
Em janeiro de 2017, o ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal (STF), havia interrompido as férias e, como relator da Lava Jato, despachava nos acordos de delação premiada feitos pelos executivos da Odebrecht. A expectativa era que ele tomasse uma decisão sobre a homologação, ou não, dos acordos no início de fevereiro de 2017. Não foi possível. Dias antes, numa quinta-feira, no dia 19 de janeiro daquele ano, há exatos cinco anos, Zavascki morreu em um acidente de avião, em Paraty, no Rio de Janeiro.
A homologação da delação foi feita 11 dias depois pela então presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, que fez um sorteio para definir o novo relator da Lava Jato: Edson Fachin.
Desde então, muita coisa mudou. Um ex-presidente da República, Lula, foi preso, em 2018, para que sua pena no âmbito da Lava Jato fosse executada. Dois anos depois, teve as condenações anuladas. A operação, originalmente relatada por Zavascki no Supremo, entrou em declínio e, diante das revelações da Vaza Jato, passou a ser criticada por uma parcela expressiva da opinião pública. Agora, os dois principais nomes atrelados à Lava Jato em Curitiba – o ex-juiz Sergio Moro e o ex-coordenador da força-tarefa Deltan Dallagnol, ambos filiados ao Podemos – irão disputar as eleições.
Nos últimos anos, o plenário virtual da Corte ganhou importância e passou a ser o fórum onde muitas decisões importantes foram tomadas. A velha guarda do STF, composta por Celso de Mello e Marco Aurélio Mello, deixou o Tribunal por ter ultrapassado a idade limite de 75 anos. E o sucessor de Zavascki na Corte, Alexandre de Moraes, foi alvo de uma ofensiva inédita: um pedido de impeachment assinado por um presidente da República.
No dia em que a morte de Teori Zavascki completa 5 anos, o JOTA elenca 10 fatos que marcaram o STF desde o dia 19 de janeiro de 2017:
1) Lula preso, Lula solto
A prisão de um ex-presidente da República foi, para os defensores da Lava Jato, um símbolo da luta contra a corrupção de uma operação que já havia colocado atrás grandes grandes empresários, como Marcelo Odebrecht. Já para os defensores de Lula, tudo não passou de “lawfare”, ou seja, o uso estratégico do Direito para fins políticos.
Lula foi condenado em duas instâncias no processo do tríplex do Guarujá e, no dia 7 de abril de 2018, preso. O ex-presidente passou 580 dias atrás das grades até que foi solto depois que uma decisão do STF reviu a possibilidade da prisão em segunda instância para fins de execução da pena.
No dia 8 de março do ano passado, o ministro Edson Fachin surpreendeu ao decidir de forma monocrática que a 13ª Vara Federal de Curitiba, que já havia sido ocupada por Sergio Moro, era incompetente para julgar as ações do ex-presidente Lula. Por isso, o ministro determinou a nulidade de todas as decisões praticadas nas ações penais do tríplex do Guarujá, do Sítio de Atibaia e em dois casos envolvendo o Instituto Lula.
Lula, desde então, é considerado ficha-limpa e apto para se candidatar a um cargo eletivo. No caso do tríplex do Guarujá, por exemplo, o Ministério Público Federal (MPF) requereu, no início de dezembro, o arquivamento do processo porque ele já está prescrito.
2) A decadência da Lava Jato — e a Lava Jato na política
Em 2017, eram aguardadas a homologação das delações da Odebrecht e as consequências do que os 77 funcionários da empresa ali relatavam. A Lava Jato estava no auge.
Dois anos depois, ao ter acesso a mensagens de autoridades obtidas por um hacker, o site “The Intercept” passou a publicar, junto com outras veículos de imprensa, a série que mudaria a percepção de muitos sobre a operação ao revelar a proximidade entre a acusação e o então juiz Sergio Moro.
A Lava Jato, desde então, acumulou inúmeros revezes. Boa parte das condenações foram anuladas. O ex-juiz Sergio Moro foi considerado suspeito para julgar Lula pela 2ª Turma do STF. E o Tribunal de Contas da União (TCU) cobra até mesmo a devolução de diárias milionárias pagas aos membros do MPF.
Moro, que deixou de ser juiz para se tornar ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, é hoje pré-candidato à Presidência da República pelo Podemos.
Quando Zavascki era vivo, Sergio Moro garantia que uma candidatura era algo fora de cogitação. “Não existe jamais esse risco”, disse o então juiz em maio de 2016, ao ser perguntado se algum dia se candidataria a algum cargo eletivo. A frase foi dita aos repórteres Fausto Macedo e Ricardo Brandt, do “Estado de S. Paulo”, naquela que seria a primeira entrevista de Moro em dois anos e meio desde deflagração da Operação Lava Jato.
Hoje, Moro é colega de partido do ex-procurador da República Deltan Dallagnol, que deve se lançar ao cargo de deputado federal.
