do COVID-19”, continua.

Os autores ainda destacam dados sobre o aumento exponencial no desmatamento em terras indígenas a partir de 2018. “É de conhecimento geral que o desmatamento e a mineração em terras indígenas demarcadas apresentaram um aumento dramático a partir de 2018, e que esse cenário se agrava a cada dia. Dados do PRODES, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe, revelam que, em 2019, a taxa anual de desmatamento (avaliada entre agosto de 2018 e julho de 2019) em toda a Amazônia foi de 34,41%, mas que esse incremento foi de 80% quando consideradas apenas as terras indígenas”, explicam. “Se, em condições normais, as invasões de terras indígenas demarcadas já constituem comportamentos ilícitos graves, que demandam a intervenção do Poder Público em favor dos direitos dos povos indígenas e da proteção ao meio ambiente, isso se torna ainda mais urgente no contexto da pandemia provocada pelo novo coronavírus”.

Por isso, a Apib e os partidos requerem que o STF determine que a Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH) desenvolva um plano voltado à proteção dos povos indígenas em relação ao avanço da pandemia da Covid-19. A entidade pede que esse plano, a ser apresentado no prazo máximo de 20 dias, seja formulado com auxílio técnico da Fiocruz, e participação indígena de, no mínimo, seis representantes, sendo pelo menos três indicados pela Apib e pelo menos outros três pelos Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (CONDISIs).

Já em caráter liminar, pedem que seja determinado à União que tome imediatamente “todas as medidas necessárias para que sejam instaladas e mantidas barreiras sanitárias para proteção das terras indígenas em que estão localizados povos indígenas isolados e de recente contato”. As terras são as seguintes: dos povos isolados, Alto Tarauacá, Araribóia, Caru, Himerimã, Igarapé Taboca, Kampa e Isolados do Rio Envira, Kulina do Rio Envira, Riozinho do Alto Envira, Kaxinauá do Rio Humaitá, Kawahiva do Rio Pardo, Mamoadate, Massaco, Piripkura, Pirititi, Rio Branco, Uru-Eu-Wau-Wau, Tanaru, Vale do Javari, Waimiri-Atroari, e Yanomami; e dos povos de recente contato, Zo’é, Awa, Caru, Alto Turiaçu, Avá Canoeiro, Omerê, Vale do Javari, Kampa e Isolados do Alto Envira e Alto Tarauacá, Waimiri-Atroari, Arara da TI Cachoeira Seca, Araweté, Suruwahá, Yanomami, Alto Rio Negro, Pirahã, Enawenê-Nawê, Juma e Apyterewa.

Outro pedido em caráter liminar é que a União providencie o efetivo e imediato funcionamento da “Sala de Situação para subsidiar a tomada de decisões dos gestores e a ação das equipes locais diante do estabelecimento de situações de contato, surtos ou epidemias envolvendo os Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato”, o qual deve necessariamente passar a contemplar, em sua composição, representantes do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública da União e dos povos indígenas, estes indicados pela APIB.

Além disso, requer que a União tome as medidas necessárias para retirar invasores nas Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá, valendo-se para tanto de todos os meios necessários, inclusive, se for o caso, do auxílio das Forças Armadas. Por fim, que todos os indígenas do Brasil possam utilizar o Subsistema de Saúde Indígena do SUS inclusive os não aldeados (urbanos) ou que habitem áreas que ainda não foram definitivamente demarcadas.