3) Prisão em segunda instância deixou de ser constitucional
Em fevereiro de 2016, o ministro Teori Zavascki, relator do HC 126.292, deu o voto que formou maioria na Corte e passou a possibilitar a execução provisória da pena depois da condenação em segunda instância. O ministro sustentava que, historicamente, o STF permitia a prisão depois da decisão em segundo grau – entendimento que só havia sido modificado em 2009. Zavascki foi acompanhado por Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Alguns dos ministros que ficaram vencidos não se conformaram.
O caso voltou a ser apreciado pela Corte algumas outras vezes em 2016 e em anos seguintes até que, em novembro de 2019, por 6 votos a 5, os ministros assentaram que a prisão para fins de cumprimento de pena só é permitida depois que se esgotarem todos os recursos cabíveis e o processo transitar em julgado.
Alexandre de Moraes, que ocupou a cadeira de Zavascki, votou da mesma forma que o antecessor. Mas Gilmar Mendes e Dias Toffoli mudaram de opinião, o que inverteu a maioria. Nos dias seguintes à decisão, milhares de presos que cumpriam pena provisoriamente foram soltos, inclusive o ex-presidente Lula.
4) Inquérito das fake news
Em março de 2019, Dias Toffoli, então presidente do STF, abriu de ofício um inquérito para investigar fake news, ofensas e ameaças à Corte, aos ministros e familiares. A relatoria do inquérito foi designada a Alexandre de Moraes, sem sorteio.
Foi um fato sem precedentes e muito criticado pelos membros do Ministério Público, por ex-ministros e pelo então decano, Marco Aurélio Mello, que chamou a investigação de “um inquérito do fim do mundo, sem limites”.
No início, um dos alvos da investigação seria o então procurador da República do Paraná Deltan Dallagnol e seu colega Diogo Castor, que publicou um artigo dizendo que o tribunal preparava um “golpe” contra a Lava Jato.
A então procuradora-Geral da República Raquel Dodge chegou a arquivar o inquérito sob o argumento de afronta à separação de Poderes, à livre distribuição de processos, à regra do juiz natural da causa, à competência criminal originária do Supremo para processar e julgar ações ajuizadas contra autoridades com prerrogativa de foro na Corte e ao devido processo legal pela ausência de delimitação da investigação penal. A manifestação de Dodge, contudo, foi ignorada.
Em 2020, por 10 votos a 1, o inquérito foi considerado constitucional pelos ministros do STF. Nos últimos anos, a investigação se voltou contra os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e contra o gabinete do ódio. O relator, Alexandre de Moraes, aliás, será o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante o período eleitoral.
5) Ataques do Executivo
Em 2016, um mês antes de sua morte, Teori Zavascki viu a Mesa do Senado descumprir uma decisão liminar de Marco Aurélio Mello para afastar Renan Calheiros da presidência da Casa Legislativa. A justificativa do ministro era que por ser réu em processo criminal, Calheiros estaria impedido de ocupar um cargo na linha de sucessão presidencial. Zavascki foi um dos seis ministros que, dias depois, votou para derrubar a liminar do colega, mantendo apenas a interdição de Calheiros ocupar o cargo de presidente da República.
A crise entre os Poderes escalaria absurdamente nos anos seguintes com a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República. O ministro Luís Roberto Barroso foi chamado de “aquele filho da puta” enquanto Bolsonaro falava com apoiadores. Em discurso no dia 7 de setembro de 2020, o presidente da República ameaçou Alexandre de Moraes:
“Ou esse ministro se enquadra ou ele pede para sair. Não se pode admitir que uma pessoa apenas, um homem apenas turve a nossa liberdade. Dizer a esse ministro que ele tem tempo ainda para se redimir, tem tempo ainda de arquivar seus inquéritos. Sai, Alexandre de Moraes. Deixa de ser canalha. Deixa de oprimir o povo brasileiro, deixe de censurar o seu povo. Mais do que isso, nós devemos, sim, porque eu falo em nome de vocês, determinar que todos os presos políticos sejam postos em liberdade”.
As pessoas que Bolsonaro chamou de “presos políticos” foram encarceradas por ameaças aos ministros e ao Estado democrático de Direito no âmbito do inquérito das fake news e de outras investigações relatadas por Moraes.
Em dezembro do ano passado, Bolsonaro voltou à carga numa entrevista à “Gazeta do Povo”: “Lamento a prisão do jornalista [Oswaldo Eustáquio], Trovão [Zé Trovão], Roberto [Jefferson]; isso é uma violência sem tamanho praticada por um ministro do Supremo”, disse. Em outro ponto da entrevista completou: “eu jogo dentro das quatro linhas, e quem for jogar fora das quatro linhas, não vai ter o beneplácito da lei. Se quiser jogar fora das quatro linhas, eu jogo também. Não pretendo fazer isso, isso não é ameaça para ninguém, mas que cada uma dessas pessoas façam um juízo da sua consciência do que estão fazendo”.
6) Presidente da República pede impeachment de ministro do STF
Ao atacar o STF e os ministros, o presidente da República não ficou apenas nas palavras. Bolsonaro tomou uma medida inédita contra Alexandre de Moraes, o sucessor de Teori Zavascki na Corte: protocolou no Senado um pedido de impeachment.
O pedido foi apresentado ao Senado horas depois de a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República terem cumprido mandados de busca e apreensão contra o cantor Sérgio Reis e outros apoiadores do presidente que planejavam protestos no dia 7 de setembro de 2021, com o objetivo de intimidar ministros do STF e senadores, de acordo com o entendimento de Moraes.
No pedido, Bolsonaro afirmava que Moraes “não tem a indispensável imparcialidade para o julgamento dos atos deste Presidente da República. Não fosse isso, o referido Ministro comporta-se de forma incompatível com a honra, a dignidade e o decoro de suas funções”.
Após a ofensiva de Bolsonaro, os ministros do Supremo divulgaram uma nota de repúdio ao pedido de impeachment e disseram ter total confiança em Moraes. O STF afirmou no comunicado que “não tolera que um magistrado seja acusado por suas decisões, uma vez que devem ser questionadas nas vias recursais próprias, obedecido o devido processo legal”.
Cinco dias depois, o pedido foi rejeitado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) por “manifesta ausência de tipicidade e de justa causa”.
7) A expansão do plenário virtual
O plenário virtual do STF foi criado em 2007 para que os ministros decidissem por meio da plataforma virtual se determinado recurso extraordinário possui repercussão geral ou não. Em agosto de 2016, ainda com Teori Zavascki na Corte, o STF passou também a permitir que agravos internos e embargos de declaração fossem julgados no ambiente virtual.
Em 2019, a competência do plenário virtual foi mais uma vez ampliada pelo então presidente Dias Toffoli, até que, em março 2020, com a pandemia da Covid-19, a Corte aprovou uma medida para que todos os tipos de processos pudessem ser julgados no ambiente virtual. Apenas o ministro Marco Aurélio ficou vencido, por entender que a medida abriria portas para uma desvalorização das sessões presenciais de forma definitiva.
A medida mudou, de fato, o funcionamento da Corte. Muitos casos de impacto foram transferidos do plenário físico para o plenário virtual, como, por exemplo, o processo que assentou a inconstitucionalidade da reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado e também o que declarou inconstitucional a cobrança de ICMS majorado para setores como energia elétrica e telecomunicações, um recurso de impacto bilionário.
8) O adeus à velha guarda
Depois da morte de Teori Zavascki, dois outros ministros deixaram a Corte: Celso de Mello, que se aposentou em 13 de outubro de 2020, e Marco Aurélio Mello, aposentado compulsoriamente em 12 de julho de 2021, quando completou 75 anos.
Sem os dois, o perfil da Corte mudou. Celso de Mello havia sido indicado pelo ex-presidente José Sarney e assumiu a cadeira em 17 de agosto de 1989. Já Marco Aurélio Mello foi indicado por Fernando Collor de Mello, seu primo, e tornou-se ministro em 13 de junho de 1990.
O atual decano, Gilmar Mendes, chegou ao tribunal mais de uma década depois de Marco Aurélio, em junho de 2002. Não é exagero dizer que Marco Aurélio, famoso por ser “o voto vencido, mas não convencido“, foi o último ministro da velha guarda do STF a deixar a Corte.
As cadeiras de Celso de Mello e Marco Aurélio Mello foram ocupadas, respectivamente, por Kassio Nunes Marques e André Mendonça.
9) Homofobia se torna crime, devido a uma decisão do STF
Um levantamento do JOTA Tracking, publicado no Dia do Orgulho LGBT do ano passado, mostrou que nenhum projeto voltado para LGBTs foi aprovado desde 1988 no Congresso Nacional.
Diante dessa inação, o STF reconheceu em 2011, ainda antes de Teori Zavascki integrar a Corte, que os casais homoafetivos têm direito à união estável. Em junho de 2019, a Corte tomou um novo passo e enquadrou, por 8 votos a 3, a homofobia e a transfobia no crime de racismo.
Apesar da boa intenção, a decisão foi criticada por especialistas em Direito Penal, como o advogado Gustavo Badaró, professor da USP, por atropelar o princípio da garantia da legalidade no Direito Penal, ou, em outras palavras, de que não há crime sem lei anterior que o defina.
10) Descriminalização do porte de drogas
Depois de 5 anos da morte de Teori Zavascki uma questão não mudou: o julgamento da descriminalização do porte de drogas ainda não foi retomado. Em agosto 2015, Gilmar Mendes votou para descriminalizar o porte de drogas para consumo. Um mês depois, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso concordaram com Mendes, mas restringiram a descriminalização apenas ao porte de maconha. O julgamento, então, foi paralisado por um pedido de vista de Zavascki.
Até sua morte, o ministro não havia liberado o caso para julgamento. O recurso, então, foi para o gabinete de Alexandre de Moraes, que herdou os processos de Zavascki. Moraes liberou o RE 635.659 para julgamento em novembro de 2018. O processo chegou a ser incluído em pauta em duas datas diferentes no ano de 2019 pelo então presidente Dias Toffoli, mas acabou sendo excluído das sessões dias antes. O ministro Luiz Fux, atual presidente, sequer chegou a pautar o caso que se arrasta na Corte desde fevereiro de 2011.